Autor: Alberto Schiesari(*)
Apresento aos leitores o script de um filme, em fase de produção, idealizado na mente de muitos milhões de brasileiros. É importante observar que o financiamento é feito à revelia deles, cujos pobres bolsos são invadidos e roubados. A bilheteria não vai ser o único recorde associado a tal empreendimento. Novos patamares de insensatez serão estabelecidos, inspirados no roteiro cheio de vícios e nos péssimos exemplos dados pelos personagens. O guinness acompanha em detalhes para engordar a próxima edição do guia dos recordes.
É o terceiro filme de uma trilogia, cujo enredo há muitos anos vem sendo tricotado, e que precisa redimir a frustração das plateias nesta obra final.
Cena 1 - A traição: seus primórdios e sua consumação
Certo dia, quando estavam à procura de alguém para o papel principal do filme, um ator raciocinou desta forma:
"Há milhões de pessoas insatisfeitas com o protagonista bandido que está no auge [o protagonista dos filmes anteriores], um vulgar imitador do diabo que se diz anjo, enquanto seduz incautos e comparsas com muito dinheiro e conversa fiada".
Com base nessa reflexão, o candidato a protagonista planejou essa estratégia de ação: "Vou colocar meu disfarce de bonzinho e dizer que o outro é o bandido é eu sou o mocinho. Dessa forma, consigo conquistar o papel principal". E foi exatamente o que aconteceu, pois o ator anterior era muito convencido. Achava que era imbatível e sempre teria os produtores do filme a seu lado, não importa quais estripulias e malvadezas ele fizesse. Ainda bem que caiu do cavalo.
Cena 2 - Apresentação do perfil do personagem principal
Ele não é um mocinho. Ele se diz mocinho, mas sua maldade é de fazer inveja a qualquer Darth Vader. Também se diz religioso, mas suas maldades fazem anjos e demônios corarem de vergonha. Mas tem carolas que nem percebem isso.
É frio e calculista, e ao mesmo tempo impulsivo ao extremo, dicotomia provavelmente causada por alguma anomalia mental desconhecida. Uma dualidade característica de desequilibrados, que também provoca os tradicionais trejeitos e modos de falar que os especialistas em linguagem corporal e os fonoaudiólogos explicam tão bem.
Mentir não lhe traz incômodo, é coisa tão natural que deve fazer desde o berço.
Cena 3 - A fase de promessas
Prometeu mundos e fundos a todos, tanto aos amigos quanto aos inimigos. Prometeu que daria apoio total e irrestrito a quem de fato merece. Como não cumpriu, então mentiu.
Prometeu caçar os pecadores e entregá-los à justiça. Mas, além de cometer pecados mais graves ainda, jogou milhões de incautos à arena de torturas, invadida por trilhões de bandidões microscópicos.
Prometeu que milhões seriam os privilegiados, mas só privilegiou umas poucas centenas que o apoiavam por puro interesse.
Prometeu associar-se aos melhores, e inclusive nomeou um ou outro como assistente. Só para disfarçar, pois não disse que já estava associado aos extremamente piores, e que os bons que o auxiliavam seriam fritados no caldeirão que ele usurpou do diabo.
Enfim: prometeu mundos e fundos, mas entregou sujos e imundos.
Cena 4 - A verdade se revela nua e crua
Muita malandragem, mais malícia, menos maquiagem, muita maledicência, modéstia microscópica: mudou a mosca, mas a lerda era a lesma.
O protagonista que se fingiu de mocinho jurou de pés juntos (mas com uma figa escondida nos dedos) que nunca faria nenhum tipo de acordo para convencer as hordas inimigas a baixar suas guardas. Coisa que era a especialidade máxima do protagonista anterior.
Mas fez muito pior: transformou seus inimigos em "amigos", comprando esses venais que desfilam nas ruas onde o comércio de almas é a atividade principal, como prostitutas seminuas à caça de clientes em noites de inverno chuvoso.
O protagonista anterior terceirizava a cooptação e treinamento de fãs, entre desgraçados liderados por um rainha, e que depois eram treinados por professores estranjeros. O novo detentor do estrelato usou a mesma técnica, mas com fornecedores mais especializados, que arrebanham idiotas selecionados por algum tipo de demência sociopata, já pensando em alegar incapacidade mental para se livrar das grades.
Cena 5 - As descendências
O protagonista falou mal da descendência do chefe da quadrilha que era a dona anterior do pedaço, mas a sua própria descendência formava com ele um grupo ainda mais nefasto.
Os dois, bandido novo e bandido velho, não só não se envergonham, como se orgulham de terem criado seus rebentos dando-lhes a essência do que a maldade humana consegue engendrar, como por exemplo associar-se a pessoas que constituem a escória da podridão.
Ambos fizeram isso de caso pensado, minuciosamente planejado, para que suas descendências pudessem herdar o estrelato.
Cena 6 - O círculo de amizades do protagonista que não é mocinho
No círculo social do protagonista existe muita coisa que fede, como exemplificado a seguir.
- "Amigos” que se consideram acima de Deus, mas que na verdade estão abaixo do diabo.
- "Amigos" auxiliares que são, de fato, criminosos de aluguel, que precisam fugir da justiça, e que são comprados em leilão por quem lhes fizer a melhor oferta.
- "Amigos" leais, desde os tempos de escola (para quem a frequentou...), cuja visão é obliterada e filtrada por ignorância, prepotência e maldade.
- "Amigos" de ocasião, prontos a virar a casaca tão logo a coisa aperte para si próprios, na desesperada tentativa de evitar as garras da justiça.
- "Inimigos" que se tornam tão "amigos" quanto maior for o valor de cada transação.
Ou seja, o protagonista "é como uma ilha de santidade e castidade", cercada por todos os lados de pessoas notoriamente ímprobas, que ele jura que são tão santas e castas quanto ele próprio jura ser.
Cena 7 - Os prazeres do protagonista que não é mocinho
Maltratar, torturar e abandonar milhões de pessoas necessitadas dá um prazer enorme a ele. Provavelmente mais intenso do que o clímax de um orgasmo.
Não diz a ninguém, mas em sua mente macabra, ele pensa: "E daí? É isso que eu quero. Piso em quem não sair da minha frente."
Cena 8 - O lado infantil do protagonista que não é mocinho
Na verdade é o lado hipócrita, pois faz muito tempo que ele não é mais uma criancinha.
Algo que sabidamente é vermelho ele diz que é verde. Coisas amargas ele diz que são doces. Para ele, desonestidade é só uma variação de virtude. E assim por diante. E ai de quem ousar discordar dos absurdos que fala e faz.
Afirmar e depois desdizer. Desdizer e depois reafirmar. Reafirmar com palavras dúbias.
Abusar de desculpas esfarrapadas: "Minhas palavras foram distorcidas", "Não foi bem isso que eu quis dizer", "Eu não!", "Eu não sabia", "Não fui eu", "Não era isso que eu queria, mas a pressão foi tanta que...", "Foi ela", "Foi ele!”, “Foi o Gasparzinho, aquele fantasminha camarada", "Não foi meu filhinho gugudadá".
Assinar e dizer que não lembra que assinou. Assinar com o nome de outros. Publicar e depois despublicar. Falar bem e depois falar mal.
Maria vai com umas e depois volta com outras.
Assassinar vidas e reputações e isentar-se de qualquer culpa ou dolo, transferindo-os para terceiros ou ao destino.
Fazer bravatas e depois recuar com covardia, pois conhece direitinho a dependência que tem do inimigo.
Imaginar que todos que o escutam são idiotas.
Cena 9 - O lado prepotente do protagonista que não é mocinho
Trata sem educação quem tenta argumentar com ele. Xinga coisas e pessoas com palavrões, em momentos e situações absolutamente impróprios. Desafia quem o critica. Persegue quem ele não consegue comprar.
Pensa, fala e age sem medir consequências, e depois diz que "não foi bem assim..."
Quando interessa, chama para conversar. Depois de conversar diz: "Sai daqui. Já te recebi".
Faz as coisas ainda mais erradas do que aquelas que ele criticou.
Tudo isso sem o menor constrangimento, que seria o comportamento adequado de um mocinho com honra.
Gera crise após crise para mostrar todas as garras de sua prepotência, e quando esta não funciona e ele se sente acuado, põe o rabo entre as pernas e a cabeça em qualquer buraco do chão. E usa o patrimônio de necessitados para se livrar da cadeia.
Cena 10 - O lado rico do protagonista que não é mocinho
O dinheiro que ele gasta com advogados para se desvencilhar dos pecados que comete seria suficiente para alimentar muitas bocas famintas. Somando-se o que ele gasta para comprar asseclas venais, dá um dinheirão. Mas ele não se preocupa com isso: "E daí?". Por que? Porque o dinheiro não vem do bolso dele.
Cena 11 - O lado pobre do protagonista que não é mocinho
Pobreza de espírito, de honra, de valores, de sensatez.
Cena 12 - A vingança
O protagonista que não é mocinho perde o apoio de todos, dos que lhe puxavam o saco e de quem foi traído. Ele é escorraçado de onde está perpetrando suas insanidades, ouvindo gritos exaltados que seu predecessor também escutou: "Traidor não merece segunda chance!"
Ele sai fugido, covarde, dizendo: "Isso é um górpi!"
A multidão delira e fica em êxtase: "Estamos redimindo o pecado que cometemos por colocá-lo lá!"
Cena 13 - O Shangrilá
Depois da versão moderna de uma Revolução Francesa, a multidão é unânime ao escolher o novo protagonista: "Tem que ser alguém com honra!", "Lugar de canastrão é na prisão!", "Chega de enganação!"
E assim, depois de bater muita cabeça na parede, a multidão coloca a cabeça dele a prêmio, e consequentemente todos vivem felizes para sempre.
The End
P.S. Um pedido aos roteiristas, diretores e produtores
Quando vocês vão fazer um filme que tem um mocinho de verdade como mocinho? Chega de fazer filmes nos quais o personagem principal é só um insensato aproveitador. Procurem um roteiro no qual o personagem principal tem honra, vergonha na cara. Que não seja portador de personalidade doentia. Que o próximo protagonista de uma nova trilogia não seja mais um gângster, um comprador e vendedor de almas.
Que uma nova sequência seja baseada em "fatos reais", na qual o bem vence o mal, a honra vence a canalhice, e os bandidos terminam todos apodrecendo na cadeia.
*ALBERTO SCHIESARI
-Economista;
-Pós-graduado em Docência do Ensino Superior;
-Especialista em Tecnologia da Informação, Exploração Espacial e Educação STEM;
-Professor universitário por mais de 30 anos;
-Consultor e Palestrante.
Todos os artigos publicados no O Blog do Werneck são de inteira responsabilidade de seus autores.
Texto interessante e intrigante que nos leva à reflexão e cujo protagonista cabe a nós, equipe de produção, pensar na próxima edição com mais consciência e menos inocência para que não se repita a frase: "Já assisti esse filme antes"...
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