segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Fim do Sistema Progressivo de Cumprimento de Pena


Eduardo Romualdo do Nascimento (*)


Vigora no Brasil o sistema progressivo de cumprimento de pena aos condenados à privação de liberdade. O modelo foi concebido a partir da ideia de ressocialização como função da pena e valoriza a meritocracia, já que o apenado, partindo de um regime mais gravoso como o fechado, pode alcançar a liberdade antes do cumprimento integral da sentença, desde que mereça o benefício cumprindo requisitos objetivos (lapso temporal) e subjetivos (bom comportamento carcerário) impostos pela Lei.

Teoricamente, o sistema progressivo é perfeito. Atendendo à culpabilidade do agente, encarcera-se o sentenciado em regime fechado dando-lhe conta da reprovabilidade de sua conduta, inaceitável à sociedade. Uma vez preso, passará por programas de ressocialização e reeducação, todos previstos na Lei de Execução Penal, que o preparará à reinserção social. A liberdade, contudo, não vem de uma vez, trata-se de um processo. Ao apenado cabe corresponder com as expectativas do Estado e da sociedade, ou seja, aceitar um tempo mínimo de encarceramento como parte do processo de ressocialização, bem como participar ativamente dos programas de reinserção, ressocializando-se de fato. Ao Estado cabe dar um voto de confiança, beneficiando-o com regime mais brando à medida que o preso demonstra mérito durante a execução penal. O benefício, o voto de confiança estatal é, no caso, o regime semiaberto, onde passa o dia fora do presídio trabalhando e se recolhe a noite. Uma vez no regime semiaberto, trabalhando e voltando ao cárcere todos os dias para pernoitar, bem como não reincidindo em prática delituosa, demonstra o sentenciado, em tese, que reúne condições de alcançar a liberdade do regime aberto, o que é feito, depois de cumprimento o lapso temporal sempre exigido pela Lei em cada um dos regimes.

O grande problema do sistema progressivo de cumprimento de pena é que a prática corrompe a teoria, o que o torna, no mundo real, insustentável.

Não há que se demonstrar as mazelas e criticar o falido sistema prisional brasileiro no que tange à superlotação, à fragilidade do controle de entrada de drogas, armas, aparelhos celulares, ausência de programas educacionais, a oferta de trabalho etc., este não é o objeto do estudo, embora a ele esteja intrinsecamente ligado, já que se o sistema prisional funcionasse como deveria, não haveria razão de ser deste artigo. Enfim, a crítica é mais ampla, não particularizada e parte-se do pressuposto que a condição geral da maioria das cadeias púlicas no Brasil é de conhecimento amplo, sobretudo dos operadores do Direito, dentinários primeiros deste texto.

O fato é que a notória falência do sistema prisional inviabiliza qualquer concretização de um sistema progressivo de cumprimento de pena dentro dos ditâmes estabelecidos pela Lei de Execução Penal e que se coadune com um Estado Democrático de Direito com fundamento na dignidade da pessoa humana. Ademais, a manutenção do sistema progressivo traz evidentes prejuízos ao sentenciado, à sua família, ao seu defensor, à lei e às instituições, incluindo o Judiciário.

Contra o sistema progressivo observamos, de plano, que o regime aberto, pelo menos no caso do Estado de São Paulo, é inexistente, verdadeira letra morta da lei, na medida em que não tem efetividade alguma, simplesmente porque não há no Estado nenhuma casa de albergado destinada a receber a população deste tipo de regime. Tal estado de coisas já justificaria, por si só, a supressão do regime aberto.

Já no regime semiaberto o problema está tanto na dificuldade de progressão, quanto na própria falta de vagas para aqueles que conseguem o benefício. A grande massa da população carcerária é pobre, de modo que não reúne condições financeiras para contratar advogado particular que patrocine seus interesses, a incumbência fica à Defensoria Pública que, embora exerça papel louvável, possui capacidade de operação infinitamente menor do que a demanda impõe, de modo que parcela considerável dos apenados fica mais tempo do que deviam em regime mais gravoso. Casos há em que condenados cumprem a pena na sua integralidade, sem jamais progredir.

A situação é nefasta sob vários aspectos. Não é raro encontrar sentenciados cumprindo pena em Centros de Detenção Priviória (CDP) que são destinados a presos não sentenciados. Está-se, desde já, diante de uma primeira ilegalidade, condenados cumprindo pena em CDPs. Não bastasse a inadequação do establecimento, há ainda a inadequação de regime, posto que CDPs são basicamente de regime fechado. Evidencia-se, portanto, uma dupla ilegalidade afinal trata-se de sentenciados cumprindo penas em CDP em regime fechado quando, em verdade, deveriam estar cumprindo pena em presídio de regime semiaberto.

Os sentenciados que conseguem a progressão, mas que não são transferidos a estabelecimentos adequados, vivem uma ambiguidade entre as suas situações de fato e jurídica. Juridicamente são considerados presos de regime semiaberto, mas de fato, permanecem em regime fechado pela ausência de vagas. O único benefício que de gozam, verdadeiramente, por terem progredido, são as saídas temporárias, sempre em datas comemorativas. Esta ambiguidade tem consequências sérias, como já dito anteriormente, que atinge a todos os atores envolvidos neste teatro de horrores.

Quanto ao sentenciado, vê-se desprezado pelo sistema prisional, já que seus esforços não foram recompensados. Note-se que o sistema progressivo é baseado no mérito, e o detento galga regimes menos gravosos à medida que demonstra maior adequação e reinserção social durante o cumprimento de sua pena. Porém, quando o apenado cumpre seu papel, mas não recebe a contrapartida estatal, evidencia-se uma quebra de contrato por parte do Estado que não cumpriu sua parte no acordo, posto que não garantiu a este preso vaga no semiaberto. Sem dúvida que a manutenção do preso em regime fechado, mesmo alcançado o mérito para progredir ao semiaberto, causa-lhe frustração que, não seria condenável pensar, pode se transformar em revolta, sobretudo se se considera o ambiente dentro das cadeias. O clima tenso nos presídios e as concessões que os diretores costumam fazer aos seus detentos para contê-los, por certo tem esse componente da frustração como um de seus fomentadores.

Contudo, a frustração não se restringe ao sentenciado, alcança sua família e também seus defensores, sejam eles públicos ou privados, que vêem seus esforços desprezados diante de uma realidade dura e que parece imutável. Ao leigo é particularmente complicado entender que o preso cumpriu todos os requisitos exigidos pela Lei, que o juiz concedeu a progressão mas que, a par de tudo isso, seu familiar permanecerá no regime fechado. As decisões judiciais perdem efetividade e esta é outra séria consequência.

O sistema progressivo de cumprimento de pena tem o condão de simplesmente acabar com moral, com a respeitabilidade do Judiciário. O velho brocardo de que ordem de juiz não se discute, se cumpre, é inaplicável à execução penal. Trata-se de verdadeiro menoscabo às instituições e novamente evoca-se a figura do leigo, que simplesmente não compreende como pode um mandado judicial que determina a transferência de um preso a regime menos gravoso, ser ignorado à mesa do diretor do presídio ou CDP. É óbvio que o diretor deixa de cumprir a determinação judicial por razões que estão muito além do seu querer, da sua vontade. Deixa de fazê-lo porque não pode, porque não há vagas no sistema. Contudo, tal evidência não põe fim à impressão de que, na prática, quem manda não é o juiz da execução.

Se diante desse caos, o próprio Judicário tem sua imagem manchada, o que dizer da lei? No Brasil, infelizmente, há fenômenos interessantes como de leis que não "pegam" ou que caem em "desuso". No contexto dos regimes progressivos o que há é a crença de que a lei não tem serventia, porque o ente que deveria garantir-lhe a efetividade é o primeiro a não cumpri-la. Ao sentenciado, a percepção é ainda pior, porque a Lei das Execuções Penais parece só ter efetividade quando para punir, já que é bem e bastante utilizada na apuração de incidentes de falta grave.

Outra percepção que também é lamentável e constrangedoramente contraditória, é a de que no Brasil há instrumentos legais que parecem estar a frente de nosso tempo. São leis que a rigor são de vanguarda e representam um compromisso do Estado brasileiro com os mais importantes valores sociais e humanos. Estatudo do Idoso, ECA, Código de Proteção e Defesa do Consumidor e a própria LEP são exemplos de avançadas legislações mas que, em vários aspectos não encontram efetividade diante de carências estruturais do Estado.

O que se quer dizer é que a LEP é muito boa e a ideia de progressão de regime também, porém não são viáveis em alguns pontos frente a realidade nacional. Por certo que haverá quem encontre a solução ao problema no argumento fácil de "fazer-se cumprir a lei", contudo, sabemos, não é assim tão simples. A LEP é de 1984, e não podemos aceitar que sua não efetividade se posta na conta do período de transição necessário à consecução de seus objetivos. Há que se reconhecer que trinta anos é tempo mais do que suficiente para implementar os preceitos expostos pela Lei de Execução Penal, de modo que ficou evidente que o modelo de execução penal vigente, em que pese garantista na teoria e comprometido com a dignidade da pessoa humana, não satisfaz e há de ser suprimido.

A proposta, portanto, é dar um passo atrás para, no futuro, avançar à frente. O sistema progressivo deve ser suprimido, os regimes semi aberto e aberto extintos e, em seu lugar, promover a valorização de um instituto já existente, a liberdade condicional. Em um primeiro momento tal proposta parece fomentar o temível encarceramento, mas não é o caso. No confronto entre teoria e prática, note-se que a progressão passou a ser mais difícil desde a edição do chamado "Pacote Anticrime", que majorou substancialmente os percentuais à progressão em vários casos. Todavia, mesmos aos que conseguem alcançar a progressão, não há vagas suficientes no semiaberto o que faz com que sentenciados agraciados com a progressão permaneçam no regime fechado. A liberdade, em verdade, só é alcançada quando cumprido mais um largo lapso temporal no semiaberto, com a progressão ao aberto. Na prática, portanto, o condenado permanece, invarialmente, em regime fechado por um terço de sua pena, lapso temporal exigido para se obter a condicional.

A liberdade condicional deve ser valorizada e algumas adaptações não estão fora de cogitação, como por exemplo, o estabelecimento de uma fração intermediária entre um sexto e um terço, de modo que o sentenciado ficasse em regime fechado por tempo pouco maior do que o um sexto atualmente previsto à concessão do semi aberto, porém menos do que o um terço à própria condicional. A incorporação de novas condições é algo que se pode cogitar, como o uso de equipamento eletrônico de vigilância e controle (tornozeleiras) e a submissão à fiscalização contínua do Estado que poderia ser levada a cabo por figura ainda inexistente na execução penal no Brasil, os agentes de condicional. Tais cargos públicos seriam criados obviamente por força de lei e o provimento poderia ser dado, preferencilamente, a agentes públicos da área de segurança, especialmente policiais civis e militares. Considerando que parte do contingente policial dá-se à prática do chamado “bico”, o recrutamento destes servidores para também cuidar do livramento condicional os afastaria de atividades exercidas em horários alternativos ao serviço policial, como os de vigilância, onde número significativo de policias são mortos, bem como o Estado poderia se utilizar do treinando e armamento já fornecido aos policiais, numa evidente economia de recursos públicos.

Enfim, o artigo não se pretende conclusivo, pelo contrário, é apenas um chamado à discussão e às breves propostas relativas à valorização do livramento condicional outras tantas podem (e devem) se somar, ou mesmo fora do instituto, algo que venha a substituir não só o sistema progressivo como também a própria liberdade condicional. O fato é que o sistema atualmente vigente no Brasil não contempla as necessidades da sociedade, sobretudo no que diz respeito ao tratamento digno dos encarceirados e à sua ressocialização.

*EDUARDO ROMUALDO DO NASCIMENTO















- Graduação em Direito pela Universidade Castelo Branco (1998);

-Especialista em Direito Penal e Teoria do Delito pela Universidade de Salamanca – Espanha (2015); 

-Mestre em Direito Penal pela PUC/SP (2016);

-Pós-Graduado em Direito Penal pela Universidade de Göttingen – (Fundamentos do Direito Penal Alemão) – Alemanha (2018); 

-Bacharel em História pela USP (1999) e

 Especialista em História pela UNICAMP .

Nota do Editor:

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Um comentário:

  1. Somos leigos!
    Nossa visão do sistema prisional é o sentimento de impunidade o qual o preso por crimes bárbaros como o do goleiro Bruno, da esquartejadora Matsunaga entre outros, vê-los em liberdade,..

    "Presos devem ser separados por penas, exemplo; condenado até cinco anos, prisão de segurança mínima, até 15 prisão de segurança média e acima prisão de segurança máxima!
    Talvez essa medida altere ou ajude nessas progressões.

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