terça-feira, 7 de março de 2023

A realidade das criptomoedas na legislação brasileira


 Autor: Renan Mello(*)

Se faz necessária a análise histórica dos diferentes instrumentos monetários utilizados ao longo da existência humana para delimitar o conceito de moedas virtuais. Compreender o surgimento e a evolução desses instrumentos permite entender que o conceito de moeda não é estrito nem invariável, variando com o tempo e a sociedade, mas mantendo certas características.

A atividade econômica humana passou por constantes mudanças e desenvolvimento, levando à adaptação e mudança dos diferentes tipos de instrumentos monetários utilizados. Com o desenvolvimento da agricultura, a prática comercial foi iniciada, impulsionada pelos excedentes gerados pelas técnicas agrícolas e pela necessidade de suprir as necessidades através das interações sociais.

Antes da existência do sistema monetário, as trocas comerciais eram realizadas por meio de escambo, mas isso trazia problemas de busca por interesses coincidentes, visto que, para haver uma troca, duas pessoas, necessariamente, deveriam ter interesses inversos e complementares, de modo que cada um esteja interessado na mercadoria do outro polo da negociação.

Diante disso, surgiu, então, a moeda, que permitiu a realização de trocas indiretas através de mercadorias de maior aceitação. As primeiras civilizações utilizavam o escambo, mas desenvolveram as moedas - mercadorias, bens com características peculiares utilizadas como meio de troca em diferentes comunidades. No entanto, sua aceitação era limitada, e elas foram sendo descartadas devido à falta de homogeneidade, sujeição à ação do tempo, dificuldade de transporte, divisibilidade e manuseio.

O metalismo ganhou espaço por ser um meio mais eficiente de transação, pois os metais preciosos eram raros, garantindo um controle em sua oferta, além de possuírem uma aceitação mais ampla. Os metais nobres, ouro e prata, foram preferidos em detrimento dos metais não nobres, como cobre, ferro e bronze, pois eram mais valiosos e duráveis, características valorizadas como reserva de valor. A padronização comercial das moedas metálicas ocorreu com a técnica da cunhagem, o que facilitou a quantificação do valor das moedas e a troca de bens. A utilização dos metais como moeda revolucionou as transações comerciais nas civilizações antigas.

Após o declínio do sistema feudal na Europa, houve um período conhecido como Renascimento Comercial, em que houve um forte crescimento econômico e comercial, gerando a necessidade de instrumentos monetários mais seguros para as negociações.

As casas de custódia foram as primeiras entidades a se tornarem bancos, responsáveis pela guarda dos valores em moedas metálicas. Surgiram as letras de câmbio e os certificados de depósitos de moedas metálicas, que se tornaram formas alternativas de pagamento.

Esses certificados foram usados como papel moeda e tinham a capacidade de ser convertidos em ouro. Com o tempo, os certificados passaram a identificar abstratamente um valor em ouro depositado, quebrando o paradigma do valor de troca em detrimento do valor de uso. No entanto, com o tempo, as casas de custódia começaram a emitir mais certificados do que o ouro depositado, levando a menor garantia de conversibilidade.

O desenvolvimento dos papéis-moedas levou ao aumento da utilização de moedas escriturais, que são lançamentos de débito a curto prazo dentro das instituições bancárias. Essas moedas são bens incorpóreos e são caracterizadas por operações bancárias que não têm um aspecto físico. Um exemplo comum é o cheque, que é usado para fazer um lançamento de débito em uma conta e creditar outra.

A moeda escritural é a mais utilizada atualmente em muitas economias, incluindo os Estados Unidos e o Brasil. Os cartões de crédito são um exemplo desse tipo de moeda, pois permitem que os compradores usem crédito para pagar aos fornecedores por meio de lançamentos de débitos e créditos, contudo, a sociedade continua a buscar novas formas de atender às suas necessidades econômicas, o que se evidencia com o surgimento de moedas virtuais ou criptomoedas como um novo instrumento de negociação.

Com a revolução causada pela internet na vida cotidiana, incluindo a assimilação de novas atividades ao sistema para facilitar a vida das pessoas, como o comércio e a comunicação interpessoal. Uma dessas novas atividades é a criação das criptomoedas, como o Bitcoin, que são uma forma de moeda digital criada para reproduzir elementos presentes em moedas tradicionais, como escassez, divisibilidade e portabilidade.

As criptomoedas são armazenadas em um sistema chamado de blockchain, que garante sua segurança e a validação de transações. As criptomoedas têm diversas naturezas que precisam ser classificadas no âmbito histórico, econômico e jurídico.

Economicamente falando, a moeda é um bem que funciona como intermediário de troca, possuindo características inerentes que aumentam ou diminuem sua capacidade de circular no mercado por tempo indeterminado, como a durabilidade, transportabilidade, divisibilidade, uniformidade, escassez e aceitabilidade. A durabilidade refere-se à resistência à ação do tempo, enquanto a transportabilidade está relacionada à facilidade de locomoção das moedas para facilitar trocas em grandes distâncias. A divisibilidade garante uma maior precisão na troca de valores e a uniformidade evita variações significativas entre as moedas. A escassez é importante para proteger seu valor de troca e a aceitabilidade é a capacidade de ser utilizada em trocas. As moedas virtuais, como a Bitcoin, também possuem essas características e são duráveis por não possuírem expressão física, além de serem altamente divisíveis e possuírem aceitabilidade global.

Num outro enfoque, nota-se que a legislação brasileira define o real como a única moeda com curso legal no país desde 1994. A utilização de moedas estrangeiras como forma de pagamento foi explicitamente proibida em 1969, com a estipulação de consequências legais para quem as utilizasse. Em 2002, o novo Código Civil reforçou a nulidade absoluta das convenções de pagamento em ouro ou moeda estrangeira, exceto nos casos previstos em legislação especial. O artigo 318 do Código Civil de 2002 estabelece a nulidade das convenções de pagamento em moeda estrangeira, o que demonstra a funcionalidade atrelada ao curso legal da moeda. O conceito de moeda não pode se limitar aos instrumentos conhecidos à época da elaboração da norma, tornando-se necessária uma análise semântica para uma compreensão mais abrangente da sua incidência e aplicabilidade.

As moedas virtuais, conforme entendimento econômico, possuem a capacidade de atender ao conceito de moeda e, sob o enfoque semântico, podem ser consideradas estrangeiras, uma vez que não têm origem atrelada ao Brasil. Assim, o artigo 318 do Código Civil deveria se aplicar às operações que utilizam criptomoedas estrangeiras como forma de pagamento, tornando nulo o contrato como um todo, a menos que haja legislação especial que afaste sua incidência, senão vejamos seu texto:
"Art. 318. São nulas as convenções de pagamento em ouro ou em moeda estrangeira, bem como para compensar a diferença entre o valor desta e o da moeda nacional, excetuados os casos previstos na legislação especial."
O ex-presidente Jair Bolsonaro sancionou a Lei 14.478/2022 que regula o mercado de criptomoedas no Brasil, definindo ativos virtuais, prestadoras de serviços e o crime de fraude com o uso de criptoativos e suas penalidades. A nova lei determina que as prestadoras de serviços de ativos virtuais só poderão operar no país com autorização prévia de um órgão ou entidade da administração pública federal. As empresas devem manter registros das transações para repassar informações aos órgãos de fiscalização e combate ao crime organizado e à lavagem de dinheiro. A lei acrescenta um novo tipo de estelionato ao Código Penal, com pena de reclusão de quatro a oito anos e multa, e inclui crimes cometidos por meio da utilização de ativos virtuais entre aqueles com agravante de um terço a dois terços de acréscimo na pena de reclusão de três a dez anos, quando praticados de forma reiterada.

Desta forma, conclui-se que a utilização nacional de moedas virtuais. estrangeiras, como forma de pagamento imediato, implicaria na incidência do Art. 318 do Código Civil, contudo, tendo em vista a legislação aprovada em 2022, sua natureza jurídica ficou expressamente definida como ativo virtual, afastando assim, a insegurança jurídica que envolvia os negócios jurídicos realizados com estas.

Referências:

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MONGERAL AEGON SEGUROS E PREVIDÊNCIA. Criptomoedas: entenda de uma vez como elas funcionam. Rio de Janeiro: MAG, 2018. Disponível em: https://mag.com.br/blog/educacao-financeira/artigo/como-funcionam-as-criptomoedas. Acesso em: 17 jun. 2020;

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PINSKY, Jaime. As Primeiras civilizações. 25. ed. São Paulo: Contexto, 2011; e

SIQUEIRA, Marcelo Sampaio. Convenção de pagamento em moeda estrangeira no Brasil. São Paulo: Scielo, 2007. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1808-24322008000100008&script=sci_arttext. Acesso em: 20 ago. 2020.

*RENAN SANTANA MELLO


- Graduação em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP (2020);
- Mestrando em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas









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