domingo, 29 de setembro de 2024

A coragem de confrontar a si mesmo


 Autora: Fabiana Benetti (*)

Podemos pensar a coragem como algo que possa dizer a respeito a nós, a uma consciência de si. A estrutura da consciência sempre está ligada a uma exterioridade ou objetividade qualquer. A consciência estabelece uma distinção entre sujeito do conhecimento e objeto do conhecimento. Um ser vivo, aquilo com que nós nos deparamos a cada momento da nossa vida só se mantem a si mesmo em razão de sua modificação permanente. Portanto: o ser vivo é a unidade da identidade entre a mudança e a permanência. Ele tende a mudar permanentemente para continuar o mesmo.  

A vida, assim, é a totalidade dessas diferenciações que, no entanto, são suprimidas e conservadas no interior da vida. A vida é ela mesma na mudança permanente de cada uma de suas manifestações que se realiza em cada ser vivo particular de permanecer o mesmo na mudança permanente. Assim como a consciência permanece a mesma em cada objeto que se apresenta como objeto de conhecimento para um sujeito; assim como a consciência só é consciência de si na medida que ela se reconhece nos objetos diferentes dela; assim a vida só se realiza na singularidade de cada ser vivo. Para não desaparecer o circuito do desejo, esse não poderá ser satisfeito pelo objeto.  

Freud define desejo como uma força inconsciente que impulsiona comportamentos e pensamentos. Para ele, o desejo é uma manifestação das pulsões muitas vezes reprimidas ou não plenamente conscientes. A compreensão dos desejos conscientes ou inconscientes é fundamental para a psicanálise, pois revela conflitos internos a aspectos a se conhecer da psique.

De Freud trazemos a ideia de que a coragem pode ser entendida como a capacidade de enfrentar e lidar com desejos, impulsos reprimidos e conflitos internos, portanto exige uma forma de coragem psíquica para confrontar aspectos dolorosos e perturbadores da psique, trazendo assim a capacidade de lidar com a complexidade e os desafios dos próprios desejos inconscientes e a disposição para enfrentar e trabalhar com esses aspectos profundos e muitas vezes desconfortáveis da psique. 

Uma escolha implica a direção de nossas vidas, a afirmação e reconhecimento que busca o aspecto crucial do desenvolvimento da autoconsciência. É como estar à beira de um abismo. Situação que pede uma escolha verdadeiramente a respeito de nós mesmos. 

Nessas situações com as quais nos defrontamos com algo que tenha a ver com nossas próprias escolhas, em momentos quando estamos numa certa fronteira, a coragem se apresentará como algo importante que acessa o eu nu, onde expomos a psique em sua vulnerabilidade, que pode ir em direção ao pecado que se apresenta nas traições das tradições sociais. Trata se de uma escolha e ação naquele instante que nós nos colamos na soleira da transgressão.    

    É porque se trata de uma escolha e ação que nesse exato momento somos nós que fazemos. Como se estivéssemos à beira de um precipício. O que mais tememos é a tentação de nos lançarmos no espaço. Tudo se passa como se o abismo nos atraísse de forma irresistível. O limiar do pecado, como se nada pudesse nos deter pelo fascínio absoluto da entrega.  

     Ante isto, nós sentimos angústia: ela traz um estado de suspensão do ego de tal maneira, que não podemos nos agarrar em nada. Uma situação sem qualquer referência, orientação ou ponto de apoio. Uma situação que estamos num confronto que nos coloca cara a cara com o que não sabemos muito o que é; afinal, é o que somos nós, o que sou eu, o que é a minha vida e o que constitui o sentido da minha existência. Este é o abismo diante do qual nos colocamos, justamente isso que o tempo todo procuramos amortecer, anestesiar. De alguma forma encobrir, pela dificuldade de confrontarmos a nós mesmos. Não é apenas a possibilidade no salto do abismo, mas sim a possibilidade da possibilidade, a consciência que essa possibilidade é meramente possível. Nós assim vivemos uma experiência de absoluto estranhamento, tudo aquilo que era familiar, acostumado, se retrai e a indeterminação total nos engole. É como se tivéssemos tomado a consciência naquele instante em que tudo é possível, que efetivamente podemos fazer qualquer escolha possível. Ou seja, colocamo-nos em uma situação como se a única instancia responsável pela decisão que se toma naquele momento e a partir dessa escolha, se torna realidade. Para exatamente sermos capazes de estar frente a frente com a permanente possibilidade da possibilidade é fundamental a coragem. A coragem é a virtude necessária para essa experiência. Apenas isso nos coloca diante de nós mesmos, ou seja: só isso nos coloca em uma situação em que nós nos mostramos a nós mesmos absolutamente sós e sem qualquer defesa. Aqui, nada e nem ninguém pode decidir por nós. Aqui, nós não temos qualquer ligação ou relação ao outro ou ao objeto, muito diferente da experiência do medo, sempre fixado em algum objeto. A angústia é uma inquietação que diz respeito a esta situação existencial que nos revela o nada. 

Precisamente o nada ou a angústia é o que traz a permanência da possibilidade da possibilidade. Precisamente porque estamos no vácuo que está vazio de qualquer tabua de salvação, que traz a confrontação de mim, comigo mesmo. Desta forma, não ser confrontado com nenhum papel social que em geral define minha identidade. Não ser confrontada como mãe, profissional, filha, amante, homem ou mulher: nenhum modo que me defina, sem qualquer referencial. Estar colocado diante de si mesmo é precisamente estar diante de uma possibilidade, de um conjunto indefinido de possibilidades de ser. Esta experiência vai além dos papeis sociais que aceitamos, introjetamos, performamos, assim nos lança para o que eu efetivamente sou fora desses papéis, o que de fato eu sou para além do que projeto ser. Mesmo que evitemos encarar o fato de que as escolhas dependem unicamente de nós mesmos. Exatamente é esse o abismo no qual nos deparamos e por isso que procuramos um alívio desse fardo, uma escolha de que alguém decida por nós o que nós somos. Aqui se impõe tratar dessa realidade que nos coloca face a face conosco mesmo, com nossa situação existencial com o qual nos defrontamos sempre nos momentos de decisão de nossas vidas.   

   Portanto, podemos nos abrir em uma experiência como essa a partir do instante, pelo fato do instante ser a realidade do tempo. O tempo do ponto de vista desse momento existencialmente concreto. O que constitui a realidade do tempo a não ser o presente. O que é o presente a não ser o instante. O que é o instante? o instante é o real que habita o acontecimento e, quando nos damos conta disso, ele não é mais o instante. O instante é precisamente aquilo que é ao mesmo tempo o real do tempo, porque o futuro ainda é o presente que ainda não é e o passado é o presente que deixou de ser: o instante é o presente que deixa de ser no momento que é. O instante é a identidade da identidade e da diferença, é nesse contraditório que constitui a realidade do tempo, é nele que se mostra então como nós podemos viver esse momento que nos coloca face a face conosco. Aquilo que vivemos em nossa singularidade é o instante que é esta abertura que mostra a realidade de nossa liberdade. Porque o próprio instante é um nada, é o novo, ele próprio é a impermanência onde falta o fundamento. O instante é a realização da impermanência que mostra esse nada, esta indeterminação absoluta é exatamente o que é a nossa vida.  

Aqui se fundem: a coragem, a angústia, o instante e o si próprio, pois nós somos colocados diante de nós mesmos. Isso traz muita angústia, deixa-nos suspensos sem ego diante da escolha e ação singular que a todo instante nos define nesse instante, a cada instante buscamos a coragem para tomarmos uma decisão. É quando nós nos colocamos em uma situação no instante singular e particular, que nos mostra esse abismo que se abre e convoca nossa coragem de existir. A angústia que habita a coragem traz a possibilidade de maior consciência sobre nós mesmos em relação as escolhas que fazemos nos instantes eternos. 

Evoquemos Nietzche, na terceira parte do Zaratustra, no texto "da visão e enigma".  A coragem traz a decisão diante do abismo, aquilo que não tem explicação, não tem fundamento no ponto de vista da nossa existência, que é o sofrimento- esse é o ponto fundamental- por sermos finitos e mortais. Porém, o tempo converge no portal que o instante nos oferece, é exatamente o limiar entre o passado e o futuro. Portanto, o instante traz o encontro do passado e futuro, onde o agora pode se repetir eternamente.  

Cada instante da vida tem a condição de sua permanência, podendo se repetir eternamente, cada instante é determinado por toda infinita serie dos instantes que o precederam até agora e que a decisão que você toma nesse momento vai definir a serie posterior e futura de todos os outros instantes. O eterno retorno traz a concepção do tempo centrado completamente no instante e esse é o momento pontual, impermanente, transitório, que pode definir a face da eternidade. Há algo que a vida e o instante trazem em uma realidade única e preciosa. A vida pensada como uma beleza única e singular traz a consciência de cuidar de cada instante da vida de forma verdadeira, que faz com que tomamos a nossa vida com nossas próprias mãos, trazendo a necessidade do cuidado que temos que ter a cada escolha. O sentido da vida está em cada instante que vivemos nesse concreto instante agora. Se desejamos que esse instante de presença, sem fianças ou garantias do outro, mas que nossa existência dependa de nós mesmos, dadas essas condições que o outro ou o próprio Deus não nos salvará. Desta forma a imanência na nossa existência transcorre no horizonte do tempo que não seja pensado como um ideal de realização, mas sim como algo que está centrado no instante e na escolha.  

O instante é ontologicamente uma vida que se justifique trazendo a possibilidade da desconstrução do poder sobre aquilo que foi e, portanto, não posso modificar. Mas, eu posso querer que aquilo que foi volte a ser. Só assim eu reparo o passado e invento o futuro. Aquilo que foi “estar no instante” é o que eu quero que volte novamente e que continue transmutando em outras possibilidades e modos de acontecimentos. Servindo o fluxo e a lei do eterno retorno dos instantes na sua diferença. Movimento de vida e de morte que traz o devir como um modo de vida, mata a negação da vida que é trazida pela compaixão e o nojo que fomentam o niilismo. Desta forma, a possibilidade de afirmar a vida é abandonar o eterno retorno do mesmo, ou o que ressentimos, abrindo-se para a presença das escolhas que estarão sempre trazendo a angústia frente ao novo de si mesmo junto com a coragem de atravessar essa angústia, para assim poder fluir e acontecer afirmando a vida nas singularidades dos instantes. 

 *FABIANA BENETTI











-Psicóloga, psicanalista, especialista em psicossomática e esquizoanalista;
-Psicóloga graduada pela Universidade Paulista(1997);

-Aprimoramento em Analises do comportamento aplicado(ABA) United Response ,Londres,2001; 

-Pós Graduada em Cross Cultural Psychology pela Brunel University em  Londres, 2002;
- Psicanalista com especialização em psicossomática no Instituto Sedes Sapientiae,2005-2014;
-Aprimoramento na psiquiatria infantil no IPQ ( Hospital das Clínicas)2013-2016;
-Atendimento em consultório particular em São Paulo-Tel/what´s 11 985363035.

-Membro do Departamento de Psicossomática do Instituto Sedes Sapientiae;e

-Agenciamento  em Filosofia e Esquizoanálise com Peter Pál Pelbart e Luiz Fuganti.


Nota do Editor:


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