quinta-feira, 17 de outubro de 2019

Filiação Socioafetiva ou Cultural



Autora:Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka(*)



No Brasil, conhecemos, no último século, três fases distintas de reconhecimento de filiação, classificando-a da seguinte maneira, a saber: 

a) filiação jurídica, legal ou presumida do Código Civil de 1916;
b) filiação biológica, filiação civil ou por adoção e filiação decorrente de evolução tecnológica e 
c) filiação socioafetiva ou cultural. 

Como é possível observar e concluir, prontamente, há 100 anos, a predominante importância de integração do status de filiação era mesmo a letra da lei, a prescrição legal, vale dizer, "pai é o marido da mãe da criança" (presunção pater is est)[1]. Foram tempos invisibilidade dos filhos havidos fora do casamento, os chamados "bastardos", sem o reconhecimento de seus direitos, salvo por excepcionais decisões, à época, pelos nossos Tribunais estaduais ou pela Corte Suprema, eis que, até 1989 não tivemos o Superior Tribunal de Justiça[2]

Conforme deixou assinalado o grande jurista francês falecido no anterior século (1941), Louis Josserand[3], esta presunção de paternidade era a homenagem constitucional à constituição do casamento, privilegiando, desta forma, o vínculo matrimonial, em detrimento da verdade biológica. Á guisa de simples exemplificação, menciono ementa do TJRJ, do ano de 1978, sobre o assunto que diz "A verdade legal, informada por superiores propósitos de proteção à família, sobrepõe-se à verdade real. O fundamento ético do art. 344 do CC".[4]

Mas a verdade biológica não ficou ao largo da verdade legal – ao contrário – eis que a presunção pater is est visava considerar (ou elevar) à condição de filho biológico todos os filhos havidos da mulher com que contraíra núpcias, fossem eles mesmo biológicos ou não. O que se deu, paulatinamente, foi não só o desprestígio da presunção absurda, mas também nasceu a consciência de um novo tempo a que se deu o nome de desbiologização da paternidade, após famoso e clássico estudo/artigo de João Baptista Villela, Professor Titular da Faculdade de Direito da UFMG, publicado em 1979, na não menos famosa Revista daquela mesma Faculdade e Universidade.[5]

Desta forma, entre nós, e até 1988, seguindo a tradição do direito romano, o direito brasileiro classificou os filhos em legítimos, legitimados e ilegítimos, nos termos do art. 355 e seguintes do Código Civil de 1916, conforme fossem filhos biológicos ou se a lei (por presunção) assim os considerasse. 

Eram espécies de filhos ilegítimos os filhos naturais e os filhos espúrios; na condição destes últimos, encontravam-se os filhos adulterinos e os filhos incestuosos. Os filhos legítimos eram os havidos na constância do casamento de seus pais; já os legitimados eram aqueles filhos que foram concebidos por pessoas que não eram casadas entre si, mas que, após o nascimento, se casaram. 

Sem dúvida nenhuma, a sociedade brasileira já fazia ouvir sua voz, pela modificação dos fatos sociais, e pela relevância axiológica que eles foram paulatinamente adquirindo, ao longo do século XX. E "o ordenamento jurídico se legitima a partir da capacidade que possui de bem regular os fatos da vida e quando demonstra aptidão de constantemente evoluir para responder às demandas da sociedade", segundo é o sadio pensamento do ilustre ministro do nosso STJ, Ministro Luiz Felipe Salomão.[6]

E é a Constituição Federal brasileira de 1988 o verdadeiro divisor de águas, acerca desse assunto, uma vez que, atenta às demandas sociais e com atenção atualizada ao pensamento doutrinário de então, ampliou, sensivelmente, o conceito tradicional, moralista, fechado, matrimonialista, patriarcalista e patrimonialista do direito de família que se conheceu até então, apagando de uma vez por todas aquele ranço discriminatório que hierarquizava os filhos e lhes concedia ou não direitos, conforme sua posição na tabela hierárquica de filiação, legalmente classificatória. 

Ficaram proibidas todas e quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação. O festejado art. 227, especialmente § 6º, textualmente prescreve: Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.

Em memorável julgamento de recurso extraordinário, o Ministro Luís Fux do Supremo Tribunal Federal (STF) deixou assentado, no ano de 2016, como parte da ementa do acordão, o seguinte: 
"A família, à luz dos preceitos constitucionais introduzidos pela Carta de 1988, apartou-se definitivamente da vetusta distinção entre filhos legítimos, legitimados e ilegítimos que informava o sistema do Código Civil de 1916, cujo paradigma em matéria de filiação, por adotar presunção baseada na centralidade do casamento, desconsiderava tanto o critério biológico quanto o afetivo. [7]"
A ementa mencionada ainda se refere ao deslocamento do regramento normativo das relações famílias (e por isso, parentais) para o plano constitucional – vale dizer, uma releitura das regras de direito privado em conformidade com as normas constitucionais – "reclama a reformulação do tratamento jurídico dos vínculos parentais à luz do sobreprincípio da dignidade humana (art. 1º, III da CF) e da busca da felicidade. "[8]

Relativamente à adoção, embora o instituto já estivesse contemplado no Código Civil de 1916 – e em leis posteriores que o modificaram – foi com a Constituição de 1988 que ela deixou de apresentar aquele caráter meramente contratualista de antes (espécie de negócio havido entre adotante e adotado) e, mais que isso, a Lei Maior tendo abolido completamente a diferença entre os filhos, independentemente de sua origem, incluiu neste grande rol não discriminatório também os filhos havidos por adoção. 

Infelizmente não é possível deixar de relembrar, aqui, que o Código Civil de 2002, produziu o que foi talvez o maior de seus desacertos, quando admitiu, ao marido, o direito de contestar a paternidade dos filhos nascidos de sua mulher, por meio de ação imprescritível (art. 1601). 

São muitos os defeitos e as desconexões deste comando legal, mas a imprescritibilidade é certamente o mais significativo de todos eles, no sentido de que despreza o princípio da igualdade entre filhos, porque desconhece a filiação socioafetiva quando dá valor exclusivo à filiação biológica. Este dispositivo legal foi objeto de inúmeras e contundentes críticas da doutrina brasileira, desde o primeiro momento de vigência da atual Lei Civil brasileira. 

Nos dias atuais, penso que se poderia dizer que estamos vivendo uma nova era, sob este rico tema da parentalidade, especialmente aquela relativa ao vínculo paterno-filial: a era da socioafetividade.[9]

Realmente, como categoria jurídica de direito de família, a socioafetividade tem vez em tempo bastante recente entre nós, no Brasil. Trata-se da transdimensionalidade (ou transição entre diferentes dimensões) de um fato social e psicológico, o afeto, para a dimensão dos fatos jurídicos.

Converteu-se aquele fato social, por força da relevância axiológica que alcançou na sociedade, em fato jurídico, e no mundo do direito recebeu o reconhecimento e a incidência da norma jurídica. Nada de mais. Nada de extraordinário. Apenas a aplicação, uma vez mais, da imortal teoria tridimensional do direito, resultado da mente criativa de nosso maior jus filósofo da contemporaneidade, o Professor Miguel Reale, da Universidade de São Paulo. Fato, valor e norma. 

Não é o fato social, ou não é o sentimento (como reconhecido no mundo dos homens) que se retrata no afeto que interessa, propriamente ao mundo do direito. "O afeto, em si, não pode ser obrigado juridicamente, mas sim as condutas que o direito impõe, tomando-o como referência".[10] O fato natural da consanguinidade converte-se para o fato jurídico da afetividade, passagem esta que se expressa, especialmente, no mundo ocidental contemporâneo.[11] E o afeto, enquanto fato natural ou social, após esta transdimensionalidade, converte-se em princípio da afetividade, adquirindo status de fato jurídico. 

O princípio da afetividade não se confunde, pois, com o afeto, uma vez que este não pode ser juridicamente imposto, mas aquele (o princípio) é dever imposto aos pais em relação aos filhos e vice-versa, independentemente de haver, entre eles, amor ou desamor, afeição ou desafeição. O dever jurídico resultante do princípio permanece, até que um dos partícipes da relação paterno-filial faleça, ou até que haja perda do poder familiar. 

"A paternidade deve, portanto, ser vista como algo que é construído, como a relação que se estabelece entre dois seres humanos que aos poucos vão se conhecendo, criando liames de identidade, admiração e reconhecimento. É este, pois, o vínculo que deve ser prestigiado para se estabelecer a verdadeira paternidade" (g.n.), assim se descreveu (e tornou-se clássico) na decisão de ação de anulação de registro civil c/c reconhecimento de paternidade que correu perante o Juízo de Direito da 1ª Vara de Família da comarca de Petrópolis, tendo como juíza Andréia Maciel Pachá. 

REFERÊNCIAS

[1] Pater is est quem justae nuptiae demonstrant – É pai aquele que as núpcias indicam (dicionariodelatim.com.br); 

[2] Desde a década de sessenta se intentava, no Brasil, a revisão da competência do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF), para destacar o seu papel predominantemente constitucional, bem como se propunha a criação de uma nova Corte, nacional, com jurisdição sobre a matéria sem natureza constitucional, o SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (STJ). Criado com a promulgação da Constituição, em 05 de outubro de 1988, O STJ veio a ser instalado no dia 07 de abril de 1989. Ao STJ também coube a coordenação da estruturação da Justiça Federal, funcionando junto a ele o CONSELHO DE JUSTIÇA FEDERAL (CJF), órgão administrativo central desta função;

[3] JOSSERAND, Louis. Derecho Civil Tomo I vol II: La Familia. Revisado e completado por André Brun. Tradução de Santiago Cunchillos y Manterola. Buenos Aires, Ed. Bosch: 1952;

[4] TJRJ – 1º Gr. CC, Embargos Infringentes na Apelação 1.658 – RT 509/239; 

[5] VILLELA, João Baptista. Desbiologização da Paternidade. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. n. 21 (1979). ISSN – 0304 -2340. E-ISSN – 1984 – 1841;

[6] SALOMÃO, Luis Felipe (Ministro do Superior Tribunal de Justiça) e DRUMOND, Mônica (Assessora de ministro no Superior Tribunal de Justiça). Temas contemporâneos de Direito de Família. Disponível em:https://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI276357,71043-Temas+contemporaneos+de+Direito+de+Familia. Acesso em dezembro de 2018; 

[7] STF - Rec.Extr. 898.060/SP, 21.09.2016. Rel. Min. Luiz Fux. Repercussão geral. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/RE898060.pdf Acesso em dezembro de 2018;

[8] STF - Rec.Extr. 898.060/SP, 21.09.2016. Rel. Min. Luiz Fux. Repercussão geral. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/RE898060.pdf Acesso em dezembro de 2018;

[9] Parte das considerações deste item, principalmente as finais, foram reproduzidas de anterior estudo desta mesma autora, derivado de palestra que ministrou no auditório do Superior Tribunal de Justiça (STJ), nos dias 25 e 26 de outubro de 2018, em evento do IBDFAM/DF sobre "A parentalidade na contemporaneidade"; 

[10] LÔBO, Paulo. Direito Civil – Famílias – 7ª edição. Saraiva, São Paulo: 2017, p. 25; e

[11] LÔBO, Paulo. Direito Civil – Famílias – 7ª edição. Saraiva, São Paulo: 2017, p. 25.

*GISELDA MARIA FERNANDES NOVAES HIRONAKA

-Advogada graduada pela Faculdade de Direito da USP(1972);
-Professora Titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP;
-Coordenadora Titular do Programa de Mestrado e Doutorado da Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo – FADISP;
-Coordenadora Titular da área de Direito Civil dos cursos de Especialização da Escola Paulista de Direito;
-Fundadora e Diretora Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM;
-Diretora Nacional do Instituto Brasileiro de Direito Civil – IBDCivil e
-Ex Procuradora Federal.



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