Autora: Milena Martins de Oliveira (*)
Na última quinta-feira, dia 31 de outubro de 2024, a comissão de juristas criada para elaborar um anteprojeto de lei sobre o processo estrutural aprovou o relatório final do Desembargador Federal Edilson Vitorelli[1].
Mas, afinal, o que é o processo estrutural?
"Processos estruturais são demandas judiciais nas quais se busca reestruturar uma instituição pública ou privada cujo comportamento causa, fomenta ou viabiliza um litígio estrutural"[2]. É o processo coletivo onde se busca pretende a reorganização da estrutura, pública ou privada em razão do litígio estrutural.
"O problema estrutural se define pela existência de um estado de desconformidade estruturada -uma situação de ilicitude contínua, ainda que não propriamente ilícita, no sentido de ser uma situação que não corresponde ao estado de coisas considerado ideal. Como quer que seja, o problema estrutural se configura a partir de um estado de coisas que necessita de reorganização (ou de reestruturação)." DIDIER JR., Fredie, ZANETI JR., Hermes; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Elementos para uma teoria do processo estrutural aplicado ao processo civil brasileiro. Revista de Processo, v. 303, p. 45-81, mai. 2020, versão eletrônica.
Pode-se afirmar que o processo estrutural tem origem nas "class actions", dos Estados Unidos. O exemplo emblemático é o caso Brown x Board of Education que tratou da segregação racial em Escolas Públicas nos EUA.
O objetivo principal do processo estrutural é fazer uma mudança, uma transformação na realidade que está em desconformidade com direitos e garantias fundamentais. É necessário que políticas públicas sejam criadas, atualizadas e readequadas; e instituições sejam reestruturadas.
Depois que a decisão é tomada, há um acompanhamento judicial do plano de ação e/ou implementação da política pública.
No Brasil, a experiência com os processos estruturais não é nova. Nada obstante a inexistência de tratamento legal para os litígios estruturais, cita-se a Ação Civil Pública nº 93.8000533-4, conhecida como "CP do Carvão", movida em desfavor das empresas carboníferas, do Estado de Santa Catarina e da União, visando a recuperação de danos ambientais causados pela exploração de carvão mineral na região sul do Estado de Santa Catarina.
Também pode ser indicado como exemplo de processos estruturais o conjunto de ações civis públicas propostas entre 2008 e 2010 em face da Prefeitura de São Paulo, como medida para garantir vagas em creches e escolas para crianças menores de cinco anos, em conformidade com o que dispõe os artigos 208 e 30, VI, da Constituição da República.
Há também os processos estruturais trabalhistas, como o caso Ceagesp[3]. Em 2015, o Ministério Público do Trabalho (MPT) ajuizou uma ação civil pública contra a Ceagesp e o Sindicato dos Carregadores Autônomos de Hortifrutigranjeiros e Pescados em Centrais de Abastecimento de Alimentos do Estado de São Paulo (Sindicar) para que os trabalhadores fossem enquadrados na Lei 12.023/2009, que trata das atividades de movimentação de mercadorias e sobre o trabalho avulso fora das áreas portuárias. Os cerca de 3.500 carregadores autônomos eram regidos por uma norma interna da Ceagesp, que exigia cadastro e contribuição mensal para que os carregadores fossem autorizados a trabalhar. A 2ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho entendeu que a situação de desconformidade estrutural exigia uma solução ajustada e dinâmica, mediante um regime de transição flexível, a ser definido em cooperação entre as partes envolvidas e o Judiciário.
Trabalho infantil, trabalho de aprendizes, trabalho de catadores de recicláveis e questões envolvendo assédio moral também por vezes representam litígios estruturais, que reclamam ações efetivas para dar concretude a direitos fundamentais individuais e sociais dos trabalhadores.
Como se vê, a ausência de regulamentação legal do processo estrutural não impede que o Judiciário seja instado a julgar litígios estruturais e seja chamado a negociar com os atores sociais para implementação de políticas públicas e aplicação efetiva da lei.
No Supremo Tribunal Federal há várias ações estruturais, tais como a ADPF 347, que trata do Estado de coisas inconstitucional, relativo às condições do sistema prisional; a ADPF 635 , que trata da inconstitucionalidade do Sistema de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro; a ADPF 682, que trata do ensino jurídico superior no Brasil; a ADPF 709, que trata do sistema de atenção à saúde indígena; a ADPF 742, relativa à saúde indígena durante a pandemia; a ADPF 973, que cuida do racismo institucional no Brasil.
Em 2023, a teoria do processo estrutural foi incorporada pelo Supremo Tribunal Federal no Tema 698 de Repercussão Geral:
"1. A intervenção do Poder Judiciário em políticas públicas voltadas à realização de direitos fundamentais, em caso de ausência ou deficiência grave do serviço, não viola o princípio da separação dos poderes. 2. A decisão judicial, como regra, em lugar de determinar medidas pontuais, deve apontar as finalidades a serem alcançadas e determinar à Administração Pública que apresente um plano e/ou os meios adequados para alcançar o resultado. 3. No caso de serviços de saúde, o déficit de profissionais pode ser suprido por concurso público ou, por exemplo, pelo remanejamento de recursos humanos e pela contratação de organizações sociais (OS) e organizações da sociedade civil de interesse público (OSCIP)"
Nesse diapasão, a regulamentação legal do processo estrutural se faz necessária, porquanto o tratamento judicial de litígios estruturais é uma realidade. Não há dúvidas de que os Tribunais Superiores têm intervindo em políticas públicas e implementado-as pela via judicial para assegurar direitos. No entanto, nem sempre esse tratamento é adequado, tendo em vista a falta de conhecimento das técnicas procedimentais por juízes e advogados, como também aplicação inadequada dessas técnicas, o que corrobora a necessidade de uma regulamentação legal para os processos estruturais.
Então, o que esperar da regulamentação do processo estrutural?
De acordo com o relatório preliminar[4] da comissão de juristas responsável pelo anteprojeto de lei do processo estrutural no Brasil:
"Art. 1º Esta lei disciplina o processo estrutural, assim entendido aquele que tem como objeto um conflito coletivo de significativa abrangência social, cuja resolução adequada depende de providências prospectivas, graduais e duradouras."
No relatório final, comissão decidiu por definir um conceito de processo estrutural, classificando-o como "ações civis públicas destinadas a lidar com problemas estruturais". Os problemas estruturais, por sua vez, “são aqueles que não permitem solução adequada pelas técnicas tradicionais do processo comum, individual ou coletivo"[5].
Nada obstante a importância do processo estrutural, o relatório o trata como uma exceção, haja vista a inaplicabilidade para todos os casos. É o que se observa dos §§ 6º e 8º, do art. 1º do anteprojeto:
§ 6º Para reconhecer o caráter estrutural do litígio, o juiz, na decisão, levará em conta, entre outros elementos, a abrangência social do conflito, a natureza dos direitos envolvidos, as informações técnicas disponíveis, a potencial efetividade e os limites e dificuldades da solução estrutural, assim como todos os fundamentos e argumentos apresentados pelas partes.§ 8º Se identificarem o litígio estrutural em processos individuais, o juiz ou o Centro de Inteligência do Poder Judiciário deverão oficiar o Ministério Público, a Defensoria Pública e, na medida do possível, outros legitimados a que se referem o art. 5º da Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985, e o art. 82 da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, para, se for o caso, promover a propositura da ação respectiva.
A proposta segue a apresentando, no art. 2º, as diretrizes principais de um processo estrutural:
"Art. 2º São normas fundamentais do processo estrutural:I - prevenção e resolução consensual e integral dos litígios estruturais, judicial ou extrajudicialmente;II - respeito às capacidades institucionais dos poderes e dos agentes tomadores de decisão;III - efetivo diálogo entre o juiz, as partes e os demais sujeitos, públicos ou privados, potencialmente impactados pela decisão, para a construção de um contraditório efetivo na busca da solução plural e adequada;IV - participação dos grupos impactados, mediante a realização de consultas e audiências públicas e outras formas de participação direta;V - ampla publicidade e transparência;VI - consideração dos regramentos e dos impactos orçamentários e financeiros decorrentes das medidas estruturais;VII - flexibilidade do procedimento e das providências de reestruturação, observado o contraditório prévio e a proibição de decisões surpresa;VIII - tratamento isonômico dos indivíduos pertencentes aos grupos impactados;IX - ênfase em medidas prospectivas, mediante elaboração de planos com objeto, metas, indicadores e cronogramas bem definidos, com implementação em prazo razoável."
Assim, prioriza-se o consenso, as capacidades institucionais dos poderes e dos agentes tomadores de decisão, o diálogo, a participação dos grupos afetados, a publicidade e transparência, tratamento isonômico entre os indivíduos dos grupos impactados e medidas prospectivas com objeto, metas, indicadores e cronogramas definidos, bem como sua implementação em prazo razoável.
O artigo 7º trata do contraditório integrado, que permite as partes a elaboração de um plano estrutural; e, sempre que possível, a versão inicial recairá sobre o sujeito que recai o processo, valorizando o conhecimento técnico, considerando as dificuldades e obstáculos que ele possui na implementação das medidas:
"Art. 7º Integrado o contraditório e produzidas informações suficientes nos autos, o juiz dirigirá as partes para a elaboração de um plano de atuação estrutural.§ 1º Sempre que possível, o juiz facultará que a versão inicial do plano seja elaborada pelo sujeito encarregado da atividade sobre a qual recai o processo, valorizando seu conhecimento quanto ao objeto e considerando os obstáculos e as dificuldades reais da implementação das medidas."
O artigo 8º, por sua vez, prioriza sempre o consenso entre as partes.
As novas regras se aplicam a processos estruturais civis, trabalhistas, administrativos ou de controle, podendo ser utilizadas no processo penal em casos específicos.
Se aprovado, o novo regramento passará a integrar o microssistema de tutela coletiva, atualmente composto pela Lei da Ação Popular (Lei nº 4.717/65) , da Ação Civil Pública (Lei nº 7.347/85), o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90), a Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/92) a Lei do Mandado de Segurança (Lei nº 12.016/2009) e, atualmente, o Código de Processo Civil de 2015, que prevê dispositivos aplicáveis ao processo coletivo.
Segundo o relator do anteprojeto, Edilson Vitorelli, "a edição de uma lei sobre o processo estrutural tende a fomentar uma condução mais participativa, democrática e construtiva dos processos judiciais, permitindo que as violações recorrentes a direitos sejam endereçadas de forma mais ordeira e com a colaboração de todos os envolvidos"6]
A existência de um regramento para o processo estrutural trará um tratamento adequado e efetivo para a resolução de litígios estruturais para assegurar que direitos fundamentais sejam eficientemente concretizados. É o que se espera.
REFERÊNCIAS
[1]Fonte: Agência Senado;
[2] VITORELLI, Edilson. Processo Civil Estrutural - Teoria e Prática, 5ª Edição, revisada, atualizada e ampliada, São Paulo, Editora JusPodivum, 2024;
[3] Processo: RRAg-1142-17.2015.5.02.0007;
https://portal.jota.info/wp-content/uploads/2024/09/relatorio-preliminar-cjprestr.pdf;
[5]https://www.migalhas.com.br/quentes/419153/senado-comissao-de-juristas-aprova-anteprojeto-de-processo-estrutural ; e
[6] Fonte: Agência Senado.
* MILENA MARTINS DE OLIVEIRA
-Analista Judiciária da Área Judiciária do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região;
- Formada em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro;
-Pós-Graduada em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho
-Amante de leitura, contos e poesia.
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