terça-feira, 17 de outubro de 2023

“Propriedade Autoral Fake”


 Autora: Sylvia Regina  Emygdio Pereira (*) 

A arquitetura é uma linguagem a serviço da criatividade de seu criador e respectivo autor. Assim, sua expressão, materialização, e direitos pertinentes encontram-se sob a proteção da Legislação dos Direitos Autorais (Lei n.º 9.610/1998 – Artigo 7º, X). O/A arquiteto/a é o proprietário dos direitos autorais patrimoniais e morais que nascem da materialização de sua criação arquitetônica, de que tipo seja ou nome tenha essa criação arquitetônica, como, por exemplo, projeto arquitetônico, design de interiores, fachada, mobiliário, etc., não importando o tipo de espaço/terreno e o local onde a criação seja corporificada. O que se exige da obra arquitetônica, como uma manifestação criativa do ser humano, é que ela seja criativa, tenha originalidade e certa inventividade, além de estar plasmada em um suporte material.

Nessa linha de raciocínio, a propriedade da criação arquitetônica, assim como, seu respectivo uso, fruição, e disposição são direitos exclusivos de seu criador/a, e com ele/a permanecem, até o momento em que esse direito autoral seja cedido a alguma outra pessoa, indispensavelmente, mediante um específico contrato de cessão formal, prévio, expresso, e presumivelmente oneroso, como exigido e prescrito pela referida Lei Autoral (Artigos 28 e seguintes e 50 da Lei Autoral). Portanto, a propriedade da obra arquitetônica é exclusiva de quem a criou, mesmo no caso específico de obra arquitetônica encomendada.

Daí a necessidade de certo conhecimento da área autoral, pelo/a criador/a da obra, pelas partes envolvidas, e pelos Julgadores destas propriedades intelectuais, a fim de que não sejam cometidos erros e injustiças! Lamenta-se que tão poucos prezem um preparo – tão indispensável - nesta área jurídica, sequer se preocupem em adquiri-lo.

Infelizmente, ainda nos dias atuais, pela falta de conhecimento específico, existe a tendência de que situações que envolvam criações arquitetônicas sejam examinadas e julgadas como simples negociações e transações contratuais comerciais comuns, com base em contratos tradicionais, em detrimento dos direitos intelectuais de seus autores, o que não se pode permitir.

Nesses casos, deve ser apontada uma situação comercial, hoje muito usada e comum no Mercado, que é a franquia. A franquia torna-se problemática, nesse aspecto autoral, devido à falta de conhecimento da matéria, tanto por parte do/a arquiteto como do franqueador, sendo um verdadeiro “gatilho” de muitas violações autorais sérias. Esse desconhecimento causa um grande prejuízo aos direitos autorais do/a arquiteto/a e, também, ao próprio negócio franqueado, somando-se violações autorais patrimoniais e morais, posteriores disputas legais e judiciais, além de indenizações volumosas.

A própria ABF – Associação Brasileira de Franchising - desde sua fundação em 1987, dedicada a nortear, esclarecer, fomentar, divulgar e defender corretamente a franquia/franchising no Brasil, com o fim de ser evitada essa situação de insegurança jurídica para ambas as partes envolvidas, vem orientando o franqueador que se utiliza dos serviços criativos de um/a arquiteto/a. Em artigo específico, a ABF indaga ao franqueador - que encomendou a um funcionário ou terceiro criador um serviço de arquitetura, de publicidade, ou de web design - se o franqueador tem a certeza de que ele é o detentor dos direitos autorais da criação, vez que pagou pelo serviço solicitado...(1)

Nesse mesmo artigo, a ABF conclui que, sem o indispensável conhecimento da matéria, o franqueador tem apenas uma propriedade autoral (que não é plena e total), pois a posição preferencial é sempre garantida ao Autor, em detrimento do investimento que o franqueador-encomendante da obra possa ter feito. Somente a celebração de um específico contrato de transferência da obra criada (cessão), e dos respectivos direitos patrimoniais do autor, nos padrões legais exigidos, tornaria clara, justa, plena, e legalmente correta a relação profissional entre essas partes.

Os grandes especialistas na matéria autoral também são unânimes em confirmar que o prédio, sempre, pertence ao proprietário, enquanto que a criação (e seus direitos respectivos) é de propriedade exclusiva de seu/sua autor/a.

Há um caso antigo e interessante, da década de 20 do século passado, sobre o qual Clovis Bevilaqua teve a oportunidade de se manifestar a respeito, em um breve Parecer que publicou em "Soluções Práticas de Direito (Pareceres)", vol. I, Direito Civil, RJ, Corrêa Bastos, 1923, págs. 307-309, sob o n.º LXXIX, conforme nos foi apresentado pelo Prof. Antônio Chaves, em sua obra “Direito de Autor - Princípios Fundamentais”, onde este mestre esclareceu e transcreveu trechos do celebre Jurista, que afirmam que os desenhos consistentes em plano para construção são obras de arte da propriedade do desenhista-arquiteto e que a lei reconhece somente ao Autor o direito de reprodução (2)

O Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (CAU/BR) - autarquia federal que disciplina, orienta, e fiscaliza a profissão de Arquitetura e Urbanismo - em suas Resoluções, normatiza e dispõe a respeito dos direitos autorais. Assim, o CAU também preceitua que é infração reproduzir projeto ou trabalho técnico arquitetônico de criação e autoria de terceiros, sem a devida cessão do titular de seus direitos autorais.

Entretanto, dado o desconhecimento da matéria, pouco se dá ouvido ao que a Lei assegura e prescreve a esse respeito e aos direitos autorais dos criadores de Arquitetura – de importância efetiva ao sucesso de uma franquia comercial – sendo as contratações respectivas tratadas como puros contratos comerciais referentes a simples prestações de serviços... e, assim se dá, também pela análise de muitos de nossos Julgadores, que não investigam profundamente a matéria específica.

Portanto, sem uma cessão autoral firmada pelo/a criador/a da obra arquitetônica, cada nova utilização da criação arquitetônica tem de ser autorizada, individualmente, em sua reprodução (parcial ou integral), também cabendo ao/à arquiteto/a a remuneração correspondente a cada uma das novas utilizações de sua obra.

Ainda, é muito importante salientar que a interpretação de um contrato autoral não pode se estender além do estritamente expresso contratualmente, por disposição do próprio Artigo 4ª da Lei autoral, que, de forma clara, confirma a interpretação restritiva dos negócios jurídicos autorais.

Também se atente que, mesmo após a celebração formal do referido Contrato de Cessão, o franqueador nunca poderá alterar a obra arquitetônica criada sem a indispensável autorização de seu/sua autor/a, além de que ele nunca poderá usar a criação sem a devida menção do nome do/a arquiteto/a (menção ou crédito autoral), sob a pena de estar violando os direitos autorais morais de seu/sua Autor/a, ou seja, os direitos morais de autor, que são direitos inalienáveis e irrenunciáveis, somente transmissíveis aos herdeiros respectivos. O franqueador que não atuar dessa forma estará violando a paternidade e a integridade da obra arquitetônica.

Apesar não se tratar de um caso de franquia, mas, com o fim de exemplificar a violação autoral à integridade de obra arquitetônica, narro um caso interessante que pude acompanhar pessoalmente, pois minha mãe, após a morte de meu pai, mudou-se, adquirindo e morando em uma casa que fora construída pelo conhecido Arquiteto Villanova Artigas (3) e, anos depois, quando vendeu essa casa, o novo comprador decidiu alterar o projeto da casa, modificando a planta original criada pelo Arquiteto Artigas, o que foi veementemente proibido pela família de seus herdeiros, por se tratar de violação à integridade da obra arquitetônica e seus respectivos direitos autorais morais do criador, criando-se sérias discussões e disputas consequentes, à época noticiadas pela Revista "Veja". Hoje a casa encontra-se tombada pelo Condephaat.

Aqui deve ser mencionado que, quando se adquire o original de uma obra ou um exemplar de uma obra, essa compra jamais confere, ao adquirente, qualquer dos direitos patrimoniais do/a autor/a, salvo convenção em contrário, e nos casos legalmente previstos.

Por fim, a partir de tudo o quanto foi aqui narrado, o proprietário da franquia e o proprietário da casa autoral têm de ter sempre atenção e cuidado nas questões que envolvam os direitos autorais de seus criadores-autores, especificamente, quando se tratar da almejada e pretendida propriedade autoral plena, total, e ilimitada, que permitiria a eles a realização de tudo o que desejassem com a obra criada. Ocorre que, sem o específico contrato de cessão, na forma legalmente prescrita, a propriedade da obra autoral, em toda a sua plenitude, não existe, nem é legítima, podendo se dizer que é fake, e acarretará todas as suas consequências inerentes.

De seu lado, o/a autor/a arquitetônico também tem de colocar atenção e cuidado na criação/obra que criou a partir de sua energia criativa, e que irá alicerçar seus direitos autorais, ademais de passar a ser uma nova criação a compor e repercutir no cenário de nosso universo.

REFERÊNCIAS


(2) Chaves, Antônio: "Direito de Autor - Princípios Fundamentais", Ed. Forense, RJ, 1987, págs. 251-252: "- Os desenhos consistentes em plano para construção são obras de arte da propriedade do desenhista-arquiteto. - quem deles se utilizar para os fins a que se destinam ofende o direito autoral."(...) É uma obra de arte, a que a lei concede proteção, reconhecendo ao autor o direito exclusivo de reprodução.";
[3] João Batista Vilanova Artigas (Curitiba 1915—São Paulo 1985 arquiteto, engenheiro,urbanista e professor universitário, cuja obra é associada ao movimento arquitetônico conhecido como " Escola Paulista" Engenheiro-Arquiteto pela Escola Politécnica da Universidadede São Paulo, em 1937, é considerado um dos principais nomes da história da arquitetura de São Paulo, seja pelo conjunto de sua obra aí realizada, seja pela importância que teve na formação de toda uma geração de arquitetos. Foi influenciado por Frank Loyd Whright em alguns de seus trabalhos (in https://pt.wikipedia.org/wiki/Vilanova_Artigas.In

*SYLVIA  REGINA DE CARVALHO EMYGDIO PEREIRA














-Advogada graduada pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (1972);

-Mestrado em Direito (L.L.M.) na New York University em "Trade Regulation" com especialização em propriedade intelectual (1974);
-Membro da Ordem dos Advogados do Brasil, Secção de São Paulo, sob o nº 31.479; e
-Fundadora do escritório "Emygdio Pereira Advogados Associados";
-Sócia Fundadora do IIDA- Instituto Interamericano de Direito de Autor/USO e do LIBRAS - Licenciantes do Brasil em Direitos do Autor e
-Ministra aulas de Propriedade Intelectual em diversas Faculdades.

Nota do Editor:

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