sábado, 28 de março de 2020

Poesia e catarse em momentos de crise



Autora: Cinara Ferreira (*)


A leitura é uma das ferramentas que temos à disposição para lidar com as dificuldades que estamos enfrentando no momento atual, que exige cuidados e isolamento. Ler obras literárias com conteúdo voltado ao humano e com tratamento estético da forma pode ter um efeito catártico em momentos de crise. 

Para refletir sobre o papel libertador da literatura, proponho neste artigo a reflexão da sempre atual poesia de João Cabral de Melo Neto. O autor torna imagem poética elementos do mundo concreto, como o curso de um rio, um galo que canta ao amanhecer, a trajetória de um retirante nordestino, entre outros. A linguagem utilizada pelo autor não só faz referências a esses elementos do real, como também cria imagens que nos fazem sentir a proximidade com o objeto. Desse modo, a reflexão sobre a vida se faz pela vivência da carga emotiva suscitada pelos elementos da realidade.

No poema "Rios sem discurso", por exemplo, temos a associação entre o curso de um rio e o discurso:

Quando um rio corta, corta-se de vez
o discurso-rio de água que ele fazia;
cortado, a água se quebra em pedaços,
em poços de água, em água paralítica.
Em situação de poço, a água equivale
a uma palavra em situação dicionária:
isolada, estanque no poço dela mesma,
e porque assim estanque, estancada;
e mais: porque assim estancada, muda,
e muda porque com nenhuma comunica,
porque cortou-se a sintaxe desse rio,
o fio de água por que ele discorria.
*
O curso de um rio, seu discurso-rio,
chega raramente a se reatar de vez;
um rio precisa de muito fio de água
para refazer o fio antigo que o fez.
Salvo a grandiloquência de uma cheia
lhe impondo interina outra linguagem,
um rio precisa de muita água em fios
para que todos os poços se enfrasem:
se reatando, de um para outro poço,
em frases curtas, então frase e frase,
até a sentença-rio do discurso único
em que se tem voz a seca ele combate.

Muitas vezes, a literatura comparou o curso de um rio com a passagem da vida e com o correr do tempo. João Cabral renova essa imagem ao propor a sua relação com o discurso. Um rio sem discurso pode ser interpretado como a ausência da palavra enquanto instrumento de modificação, de emancipação, de crítica, de contestação, de vida. Assim, a partir da leitura da poesia de J. Cabral, pode-se dizer que o próprio curso da vida é interrompido quando não há discurso. A vida, por sinal, é o grande tema da obra do poeta.


A sensação que temos ao ler João Cabral é a de que ele vê no concreto analogias constantes com as situações vividas pelo ser humano. E nessa comparação, mergulha fundo no objeto para entender, ao menos em parte, aquilo que os olhos não veem. Para exemplificar, apresento o poema “Tecendo a manhã”, no qual o sujeito lírico descreve o amanhecer de um novo dia, possível graças ao encadeamento entre o cantar de vários galos:

Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
2.
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.

Por que o sujeito lírico diz que um galo sozinho não tece a manhã? Porque não tece mesmo. Uma manhã sempre ouvirá o canto de mais de um galo. Da mesma forma, a vida não se faz a partir da ação de um único ser. As ações que constituem a existência são encadeadas e necessitam umas das outras para que o todo seja construído. Pode-se pensar também que o canto dos galos apresentam diferentes vozes, diferentes textos, diferentes realidades. Para que o último canto exista enquanto tal, é necessário que o primeiro aconteça. E assim, um vai se interligando ao outro, constituindo, ao final, aquilo que chamamos de cultura. A cultura nada mais é do que o resultado de diferentes vozes que se pronunciam e se configuram enquanto produto cultural (literatura, cinema, folclore, música, ciência, tecnologia, costumes, crenças, etc.).

Em Morte e vida severina, sua obra mais conhecida, o escritor apresenta o real de uma forma poética, profunda e crítica. Ao possibilitar o contato com situações de extrema miséria e de morte, ele faz da resistência da vida o grande significado de sua poesia. Apesar da aspereza e da “secura” que caracterizam a vida do retirante nordestino, ele resiste e ainda encontra motivos para continuar. Uma das imagens mais chocantes, paradoxais e, por isso mesmo, mais significativas de "Morte e vida Severina" é da relação estabelecida entre o corpo do nordestino e a terra:

- Essa cova em que estás,
com palmos medida,
é a conta menor
que tiraste em vida. 
- é de bom tamanho,
nem largo nem fundo,
é a parte que te cabe 
neste latifúndio.

A morte é um elemento muito forte na poesia em análise. Enquanto é vivo, nada cabe ao retirante, resumindo-se sua vida na busca frustrada de um pedaço de chão para plantar e morar. No entanto, quando morre, essa terra já não pode mais lhe ser negada e, então, seu próprio corpo passa a ser adubo de um chão que jamais foi seu. Vários enterros são descritos no transcorrer do texto e, várias vezes, Severino sente-se desanimado em seu percurso em direção à Capital, a tal ponto que ele pensa em se suicidar, atirando-se no rio seco que lhe serviu de guia. Todavia, antes de tomar sua decisão, ele encontra José, o carpinteiro, que acaba de ser pai. É o nascimento do filho de José, numa alusão bastante direta com a história bíblica, que permite que Severino reconsidere seu desejo de morrer e resolva continuar acreditando na vida, mesmo que ela seja tão severina e aproxime-se tanto da morte.

O efeito catártico da poesia de João Cabral de Melo Neto está vinculado a uma aproximação com o real, numa perspectiva crítica e sensível. A partir de um olhar que procura apresentar o real em algumas de suas múltiplas e infinitas facetas, João Cabral desnuda realidades, questionando-as e permitindo a transposição de suas reflexões para a vida, em especial, quando ela se apresenta dura como a pedra e seca como o sertão.

Referências:

MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

* CINARA FERREIRA


-Doutora em Letras, área de Literatura Comparada, UFRGS e
-Docente do Instituto de Letras, da UFRGS.









Nota do Editor:

Todos os artigos publicados no O Blog do Werneck são de inteira responsabilidade de seus autores.

sexta-feira, 27 de março de 2020

Tempos difíceis

Autora: Marilsa Prescinoti(*)



Tempo difícil para o Planeta Terra
Estamos sendo atacados por um vírus que se espalha de forma eficaz e veloz, desafiando governos, autoridades, profissionais, cientistas e a cada um de nós, individualmente.

A medida que se espalha pelos países, expõe a fragilidade e limitação do Homem, sua capacidade de reação diante do inesperado, a pequenez e a grandeza do individuo. Coloca em xeque o egoísmo e a solidariedade, aflora o instinto, a espiritualidade e o próprio senso de humanidade. Nas crises, quando vidas estão em jogo, é que conhecemos o homem como ele é; o Ter e o Ser se confunde com a necessidade de sobrevivência, preservação, dever, obrigação; o coletivo e o individualismo.

A insegurança e o medo rondam as famílias. Um vírus que não escolhe classe social e nos diz o quanto os recursos individuais podem ser limitados na eficácia em combate-lo. Para quem está atento, a situação fala aos quatro cantos, o quanto precisamos uns dos outros. Um momento que nos obriga a reflexão do quanto cada um, exercendo sua função, é importante no ciclo da Terra, ao mesmo tempo o quanto, individualmente, podemos ser frágeis. O vírus não respeita sua autoridade ou seu título nobre, nem se compadece da sua pobreza social. O mantra é solidariedade e ação.
Enquanto muitos precisam ficar confinados em suas casas no enfrentamento ao vírus, outros tantos precisam estar nos seus postos de trabalho para o mesmo fim.

Para quem tem olhos para ver, ouvidos para ouvir e sensibilidade para compreender, este é o momento de cada um exercer o seu papel, a sua função ÚTIL no seu meio, fazendo o seu melhor para tornar o meio em que vive, um meio melhor. O Homem, enquanto centelha divina, tem uma oportunidade para começar o processo de cura de uma sociedade adoecida pela arrogância, egoísmo e poder.
Tempo difícil para o Brasil

Pandemia, desemprego, desigualdade social, insegurança, extremistas em destaque, falta de liderança do Presidente da República, intrigas, politicagem, irresponsabilidade de líderes e coletiva, ataques as Instituições Constituídas partindo de quem deveria protege-las com apoio popular, democracia arranhada, divisão, bestialidade, criminalidade, guerra ideológica, obscurantismo, oportunismo explorado. Extremismo, ataques pessoais, falta de respeito, revanchismo, divisão da sociedade, afronta aos meios de comunicação, falta de postura e de respeito ao cargo e a sociedade como forma de governar.

Tempo difícil para a coerência

Brasileiros de brio (como sempre diz minha cara amiga virtual Marisa Cruz) que lutam por um Brasil descente e transparente acima de tudo, que enfrentaram resistência, os ataques das milícias virtuais em tempos de combate ao projeto de poder e estragos dos tempos petistas, e que hoje não se ajoelham diante do atual, encontram a mesma resistência, ataques, linchamentos pelas milícias bolsonaristas; o extremismo só trocou de lado, o modus operandi é o mesmo.
Pessoas que apoiavam as críticas, que criticavam, que até lutavam contra o sistema em outros tempos, se envergaram para o sistema atual. Apoiam no sistema atual os que condenavam no outro. Muitos passaram a fazer parte dos linchamentos com viés trocado. Hoje quem critica o sistema é acusado de ser contra o País, é rotulado, atacado no seu pessoal; patrulheiros de opinião alheia incapazes de discutir ideias políticas, políticos, sistema, atuação, resultado. Se você é contra o sistema atual; você e tudo e mais um pouco, assim como em outros tempos.
O nós contra eles iniciado pelo Lulopetistmo e ampliado pelo bolsonarismo, tirou do armário autoritários, inescrupulosos; arrogantes; intolerantes; preconceituosos; revoltosos. A intimidação como forma de calar a divergência, o grito autoritário de quem não aceita o contraditório, o messianismo, o fanatismo a devoção ao personalismo, usando o nome de Deus, não tem nada de patriótico, tem tudo a ver com limitações e rancor pessoal; dificuldade com o contraditório e com a própria democracia. Aos rancorosos, fanáticos e cegos de esquerda que se juntaram na mesma forma de ser e de agir os rancorosos, fanáticos e cegos de direita.
  
Tempo difícil para a verdade

Em tempo de fácil acesso a informação e fácil disseminação de narrativas em detrimento da realidade, está sendo sacrificada a verdade, os resultados, a pesquisa, a ciência, os fatos e a racionalidade. O que sobressai é a narrativa mais atraente ao grupo disposto a abraça-la como verdade absoluta. Em tempo de narrativas, está sendo sacrificado o senso crítico, a análise isenta, os resultados concretos e as duras verdades.

O território da política virou terra fértil para narrativas mentirosas, eleitoreiras inescrupulosas. É preciso ter cuidado, conhecimento e informação sob pena de pessoas bem intencionadas virarem massa de manobra de líderes e grupos inescrupulosos.
Recomendo prudência, análise aprofundada do que está sendo disseminado. Sugiro informações nos meios tradicionais e confiáveis de vinculação; sugiro atenção e persistência para distinguir o fato da opinião. As redes sociais se tornaram um poderoso veículo de aproximação de autoridades, governantes, fornecedores, ídolos. Uma poderosa aliada para cobrar resultados; uma poderosa aliada de debates construtivos entre pessoas em todos os Estados e no mundo.

Porém, é preciso cuidado e senso crítico apurado. Estejam todos muito cientes que eles, os covardes, os violentos, os virulentos, os desrespeitosos, os farsantes, os mentirosos e os perigosos estão todos conectados e dispostos a te enganar. 

Tempo difícil para a racionalidade.
Tempo difícil para a responsabilidade.
Tempo difícil para a cidadania.

Porém, com pequenas ações diárias, temos a oportunidade de mudar o cenário e reescrever a história. Muitos heróis anônimos estão dando o seu melhor para salvar vidas, resgatar o senso de humanidade em cada um. Façamos a nossa parte.

Mais tolerância, menos rancor, mais humanidade, menos revanchismo, mais empatia, mais informação, menos narrativas, mais razão, menos cegueira ideológica, mais patriotismo, menos paixão.

Mais cidadania.
Mais Brasil.

*MARILSA PRESCINOTI 
REVISÃO de MARESSA FERNANDES










De acordo com suas próprias palavras:
-Administradora de empresa, blogueira,twiteira,
politicamente engajada, esposa, mãe e cidadã comum.

Nota do Editor:

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quinta-feira, 26 de março de 2020

A Família e a sua proteção pelo Direito: O Parentesco



Autor: Raphael Werneck (*)

Em 05.05.2016 ao lançar essa seção que anteriormente se denominava  Família & Seus Direitos no blog que administro escrevi um pequeno artigo expondo como é feita a proteção da família pelo nosso direito. 

Hoje, no mês em que este blog completa 5 anos  venho dar continuidade ao assunto e, fazer algumas considerações sobre o  que é parentesco e qual a sua importância  no  Direito das Sucessões.

Pai, mãe, filho, sogra, nora e genro  são parentes?

Sim, são mas dentro do que se denomina  parentesco não são parentes iguais como veremos a seguir:

Parentesco segundo a Wikipédidia é "a relação que une duas ou mais pessoas por vínculos genéticos ou sociais. O parentesco estabelecido mediante um ancestral em comum é chamado parentesco consanguíneo, enquanto que o criado pelo casamento e outras relações sociais recebe o nome de parentesco por afinidade."

Assim respondendo a pergunta que fiz temos que pai, mãe e filho são parentes naturais ou  consanguíneos e sogra, nora e genro são parentes civis , por afinidade.

Essa divisão do parentesco, assim consta do art. 1.593 do nosso Código Civil  que abaixo transcrevo:

"Art. 1.593. O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem."
O parentesco, no direito de família é dividido por linhas e  graus como podemos ver pelos arts. 1.591 e 1.592 abaixo:

"Art. 1.591. São parentes em linha reta as pessoas que estão umas para com as outras na relação de ascendentes e descendentes.Art. 1.592. São parentes em linha colateral ou transversal, até o quarto grau, as pessoas provenientes de um só tronco, sem descenderem uma da outra."
Exemplificando essas disposições temos que são parentes em linha reta por descenderem de um mesmo tronco o  avô, bisavô, pai, filho, neto, bisneto etc. enquanto na linha colateral ou transversal temos os que não descendem uma dos outros, mas possuem um antepassado ou ascendente comum como é o caso dos primos e tios cujo ascendente comum que é o pai em relação aos irmãos.

E como é feita a graduação?

Essa graduação está muito bem explicada nos seguintes  trechos a seguir transcritos do artigo " Parentesco e grau de parentesco"em https://quintans1.jusbrasil.com.br/artigos/390320357/parentesco-e-grau-de-parentesco :

"O grau de parentesco, se estabelece a partir da relação entre pais e filhos e essa relação é conhecida como parente de primeiro grau. Se pai e filho são de 1º grau, logo, entre o filho e seu avô a relação é de parente de segundo grau (porque existe um grau entre o pai e o avô)......................................................................................Nessa linha de raciocínio, se o filho é parente de primeiro grau em linha reta do pai, então, o avô é parente de segundo grau em linha reta, o bisavô é parente de terceiro grau em linha reta e o trisavô é parente de quarto grau em linha reta, considerando-se a linha descendente e ascendente."
Feitas essas considerações que não  esgotam o assunto concluo essas esclarecendo para vocês qual a importância do parentesco  no denominado  Direito das Sucessões.

Considerando as disposições deste direito a principal importância do parentesco ocorrerá na ordem das distribuições dos quinhões hereditários conforme disciplinado pelo art. 1.829 do Código Civil Brasileiro:

"Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:
I - aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;II - aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;III - ao cônjuge sobrevivente;IV - aos colaterais."
Esse, no entanto, será tema de um próximo artigo....

Até breve!!

*RAPHAEL WERNECK


 -Advogado tributarista;

- Consultor tributário;
-Administrador do O Blog do Werneck;
Atualmente trabalha como Analista Editorial.







Nota do Editor:

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quarta-feira, 25 de março de 2020

Resolução de problemas consumeristas na esfera extrajudicial


Autora: Jessica Avance(*)

Atualmente, no exercício da advocacia, é muito comum nos depararmos com diversas dificuldades associadas ao consumo. As compras online tornaram mais fácil o acesso às mercadorias oferecidas por diversas empresas ao redor do mundo, mas, ao mesmo tempo, iniciaram uma série de novos casos de insatisfação e frustração do consumidor.

As compras realizadas em estabelecimentos físicos, ainda são consideradas o meio mais seguro e certo, para que o cliente possa alcançar a satisfação. Na loja, é possível que o cliente tenha acesso à mercadoria ou entenda melhor o serviço que quer contratar, de modo que pode avaliar as opções, pode esclarecer dúvidas, pode verificar a qualidade, a cor, as medidas, e todos os aspectos que o levaram a escolher referido produto, de modo a minimizar possíveis problemas posteriores à compra do mesmo.

Para o fornecedor, da mesma maneira, a segurança é maior quando possui um estabelecimento fixo que os clientes possam visitar, uma vez que não corre risco com possíveis fraudes, devendo o mesmo fornecer a garantia de seu produto, e seguir todas as regras de acordo com a lei.

No entanto, é um fato que as vendas online são mais cômodas para muitos consumidores que, através de um clique, conseguem selecionar as características da mercadoria de interesse e em seguida, realizar a compra, que chegará ao conforto de sua residência.

Devido ao grande volume de pedidos, muitas vezes os comerciantes, as grandes empresas, os prestadores de serviço, não se certificam da qualidade e do produto que estão entregando ao cliente, exatamente pela imensa demanda que move o capitalismo mundial. Nesse momento, a relação entre fornecedor e consumidor pós venda, passa por severas dificuldades, uma vez que o cliente fica frustrado quando não recebe o produto pelo qual despendeu seu precioso capital.

Nestes e em muitos outros casos, a vítima, por óbvio, é o consumidor negocial, ou seja, o que adquire o produto (artigo 2º do CDC) e a vítima do evento, também chamado de consumidor por equiparação (artigo 17 do CDC).

Agora, importante indicar o artigo 14 da lei 8.078/90, já que se trata da responsabilidade pelo fato do serviço. Transcreva-se o artigo:

"Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos. § 1° O serviço é defeituoso quando não fornece a segurança que o consumidor dele pode esperar, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais:I - o modo de seu fornecimento; II - o resultado e os riscos que razoavelmente dele se esperam; III - a época em que foi fornecido. § 2º O serviço não é considerado defeituoso pela adoção de novas técnicas. § 3° O fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar: I - que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste; II - a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro. § 4° A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa."
Nas palavras de Sílvio de Salvo Venosa:

"Assim como em relação ao produto, o serviço defeituoso deve ser examinado no momento em que é prestado. O serviço é defeituoso quando não fornece segurança para o consumidor. Os defeitos de serviço podem decorrer de concepção ou de execução indevidas. Seu campo de atuação é muito amplo, do serviço mais simples de um encanador ou eletricista ao mais complexo serviço proporcionado por clínicas e hospitais e pelas instituições financeiras e administradoras de cartão de crédito."

Rizzatto Nunes explica vício da seguinte forma:

"São consideradas vícios as características de qualidade ou quantidade que tornem os produtos ou serviços impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam e também que lhes diminuam o valor. Da mesma forma são considerados vícios os decorrentes da disparidade havida em relação às indicações constantes do recipiente, embalagem, rotulagem, oferta ou mensagem publicitária."
  
Com grande frequência, o problema das compras online reside na quebra de expectativa do cliente, na disparidade entre o que é prometido pelo fornecedor e o produto que é entregue ao consumidor, gerando, portanto, um número imenso de demandas no sistema judiciário. 

Referidos problemas, vícios e defeitos, no entanto, poderiam ser mais facilmente resolvidos através de soluções extrajudiciais, as quais infelizmente não são viáveis pela forma como a empresa é estruturada, dificultando o contato com o consumidor, tornando impossível a realização de acordos entre as partes.


Devido a esse cenário, os fornecedores de produtos e serviços acabam sendo muito prejudicados, uma vez que o consumidor é “privilegiado” pelo Código de Defesa do Consumidor. A facilitação da defesa dos interesses dos consumidores, deve ser garantida em função de sua hipossuficiência fática, técnica e econômica, em relação ao fornecedor, o que demonstra sua vulnerabilidade, até mesmo no âmbito judicial.

Analisando o artigo 6º, VIII a facilitação da defesa dos direitos dos consumidores, não se restringe apenas a inversão do ônus da prova, sendo que tal inversão é regra básica da facilitação da defesa dos direitos.

Destarte, a facilitação da defesa dos interesses dos consumidores vale tanto para esfera judicial como extrajudicial, como meio capaz de efetivar a proteção e a garantia do elo mais enfraquecido durante a relação de consumo, que é o consumidor.

O artigo 6º, VIII determina que haja a inversão do ônus da prova ao consumidor, quando, no processo civil, for verossímil a alegação ou quando for o consumidor hipossuficiente na relação de consumo.

Aplica-se a inversão do ônus da prova, portanto, sempre que houver existente fática aceitável daquilo que alega o consumidor ou quando for este hipossuficiente, ou seja, elo mais fraco na relação de consumo.

Portanto, para evitar um gasto exorbitante de recursos (tempo e dinheiro) para a resolução de conflitos na esfera judiciária, seria interessante que as empresas fornecedoras de produtos e serviços dessem mais atenção a estrutura do seu negócio, de modo a facilitar a comunicação e melhorar a resolução de problemas diretamente com o cliente.

O fundador da Amazon, o bilionário Jeff Bezos, o terceiro homem mais rico do mundo, considerado pela Harvard Business Review como o mais bem sucedido CEO vivo atualmente, resume o sucesso da empresa em três ideias básicas: pensar no longo prazo, colocar o cliente no centro do universo da empresa e inventar continuamente.

Boa parte do sucesso da Amazon resulta da sólida cultura organizacional da empresa, baseada em princípios e valores vigorosos, claros e compartilhados, que orientam o comportamento gerencial dos líderes de diversos níveis administrativos dentro da companhia. E eles podem perfeitamente servir de inspiração para outras empresas, na tentativa de desenvolver um negócio mais humano, aumentando o contato com o consumidor na intenção de incentivar a resolução de problemas na esfera extrajudicial, de modo a desafogar o sistema judiciário.

Através dessa abordagem, os problemas com os consumidores podem ser prevenidos, evitados e resolvidos com maior celeridade e eficiência, evitando a frustração dos mesmos caso exista alguma quebra de expectativa no produto adquirido, e ainda fidelizando o cliente através da prestação de um bom serviço de resolução de problemas, sem que nenhuma das partes precise despender tempo e dinheiro aguardando a decisão do Magistrado.

É através da efetiva identificação e solução de problemas recorrentes no mercado que nascem os Grandes Negócios da atualidade.

*JESSICA FERNANDES AVANCE














-Formada em Direito pelo PUC MINAS;
-Pós-Graduanda pela Escola Superior da OAB/MG - em
- Advocacia Civil
- Com experiência nas questões afetas à Vara Cível, especialmente na área de Direito do consumidor consumidor
-Sócia proprietária do Escritório Avance Advocacia
Contato pelo telefone: (31) 99522-2860
E-mail: jessica@avanceadvocacia.com.br


Nota do Editor:

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terça-feira, 24 de março de 2020

Cláusula de retenção em contratos Imobiliários e outras avenças





Nos tempos atuais com as facilidades para aquisição de imóveis através de inúmeras parcelas e com a negociação direta entre comprador e vendedor, muito tem se discutido sobre as questões legais envolvendo esse tipo de contrato e suas consequências.

Precisamos nos atentar a questões pontuais e que devem ser enfrentadas na análise preliminar dos contratos, as quais serão objeto de discussão em uma ação judicial.

Primeiro temos que a discussão da legalidade das cláusulas contratuais sempre será o norte no processo; a possibilidade de devolução em parcela única ou não; o percentual de retenção nos casos de atraso na entrega do imóvel, a rescisão por parte do comprador e por fim a responsabilidade das obrigações acessórias do imóvel, tais como IPTU, condomínio, associação, entre outras.

A questão consumerista que se coloca em pauta é que os contratos de compra e venda, seja ele de loteamentos ou imobiliários em geral, são típicos contratos de adesão, onde as cláusulas podem estar eivadas de abusividade, ilegalidade, colocando o adquirente em clara posição de desvantagem. Esse é o primeiro ponto a ser enfrentado e que costumeiramente são declaradas nulas pelos juízes e tribunais.

Após isso temos a discussão da forma de devolução dos valores pagos e os percentuais de retenção devidos, haja vista que não há nenhum julgamento repetitivo sobre tais questões e, portanto, aqueles são fixados livremente pelos juízes e tribunais de justiça de nossa federação.

Há alguns anos o STJ fixou Súmula nos seguintes termos:

"Súmula 543: Na hipótese de resolução de contrato de promessa de compra e venda de imóvel submetido ao Código de Defesa do Consumidor, deve ocorrer a imediata restituição das parcelas pagas pelo promitente comprador – integralmente, em caso de culpa exclusiva do promitente vendedor/construtor, ou parcialmente, caso tenha sido o comprador quem deu causa ao desfazimento."

O mesmo entendimento foi fixado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo:

"Súmula 1: O Compromissário comprador de imóvel, mesmo inadimplente, pode pedir a rescisão do contrato e reaver as quantias pagas, admitida a compensação com gastos próprios de administração e propaganda feitos pelo compromissário vendedor, assim como com o valor que se arbitrar pelo tempo de ocupação do bem.
Súmula 2: A devolução das quantias pagas em contrato de compromisso de compra e venda de imóvel deve ser feita de uma só vez, não se sujeitando à forma de parcelamento prevista para a aquisição."

Portanto temos que a devolução deverá ser em parcela única e o percentual será fixado entre 10 a 25% de retenção devida. Lembrando que nas ações judiciais, os valores das parcelas serão corrigidos e atualizados a partir de cada desembolso.

Ressalte-se que de acordo com a nossa experiência a alegada despesa administrativa faz direta relação com as despesas de cartório, as notificações, e as despesas para adjudicação do imóvel e custas de leilão extrajudicial - o que será um tema à parte – frisando-se que enquanto estava adimplente o vendedor não teve ônus, e a partir da inadimplência começaram a correr os gastos administrativos deste.

Importante deixar consignado ainda que o comprador deverá notificar extrajudicialmente o vendedor  informando-o sobre a vontade de rescisão do contrato e devolução das parcelas.

Porém, o vendedor sempre se debaterá para a majoração da parcela de retenção em patamar máximo, isto é, 25%. Mas por que isso? Porque em alguns julgamentos o STJ mencionou tal percentual e a partir daí abriu uma brecha para essa discussão se arrastar até a Terceira Instância. Porém, a rotina nos faz crer que caso tenha sido fixado nas instâncias inferiores o STJ não revolve essa matéria fática, alegando a tão conhecida Sumula 7 do C. Tribunal, senão vejamos:

"COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA. IMÓVEL. RESCISÃO DO NEGÓCIO. PLEITO INDENIZATÓRIO. CASO TÍPICO DE ARREPENDIMENTO DO ADQUIRENTE. ATO QUE CAUSA PREJUÍZO À CREDORA. PENA PARA O DESCUMPRIMENTO QUE DEVE SER FIXADA, PARA QUE NÃO IMPORTE EM INCENTIVO AO INADIMPLEMENTO.
DEVOLUÇÃO LIMITADA A 80% DOS VALORES ADIMPLIDOS. JUROS DE MORA.
TERMO INICIAL. TRÂNSITO EM JULGADO. TENDO O ADQUIRENTE DADO CAUSA AO DESFAZIMENTO DO NEGÓCIO, E POSTULANDO O RESSARCIMENTO DE VALORES DE MANEIRA DIVERSA DO QUE FORA CONVENCIONADO, É APENAS O TRÂNSITO EM JULGADO DA DECISÃO CONDENATÓRIA QUE TEM O CONDÃO DE CONSTITUIR, E LIQUIDAR, O CRÉDITO DE QUE SERÃO TITULARES. PRECEDENTES DO STJ.
FORMA DE PAGAMENTO DO VALOR A RESSARCIR. PARCELA ÚNICA. AINDA QUE SE POSSA COGITAR DA POSSIBILIDADE DE PARCELAMENTO DA RESTITUIÇÃO, OU DE SEU DIFERIMENTO NO TEMPO, RELATIVIZANDO INCLUSIVE A ORIENTAÇÃO FIRMADA PELA SÚMULA 2 DO TJSP, TAL ESTÁ A DEMANDAR PROVA ESPECÍFICA DA PARTE INTERESSADA ACERCA DA IMPOSSIBILIDADE DE EFETUAR O PAGAMENTO DE PRONTO, DE UMA SÓ VEZ. AUSÊNCIA, TODAVIA, DE PROVA EM TAL SENTIDO. DESPESAS 'PROPTER REM'. REPASSE EXPRESSAMENTE PREVISTO EM CONTRATO. DESCABIMENTO, POIS, DA PRETENSÃO AO SEU RESSARCIMENTO.
AÇÃO PARCIALMENTE PROCEDENTE. SUCUMBÊNCIA RECÍPROCA. RECURSO DA RÉ PARCIALMENTE PROVIDO, IMPROVIDO O DO AUTOR.
O acórdão recorrido fixou em 20% o percentual de retenção das parcelas pagas pelo promitente comprador, em favor da recorrida, o que está em consonância com a jurisprudência do STJ, atraindo-se a incidência da Súmula 83/STJ quanto ao ponto.
Com efeito, a Segunda Seção do STJ, ao julgar o REsp 1.723.519/SP, DJe 2/10/2019, concluiu que, não havendo peculiaridade alguma no caso concreto, na apreciação da razoabilidade da cláusula penal estabelecida em contrato anterior à Lei 13.786/2018, deve prevalecer o parâmetro estabelecido pela Segunda Seção no julgamento dos EAg 1.138.183/PE, DJe 4.10.2012, sob a relatoria para o acórdão do Ministro Sidnei Beneti, a saber o percentual de retenção de 25% (vinte e cinco por cento) dos valores pagos pelos adquirentes, reiteradamente afirmado por esta Corte como adequado para indenizar o construtor das despesas gerais e desestimular o rompimento unilateral do contrato.
Concluiu-se também, que tal percentual tem caráter indenizatório e cominatório, não havendo diferença, para tal fim, entre a utilização ou não do bem, prescindindo também da demonstração individualizada das despesas gerais tidas pela incorporadora com o empreendimento.
(...)Ademais, quanto às despesas condominiais, o Tribunal de origem assim dispôs:
Como já bem observara, e de maneira percuciente, a Magistrada a quo, o repasse da responsabilidade sobre tais obrigações foi livremente pactuado em contrato, a teor de sua cláusula 17.3:
(...)Como venho sempre sustentando em hipóteses análogas, em matéria de contrato, o princípio da boa-fé objetiva, como corolário direto da autonomia da manifestação de vontade das partes deve ser sempre observado, sob pena de, com base no Código de Defesa do Consumidor, criar-se um verdadeiro direito não escrito e não pactuado, ao sabor das interpretações subjetivas das partes e do próprio Poder Judiciário.
Com base no Código do Consumidor, o que não se deve permitir, e que é bem diferente, é apenas a presença de cláusulas dúbias, omissas ou abusivas; não a previsão expressa, como no caso concreto, de repasse de despesas previamente conhecidas, e a partir de data certa. Se o demandante não leu referida cláusula quando subscreveu o instrumento, certamente tal omissão só lhe pode ser imputada.
A revisão dessas conclusões é providência que esbarra no óbice das Súmulas 5 e 7/STJ. A propósito:
AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. DANOS MORAIS.
ATRASO. INDENIZAÇÃO. DESPESAS CONDOMINIAIS. POSSE. IMÓVEL. PREVISÃO CONTRATUAL. SÚMULAS NºS 5 E 7/STJ. VALOR DA INDENIZAÇÃO. INOVAÇÃO RECURSAL.
[...]Nos termos do art. 85, § 11, do CPC/15, majoro em 10% (dez por cento) a quantia já arbitrada a título de honorários em favor da parte recorrida, observados os limites estabelecidos nos §§ 2º e 3º do mesmo artigo”. (Brasília (DF), 09 de dezembro de 2019. MINISTRA MARIA ISABEL GALLOTTI Relatora. AREsp 1590993. Data da publicação 18/12/2019)."

No mais e para finalizarmos temos as obrigações "propter rem". Bem de acordo com entendimento pacífico de nossos Tribunais, essas obrigações serão devidas até o transito em julgado da ação por parte dos compradores, tendo em vista que são obrigações inerentes aos proprietários, possuidores e usufrutuários.

Portanto, devemos ter em mente que o CDC aplicar-se-á nos contratos imobiliários, com a inversão do ônus da prova, e que somente o percentual de retenção ainda não foi fixado em sede de recurso repetitivo, havendo uma oscilação entre os percentuais de 10% a 25%. 

*STELLA  SIDOW CERNY 













-Advogada graduada pela FMU(1997);

-Especialização em Direito Imobiliário;
-Pós-graduanda em Direito Previdenciário;e

Atuando na Cerny Advocacia nas áreas de planos de saúde, cível, consumidor e previdenciário.
Nota do Editor:

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