sábado, 2 de agosto de 2025

Reflexões sobre a atividade de pesquisa nos cursos de graduação em Administração


 @ Octavio Ribeiro de Mendonça Neto 

 A Constituição Brasileira estabelece no seu artigo 2027 que: "As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão." Nesse sentido, no espírito do legislador, as Universidades devem manter atividades didáticas voltadas para o aprendizado dos alunos, ministrando aulas (ENSINO); desenvolver, aplicando o método científico, atividades de pesquisa materializadas principalmente, mas não exclusivamente, no Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) e nos projetos de Iniciação Científica.(PESQUISA) e; de acordo com o artigo 43 da Lei 9394 de 1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) " Promover a extensão, aberta à participação da população, visando à difusão das conquistas e benefícios resultantes da criação cultural e da pesquisa científica e tecnológica geradas na instituição." (EXTENSÃO)[


No presente texto, vamos nos ater às atividades de Pesquisa, nos Cursos de Graduação da área de Administração, sem esquecer contudo indissociabilidade entre os três eixos (Ensino, Pesquisa e Extensão). Nos Cursos de Graduação em questão, a atividade de Pesquisa se materializa basicamente na disciplina de Metodologia Científica e no Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) e, em menor escala, em termos de volume, nos Projetos de Iniciação Científica.

No meu entender, baseado na minha prática de educador e pesquisador de longa data, o processo de elaboração do TCC constituiu, uma das etapas mais importantes, talvez, ouso afirmar, a mais importante na formação do docente da área de gestão.

Por que de uma afirmação tão peremptória?

Senão vejamos: O Parecer do Conselho Nacional de Educação / Câmara de Educação Superior de 2002 (CES/CNE 0146/2002) que trata Diretrizes Curriculares Nacionais dos cursos de graduação nas áreas em questão estabelece, dentre as competências e habilidades desejadas do formando: "reconhecer e definir problemas, equacionar soluções, pensar estrategicamente, introduzir modificações no processo produtivo, atuar preventivamente, transferir e generalizar conhecimentos e exercer, em diferentes graus de complexidade, o processo da tomada de decisão."

A melhor forma de desenvolver a competências e habilidades supracitadas, , é, sem sombra de dúvidas, o processo de elaboração do TCC. É através desse processo que o docente irá exercer a interdisciplinaridade e aplicar, na prática e de forma aprofundada, o método científico, apreendido principalmente na disciplina de Metodologia Científica. O Método Científico se resume na aplicação da lógica na ciência e se constitui de um conjunto de regras e procedimentos básicos e na observação sistemática e controlada de experiências ou pesquisa de campo que o docente – para maiores detalhes ver Popper (2005) – É através da aplicação desse método, que o docente irá aprender a identificar problemas e equacionar soluções fundamentadas.

Esse conhecimento é importante, indispensável eu diria, para um bom desempenho da prática profissional. Sem ele , o profissional fica limitado a se referir a sua experiência com problemas semelhantes que vivenciou no passado, o que é sem dúvida importante, mas de pouca utilidade quando se defrontar com problemas novos, de natureza complexa, o que é cada vez mais uma constante no mundo contemporâneo dos negócios. Pior ainda, e com resultados mais desastrosos é quando se recorre ao achismo, ao senso comum ou ao comportamento de rebanho (tendência para fazer o mesmo que os outros fazem, sem uma avaliação crítica). O comportamento de algumas empresas durante a epidemia do COVID 19 é um bom exemplo, já que esse foi um problema complexo, sem referências anteriores (a referência mais próxima foi a epidemia da gripe espanhola em 1910, que ocorreu em um contexto totalmente diferente do atual).

Mas se tudo isso é sobejamente conhecido, por que refletir sobre isso?

Ocorre que o mesmo Parecer do Conselho Nacional de Educação / Câmara de Educação Superior de 2002 que estabelece as competências e habilidades desejadas do formando de Administração, estabelece também que "[...] a Monografia (TCC) se insere no eixo dos conteúdos curriculares opcionais, cuja adequação aos currículos e aos cursos ficará à cargo de cada instituição que assim optar [...]" além de observar que "[...] a monografia (TCC), pelas suas peculiaridades, deve ter, em cada instituição que por ela opte expressamente, regulamentação própria, com critérios, procedimentos e mecanismos de avaliação bastante explícitos, bem como diretrizes técnicas relacionadas com a sua elaboração." Em resumo, as Instituições de Ensino Superior (IES) têm a opção de exigir ou não a elaboração do TCC e, no caso de optarem, tem a liberdade de terminar como ele deve ser elaborado e avaliado. Aqui cabe uma observação: A opção é da IES e não do aluno, como alguns maldosamente querem fazer crer.

Isto posto, o problema sobre o qual propomos uma reflexão reside justamente no caráter opcional do TCC. Esse caráter opcional do TCC tem levado muitas IES, a não incluir o TCC nas suas grades curriculares. Isso normalmente se observa naquelas IES que encaram a atividade de ensino como um negócio cujo foco é o lucro , e tratam seus alunos como clientes, cuja satisfação deve ser atendida a qualquer custo, satisfação essa que não tem nada a ver com a qualidade do ensino e com o desenvolvimento de uma visão crítica, mas sim com a facilidade na obtenção do diploma.

Diante desse contexto, para essas IES, a não exigência do TCC é uma forma condizente com seus reais valores pois não só possibilita uma redução de custos contribuindo dessa forma para a maximização dos lucros, mas também se alinha com a satisfação de seus "clientes", facilitando a obtenção do diploma.

Isso não se aplica aquelas IES, e temos vários exemplos delas no setor privado, confessionais ou não, cuja primeira preocupação é a educação, com foco na formação de um aluno que tenha capacidade de exercer a sua cidadania de forma plena e sua profissão de forma ética e eficiente. Evidentemente essas IES, têm que garantir sua sustentabilidade financeira, mas isso não implica na obtenção de lucros extraordinários para serem distribuídos a seus acionistas.

Sempre fui favorável e me empenhei pela democratização do ensino, mas isso não pode ser feito a qualquer custo, muito menos facilitando e promovendo a industrialização do ensino. Educação não é um negócio, educação é um processo de desenvolvimento humano.

Referências Bibliográficas

BRASIL.Constituição (1988). Art. 227. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República,. 

BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, v. 134, n. 248, 23 dez. 1996. Seção 1, p. 27834- 27841. Disponível:https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm. Acesso em 03/07/2025;

CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO. Câmara de Educação Superior. Parecer CNE/CES nº 146/2002, de 03 de abril de 2002. Disponível em https://www.gov.br/mec/pt-br/cne/normas-classificadas-por-assunto/diretrizes-curriculares-cursos-de-graduacao. Acesso em 07/07/2025;

Popper, K. (2005). A Lógica da Pesquisa Científica. 2 ed. Cultrix, São Paulo.

OCTAVIO RIBEIRO DE MENDONÇA NETO














-Graduado em Engenharia Mecânica pelo Instituto Mauá de Tecnologia (1972);

-Especialista em Economia de Empresas pela Fundação Getúlio Vargas – FGV/ SP – CEAG (1977);

-Mestre em Ciências Contábeis e Atuariais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2002) e

Doutor em Contabilidade e Atuária na FEA / USP (2007).

Atualmente é Professor Adjunto I da Universidade Presbiteriana Mackenzie nos cursos nos cursos de Mestrado e Doutorado Profissional do Programa de Pós-Graduação em Contabilidade,Finanças e Tecnologias de Gestão .

Nota do Editor:

Todos os artigos publicados no O Blog do Werneck são de inteira responsabilidade de seus autores.

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

Pensando de Madrugada

@ Luiz Antonio Sampaio Gouveia


Nunca pensei fosse passar por tanto. Lembro-me nem sei mais que ano fora, um amigo chegar à minha sala e se referir a mim, Pitô, o dinheiro acabou, persuadindo-me que parasse de trabalhar porque não haveria mais razão para meu trabalho, já que não haveria como me remunerar. Era o Plano Collor, um delírio deste país desvairado que acredita em qualquer aventureiro que, em passe de mágica, nos possa salvar. Entretanto, não parei minha atividade e dias depois, tendo conseguido a liminar que buscava na Justiça, empossei meu cliente nos imóveis objeto de minha atividade, que me trouxe o primeiro ganho de minha Advocacia, habilitando-me a viver sei lá em qual seria moeda daqueles dias.

Antes disso, de meu escritório, na Rua XV de Novembro, ouvia as patas dos cavalos da ditadura e por vezes, saia à janela, a vê-las faiscando no rastro da cavalhada que raspava na pedra das calçadas enquanto alguns cavaleiros certamente postos na rua para faina do que diziam ser a caça aos comunistas e então, um ou outro infante se desequilibrava do lombo dos animais e o povo fosse raposa caçada pelas cavalgadas matinais da nobreza inglesa. Amargando a tristeza em saber das repulsivas porradas que se não ouvíamos, sentíamos dos cárceres profundos do que em acinte chamavam Operação Bandeirante, uma aliança desonrosa entre maus soldados e uma burguesia desesperada que os mantinha.

Vieram as diretas. Em seguida, a Constituinte. Parecia um momento épico em que a voz do povo ali era a voz de Deus. Reordenava-se o Brasil, alinhando-se às tendências que haviam vencido na Europa, o pesadelo do fascismo. Fundidos valores da democracia constitucional com as aspirações socialistas, que nos pareciam dirigir a uma eterna alvorada de harmonia social, ainda que a hibridez da Carta buscasse a superação da luta de classes, valorizando o trabalho e a iniciativa privada. A repulsa a golpes militares daí foi tanta, que tendo em século distante a Monarquia sido apeada do Poder por um golpe militar, a abominá-lo, a nova Constituição fez um plebiscito a indagar, República ou Monarquia? Dizia-se nunca mais! Como? Se não lavamos as feridas.

De repente, um quadro ridículo. Um velho Rolls Royce, “old fashion”, corria pelas alamedas siderais de Brasília, levando no bojo, um novo presidente e na garupa, um doido arcado sobre aquele ser humano excitado, que diziam que seria um filho dele, a protegê-lo. Não sei de quê! Qualquer normal teria consciência em estarmos em um quadro de hospício. Mas, não! Todo mundo se calou. Em seguida, a parlapatice contra o socialismo. A ressureição de um longínquo primeiro de abril, que nem tem importância que fosse mesmo um trinta e um de março.

Agora vi pela televisão outro filho do cara. Um Nosferatu, em catarse orgasmática com sua maldade infernal, deleitando-se com seu poder em aliança com o Átila, que, afinal, não sei se destrói o mundo ou o capitalismo.

Como então, concluir? Não sei! Melhor rezar...

LUIZ ANTÔNIO SAMPAIO GOUVEIA
























-Advogado graduado em Direito pela Faculdade de Direito da USP (Arcadas) (1973);

-Mestre em Direito Público (Constitucional) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo;

-Especialista pela FGV, em Finanças (EAESP) e Crimes Econômicos (GVlaw);

-Orador Oficial e Conselheiro do Instituto dos Advogados da São Paulo e

 -CEO de Sampaio Gouveia Advogados.


Nota do Editor:

Todos os artigos publicados no O Blog do Werneck são de inteira responsabilidade de seus autores.

quinta-feira, 31 de julho de 2025

Vocação hereditária e o anteprojeto de reforma do Código Civil (PL 4/2025)


 

@ Flávia Beatriz Palmejano Lopes

O atual Código Civil, Lei 10.406/2002, embora esteja em vigor há pouco mais de vinte anos, começou a ser elaborado há muito mais tempo, remontando sua criação ao final da década de 1960[1], razão pela qual sempre se disse que, em determinadas matérias, ele já nasceu ultrapassado.

Diante disso e depois de diversas pequenas “reformas”, foi elaborado um anteprojeto de reforma do Código Civil, convertido em projeto de lei, atualmente tramitando perante o Senado Federal – Projeto de Lei 4/2025.

No que tange ao direito sucessório brasileiro, há uma ordem de herdeiros a ser seguida, sendo que os que estão nos primeiros lugares excluem aqueles que vêm depois, ressalvando que o detentor do patrimônio pode dispor de cinquenta por cento de seus bens, sendo a outra metade, obrigatoriamente, destinada a seus herdeiros legais, chamados de necessários.

Assim, atualmente, a ordem da sucessão legítima está prevista no artigo 1829, incisos I a I

De acordo com o artigo 1829, inciso I, do Código Civil atual, a ordem da sucessão é a seguinte: primeiro, herdam os descendentes em concorrência com o cônjuge[2] sobrevivente, salvo se o falecido fosse casado no regime da comunhão universal de bens, ou no da separação obrigatória de bens, ou, ainda, se casado no regime da comunhão parcial e o autor da herança não houver deixado bens particulares.

Dessa forma, havendo descendentes, estes herdam e concorrem, ou seja, "dividem" a herança do falecido com o cônjuge sobrevivente desde que o regime de casamento por este adotado seja o da comunhão parcial de bens (e existam bens exclusivos do autor da herança) ou da separação convencional de bens, respeitando-se os quinhões previstos no artigo 1832 do Diploma Civil.

A explicação para isso é que, havendo cônjuges, se casados pelo regime da comunhão total, o herdeiro sobrevivente é meeiro dos bens do falecido e não herdeiro; mesmo raciocínio aplicado aos bens amealhados onerosamente durante o casamento daqueles casados pelo regime da comunhão parcial – o sobrevivente só tem direito a herdar bens dos quais ele não é meeiro.

Em relação aos casados no regime da separação convencional de bens, ou seja, aquele não decorrente de força de lei, não há de se falar em meeiro, portanto, esse cônjuge, é herdeiro da totalidade dos bens pertencentes ao cônjuge falecido, ao passo em que o legislador entendeu ser melhor, nos casos em que existem herdeiros, excluir da sucessão o cônjuge sobrevivente quando casados pelo regime da separação obrigatória de bens.

Não havendo descendentes e havendo cônjuges (não importando o regime de bens), estes concorrem com os ascendentes do falecido (artigos 1829, II e 1837), não havendo ascendentes, herda somente o cônjuge sobrevivente (artigos 1829, III e 1838), e, por fim, se hão houver, descendentes, ascendentes ou cônjuge sobrevivente, herdam os colaterais, até o quarto grau (artigos 1829, IV e 1839).

Ocorre que, se o Código Civil de 2002, ou seja, o Código Civil vigente, diferenciou-se do Código Civil anterior, de 1916, ao incluir o cônjuge sobrevivente como herdeiro necessário concorrendo com descendentes e ascendentes (artigo 1829, CC/2002 e artigo 1603 CC/1916), o anteprojeto do Código Civil, em 2025, retoma o entendimento do século passado, retirando a concorrência do cônjuge sobrevivente a descendentes e ascendentes.

Assim prevê o artigo 1829 do Projeto de Lei 4/2025:
"A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:
I - aos descendentes;
II - aos ascendentes;
III - ao cônjuge ou ao convivente sobrevivente;
IV - aos colaterais até o quarto grau."
Nota-se, dessa forma que, havendo descendentes, estes herdam sozinhos, assim como se não houver descendentes, mas houver ascendentes, estes também herdam sozinhos.

De outro lado, o legislador já incluiu o convivente como herdeiro necessário, bem como, desde logo, determinou que colaterais somente até o quarto grau têm algum direito sucessório (artigo 1829, incisos III e IV).

Pois bem. E na prática, como ficam as pessoas casadas por qualquer regime de bens que não o da comunhão total de bens, que não são meeiras de todo o patrimônio?[3]

Tudo depende da intenção de cada um.

Sendo aprovado o PL 4/2025, nos casos em que não houver meeiros, caberá a cada um dos cônjuges – com a ciência ou não do outro – decidir se quer ou não que o outro herde parte de seu patrimônio.

Desejando que seu cônjuge herde parte de seu patrimônio, deverá o cônjuge pré-morto, em vida, por óbvio, optar por mecanismos que salvaguardem o patrimônio que deseja dispor ao outro – seja por doação, seja por testamento.

Quais serão os desmembramentos, só o futuro dirá mas, repise-se, viveu-se muito mais tempo com a lei não prevendo a concorrência de cônjuges com descendentes e ascendentes do que o contrário.

REFERÊNCIAS

[1] https://www.camara.leg.br/noticias/24906-historia-do-novo-codigo-civil/#:~:text=O%20novo%20C%C3%B3digo%20Civil%20come%C3%A7ou,de%20transi%C3%A7%C3%A3o%20fixado%20em%20lei

[2] Onde está escrito cônjuge, deve-se ler além de cônjuge, companheiro

[3] Tendo-se em mente o mesmo vale para os companheiros que não adotaram esse regime de bens.

FLÁVIA BEATRIZ PALMEJANO LOPES
















-Graduação em Direito pela  Universidade Prebsteriana Mackenzie (2002);

Pós- graduação em Direito Civil pela Universidade Prebsteriana Mackenzie (2005); e
 
Pós- graduação em Direito de Família e Sucessões  pela Escola Superiopr da Advocacia - ESA (2009).


Nota do Editor:

Todos os artigos publicados no O Blog do Werneck são de inteira responsabilidade de seus autores.

Herança Digital


 @  Herança Digital


Muito se fala em herança de imóveis, em herança de dinheiro, em herança de todo o tipo de coisas materiais tangíveis e palpáveis, mas hoje o mundo e a economia não se restringem a isso.

Com um mundo cada vez mais conectado e com a internet presente na vida de todos, o metaverso parece ter vindo para ficar, assim como diversos bens digitais que são absolutamente imateriais e intangíveis, mas com valor econômico a ser considerado.

Me refiro desde bibliotecas de livros digitais no kindle (aqueles armazenados na Amazon), por exemplo, até milhas aéreas, criptomoedas, etc. Sem contar os tantos perfis em redes sociais que monetizam as suas contas com divulgação de produtos e serviços, além de infoprodutos vendendo a todo o tempo.

Como fica a herança desses bens digitais?

Não temos ainda legislação que abarque tais questões, mas urge que tenhamos já que essa evolução e essa nova realidade veio para ficar.

Os doutrinadores são bastante divergentes quanto a esse tipo de herança, mas a maior parte deles defende a ideia de que os bens sem cunho patrimonial como emails, conversas de whatsapp, acervo de fotos em nuvens, contas em redes sociais (sem exploração econômica).....não devem ser partilhados por constituírem questões da vida privada do falecido e que sua privacidade deve ser preservada, exceto que ele tenha feito alguma disposição em sentido contrário e de forma expressa em testamento.

Esses bens são considerados bens digitais personalíssimos e sem nenhum conteúdo econômico.

Principalmente depois da redação do artigo 5º da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), nº13.709/2018, que prevê "informação relacionada a pessoa natural identificada ou identificável;" e "dado pessoal sobre origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural...", é necessário bastante cautela em relação à privacidade das pessoas, mesmo depois da sua morte.

Já em relação aos bens digitais de caráter patrimonial e econômico, como as criptomoedas, as bibliotecas virtuais, as milhas aéreas.....a doutrina majoritária entende que pode e deve ser partilhada aos herdeiros. Nesse sentido, aliás, é o teor do Enunciado nº 687 CJF: "O patrimônio digital pode integrar o espólio de bens na sucessão legítima do titular falecido, admitindo-se, ainda, sua disposição na forma testamentária ou por codicilo".

Entretanto, ainda que tenhamos essa definição superficial dos bens digitais (personalíssimos ou de valor econômico) a grande verdade é que inexiste legislação pertinente, o que deixa um vácuo para os operadores do direito.

E não têm sido raros os casos apresentados aos Tribunais para dirimir controvérsias sobre o assunto.

Em recente decisão da 27ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo reformou uma decisão de 1º grau que havia indeferido o pedido de uma mãe de acesso aos e-mails e demais mensagens do filho. O apelo da mãe era o interesse em elucidar a morte precoce e não explicada do filho. O Tribunal entendeu que deveria prevalecer o legítimo interesse da apelante em buscar elucidar as circunstâncias do falecimento de seu filho, bem como sua suspeita particular de suicídio e que, esse interesse teria mais relevância, no caso concreto, que o risco à violação da privacidade do de cujus ou de terceiros. APELAÇÃO Nº: 1123920-82.2023.8.26.0100.

A 3ª Câmara também do Tribunal de Justiça de São Paulo também concedeu a uma mãe o direito ao acervo digital da filha falecida com o desbloqueio de seu celular. Para o relator do caso, não se vislumbrava violação a eventual direito de personalidade da de cujus no contexto dos autos. APELAÇÃO Nº 1017379-58.2022.8.26.0068.

Já em sentido contrário, entretanto, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, no Agravo de Instrumento de nº 1.0000.24.174340-0/001 negou o pedido de um espólio para acesso ao acervo da conta Apple do falecido, onde constaria o seu acervo fotográfico, sob o argumento de que se tratava de conteúdo personalíssimo, e se o falecido quisesse, o teria compartilhado em vida.

Na ausência de legislação específica, plataformas como o Facebook e o Instagram adotam políticas internas que permitem ao usuário, em vida, decidir sobre o destino de seu perfil em caso de falecimento. No caso do Facebook, é possível nomear um “contato herdeiro”, que poderá realizar ações limitadas na conta memorial, como fixar publicações e atualizar fotos de perfil, sem acesso ao conteúdo privado. Já o Instagram possibilita apenas a transformação da conta em memorial, mediante comprovação da morte, não permitindo sua administração por terceiros. Ambas as plataformas respeitam a vontade expressa do usuário, mas, na ausência dessa manifestação, o acesso por familiares ou herdeiros dependerá de autorização judicial.

É de suma importância, portanto, que a nossa legislação se adeque a essa nova realidade, mas enquanto isso não acontece, o ideal é que, havendo interesse, as pessoas se valham de testamentos e codicilos para determinar o futuro de seu patrimônio digital, seja ele meramente personalíssimo ou econômico.

DENISE MOYSES TUSATO















-Graduada pela PUC/SP (1993);

-Especializada em Direito de Família CEU – Centro de Extensão Universitária(1998);

-Pós Graduada em Direito de Família e Sucessões – Faculdade Legale (2017);

-Pós Graduação em Direito Sistêmico pela EPD(2024):

- Mediadora certificada pelo CNJ

- Advogada Civilista, atuante na área de Família e Sucessões, nacional e internacional.

Instagram: @dra.denisetusato

Nota do Editor:

Todos os artigos publicados no O Blog do Werneck são de inteira responsabilidade de seus autores.

quarta-feira, 30 de julho de 2025

Limites e garantias para o consumidor no cancelamento de passagens aéreas

@ Alexandre Henrique dos Santos

Introdução

À primeira vista, pode parecer um tema já consolidado ou de entendimento pacífico. No entanto, decidi escrever sobre a questão do cancelamento de passagens aéreas por iniciativa do consumidor a partir de uma experiência pessoal que me fez refletir sobre as dificuldades práticas que os passageiros ainda enfrentam para garantir um direito aparentemente assegurado pelo ordenamento jurídico.

Cerca de seis meses atrás, embarquei em uma viagem para a Itália com minha família e, por motivos particulares, precisei cancelar parte das passagens adquiridas. Realizei a solicitação com antecedência de aproximadamente 45 dias e, para minha surpresa, a companhia aérea insistiu em aplicar uma taxa de 30% do valor das passagens, ainda que o pacote adquirido previsse expressamente a possibilidade de cancelamento com reembolso integral. As justificativas fornecidas foram diversas e contraditórias: a cada novo contato, as informações mudavam, e os atendentes pareciam não seguir um critério objetivo.

Infelizmente, o caso não pôde ser resolvido administrativamente, e precisei recorrer ao Judiciário para assegurar o que, como advogado, considerava um direito inequívoco garantido pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC). Confesso que não me agradou a necessidade de ingressar com uma ação judicial, mesmo atuando em causa própria, pois sabia que a questão poderia ter sido solucionada de forma extrajudicial. Não pleiteei indenização por danos morais, apenas exigi o reembolso correto dos valores pagos. A decisão judicial confirmou a ilegalidade da retenção desproporcional e determinou a devolução integral das quantias devidas.

Diante dessa experiência, fiquei pensando: se eu, um advogado técnico e conhecedor da legislação, enfrentei dificuldades para fazer valer um direito claro e objetivo, imagine o consumidor comum, sem formação jurídica? Esse episódio reforçou minha percepção de que o tema, longe de estar plenamente resolvido, ainda exige debate, informação e conscientização.

A Relação de Consumo no Transporte Aéreo

No Brasil, o transporte aéreo internacional é regido por um conjunto de normas nacionais e internacionais. No plano interno, o Código de Defesa do Consumidor (CDC) (Lei nº 8.078/90) confere proteção ampla ao passageiro, reconhecendo-o como parte vulnerável na relação contratual com a companhia aérea, que é enquadrada como fornecedora de serviços (art. 3º, § 2º, do CDC).

Além disso, as normas da Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC), especialmente a Resolução nº 400/2016, estabelecem regras específicas para o cancelamento de passagens. Em nível internacional, a Convenção de Montreal (1999) disciplina a responsabilidade das companhias aéreas, mas seu escopo principal está relacionado a extravio de bagagens e atrasos, não se aplicando diretamente ao cancelamento voluntário pelo passageiro.

Cancelamento da Passagem pelo Consumidor e o Direito ao Reembolso

Muitos consumidores não sabem, mas o Código Civil Brasileiro garante o direito ao cancelamento da passagem aérea com restituição do valor pago, salvo a aplicação de multa compensatória razoável. O artigo 740, caput, do Código Civil, dispõe que:

"O passageiro tem direito a rescindir o contrato de transporte antes de iniciada a viagem, sendo-lhe devida a restituição do valor da passagem, desde que feita a comunicação ao transportador em tempo de ser renegociada."

Isso significa que, se o cancelamento ocorrer com antecedência suficiente para que a companhia aérea possa revender o bilhete, a retenção do valor pago não pode ser excessiva. A multa compensatória aplicada não pode ultrapassar 5% do valor da passagem, conforme previsto no §3º do mesmo artigo.

Portanto, cláusulas contratuais que estabeleçam a perda integral do valor pago ou a retenção de um percentual elevado são consideradas abusivas e passíveis de revisão pelo Poder Judiciário.

Cláusulas Abusivas e o Direito do Consumidor

Da aplicação do Código de Defesa do Consumidor ao caso, resulta a conclusão de que é abusiva a retenção do preço das passagens ou a restituição de percentual mínimo, como aconteceu. Deve-se ter em vista o contido no artigo 6º, V, do CDC, que dispõe:

"São direitos básicos do consumidor: V - a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas."

Na mesma senda, restam violados os seguintes dispositivos do CDC:

Art. 39, V – Veda a exigência de vantagem manifestamente excessiva por parte do fornecedor;

 Art. 51, II – Considera nula a cláusula que retire do consumidor a opção de reembolso;

 Art. 51, IV – Proíbe obrigações iníquas e abusivas que violem a boa-fé contratual;e

 Art. 51, §1º, III – Presume-se exagerada a vantagem que se mostra excessivamente onerosa para o consumidor.

Além disso, a ANAC em sua Resolução 400/2016, permite que as companhias aéreas alterem ou cancelem voos sem penalização, desde que avisem os passageiros com 72 horas de antecedência. A mesma lógica deve ser aplicada ao consumidor que decide cancelar sua passagem dentro de um prazo razoável.

A Jurisprudência Brasileira Sobre o Tema

O entendimento dos tribunais tem sido favorável ao consumidor, reconhecendo a abusividade na retenção de valores elevados em casos de cancelamento com antecedência. Sentenças recentes determinam que a retenção deve ser proporcional e justificada, permitindo apenas a aplicação de multa razoável.

Em casos analisados pelo Judiciário, já se reconheceu que:


1.Se a companhia aérea teve tempo hábil para revender a passagem, a retenção de valores elevados é ilegal;
2.A aplicação de multas superiores a 5% do valor da passagem viola o artigo 740, §3º, do Código Civil; e
3.É dever da empresa reembolsar o passageiro de forma justa, sem enriquecimento ilícito.

Conclusão

O cancelamento de passagens aéreas por iniciativa do consumidor é um direito garantido pela legislação brasileira, sendo vedada a retenção abusiva de valores pagos. O consumidor que precisar desistir da viagem deve exigir o reembolso adequado, com dedução de multa limitada a 5%, salvo se houver justificativa concreta para uma penalidade maior.

O Poder Judiciário tem reafirmado a proteção ao passageiro, garantindo que cláusulas abusivas sejam anuladas e que as empresas aéreas cumpram seu dever de respeitar a boa-fé contratual. Assim, caso o consumidor se veja prejudicado, pode recorrer administrativamente via o canal do consumidor da empresa, ao Procon ou até mesmo ao Judiciário para exigir seus direitos.

Atualmente, o sistema Consumidor.gov tem se mostrado uma ferramenta célere e eficaz para a solução de conflitos entre consumidores e empresas prestadoras de serviços. A plataforma permite que os consumidores registrem reclamações de forma direta, obtendo respostas das companhias envolvidas de maneira mais ágil e transparente. Além disso, possibilita o acesso a documentos essenciais, como contratos, extratos e outros registros fundamentais para a comprovação da relação de consumo, proporcionando uma alternativa administrativa eficiente antes da judicialização do conflito.

A informação é a maior ferramenta de defesa do consumidor. Estar ciente dos seus direitos ao cancelar uma passagem aérea pode evitar prejuízos e garantir um tratamento mais justo na relação com as companhias aéreas.

 

ALEXANDRE HENRIQUE DOS SANTOS












-Advogado graduado pelo  Centro Universitário de Cascavel -  UNIVEL(2018);

-Pós Graduado em direito do Trabalho e direito Previdenciário no Centro Universitário de Cascavel -  UNIVEL  ( 2024);

 - Especialista em direito do Trabalho

- Sócio fundador do escritório Santos & Santos advogados associados. 

Rua Rio de Janeiro, 1887, sala 202, centro de Cascavel /PR (45) 9 8815-5793 - 

E-mail: ar.santosesantosadvs@gmail.com

Nota do Editor:

Todos os artigos publicados no O Blog do Werneck são de inteira responsabilidade de seus autores.

A Prática da Venda Casada Sob a Ótica do Direito do Consumidor

 




@ Valter Huelsmann Nunes

Diariamente os consumidores são vitimas de condutas abusivas praticadas por todos os tipos de instituições comerciais. 

Nesse sentido, o brasileiro já está familiarizado com alguns direitos resguardados pelo Código de Defesa do Consumidor – CDC, tais como, juros abusivos, cobranças vexatórias, ou negativação indevida. Todavia, a abrangência da proteção do consumidor no CDC é muito maior.

Assim, o presente artigo aborda uma conduta abusiva muito praticada no Brasil, que talvez não receba a devida atenção e que, consequentemente, continua a lesar diariamente o consumidor. Isto posto, neste artigo iremos falar sobre a vedação da prática da venda casada pelo CDC.

Primeiramente, vamos destacar o dispositivo consumerista que veda a presente prática abusiva:    
Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas:  
    I - Condicionar o fornecimento de produto ou de serviço ao fornecimento de outro produto ou serviço, bem como, sem justa causa, a limites quantitativos; 
Basicamente, a venda casada consiste em condicionar o fornecimento de um produto ou serviço a outro, como por exemplo, quando uma instituição financeira oferece um empréstimo e acrescenta um seguro não pretendido pelo consumidor. 

Nessa toada, a jurisprudência pátria, reiteradamente, combate essa prática, através das suas decisões judiciais que determinam a restituição dos valores pagos indevidamente pelo consumidor, bem como através da condenação em danos morais, quando configurado. Portanto, colacionamos aqui a jurisprudência do Tribunal de Justiça Catarinense, que demonstra exatamente o que foi dito a cima, vejamos: 

"[...]SEGURO PRESTAMISTA. DEFENDIDA ILEGALIDADE. SUBSISTÊNCIA. CLÁUSULA CONTRATUAL COM EXPRESSA PACTUAÇÃO DA RUBRICA. AUSÊNCIA, TODAVIA, DE POSSIBILIDADE DE ESCOLHA DA SEGURADORA PELO CONSUMIDOR. DIREITO DE INFORMAÇÃO E DE LIBERDADE CONTRATUAL NÃO OBSERVADOS. VENDA CASADA. PRÁTICA VEDADA. ART. 39, I, DO CÓDIGO CONSUMERISTA. TESE FIXADA PELO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA EM SEDE DE RECURSO REPETITIVO (RESP N. 1639320/SP - TEMA 972). COBRANÇA INDEVIDA QUE RESTA AFASTADA. SENTENÇA REFORMADA NO PONTO. REPETIÇÃO DO INDÉBITO. CONSEQUÊNCIA LÓGICA DA REDUÇÃO De ENCARGO CONTRATUAl. RESTITUIÇÃO DOS VALORES COBRADOS A MAIOR, NA FORMA SIMPLES. ATÉ 29-08-2024, CORREÇÃO MONETÁRIA PELO INPC, A CONTAR DE CADA DESEMBOLSO, ACRESCIDA DE JUROS DE MORA DE 1% AO MÊS, DESDE A CITAÇÃO. A PARTIR DE 30-08-2024, SALVO SE HOUVER ESTIPULAÇÃO EM CONTRÁRIO, JUROS MORATÓRIOS PELA TAXA SELIC, ÍNDICE QUE ENGLOBA A CORREÇÃO MONETÁRIA (ART. 406, § 1°, DO CÓDIGO CIVIL, COM AS ALTERAÇÕES INTRODUZIDAS PELA LEI N. 14.905/2024)."[...] (Apelação Nº 5110627-29.2024.8.24.0930/SC, RELATOR: Desembargador OSMAR MOHR, Florianópolis, 17 de julho de 2025.) 

Diante de todo o exposto, resta evidenciado que o consumidor vem sendo lesado todos os dias por práticas abusivas e predatórias, em especial a venda casada. Razão pela qual não pode ficar inerte ao se deparar com esta situação e deixar de pleitear o seu direito na esfera administrativa (PROCON), ou judicial. 

Ressaltamos que é muito importante que consumidor sempre leia o contrato que está assinando e questione qualquer cláusula que condicionar a venda de um serviço ou produto a outro, ou qualquer outra clausula que acreditar ser abusiva, evitando imbróglios posteriores. 

Por fim, após a leitura do presente artigo, caso você, consumidor, esteja passando por uma situação semelhante, procure imediatamente ajuda jurídica especializada. Importante salientar que com o surgimento do processo judicial eletrônico, o consumidor pode contratar o advogado de sua confiança, em qualquer domicilio do país.

Diante de todo o exposto, para maiores informações sobre o assunto, entre em contato através do telefone: (47) 9 9653-6360 ou através do e-mail: valterhnunes.adv@gmail.com

VALTER HUELSMANN NUNES

















-Advogado, graduado pela Universidade da Região de Joinville - UNIVILLE (2015);

-Pós-graduando em Direito Empresarial e dos Negócios pela Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI.

Contatos:

-Instagram: Valterhnunes;
-E-mail: valterhnunes.adv@gmail.com  e
-Telefone e whatsapp: (47) 99653-6360.

NOTA DO EDITOR :

Todos os artigos publicados no O Blog do Werneck são de inteira responsabilidade de seus autores.

terça-feira, 29 de julho de 2025

Boa fé e figuras parcelares


 

@ Maria Paula Corrêa Simões


Contrato é um negócio jurídico bilateral que representa um acordo de duas ou mais vontades, adquirir, resguardar, transferir, modificar ou extinguir direitos, cuja formalização deve ser norteada pelos princípios da função social e da boa-fé, consoante dispõe o artigo 422 do Código Civil.

A regra que deveria ser observada e respeitada em qualquer sociedade e em todos os níveis de atuação, a boa-fé é um princípio fundamental que embasa todo ordenamento civilista, como a necessidade de pautar condutas. A boa-fé apresenta-se sob dois enfoques: a boa-fé subjetiva e a boa-fé objetiva. A boa-fé subjetiva é a consciência ou a convicção sincera de se ter um comportamento correto e probo, de acordo com o direito e com a intenção do agente. Já a boa-fé objetiva está relacionada a elementos externos, normas de conduta que determinam como este mesmo sujeito deve agir, conduzindo as ações de forma honrada, leal e correta. A boa-fé objetiva impõe às partes a obrigação de agir com probidade, honestidade e transparência durante toda a negociação contratual, durante a execução do contrato e após a conclusão.

A boa-fé objetiva ainda se divide em algumas figuras parcelares que são reconhecidos pela doutrina e pela jurisprudência, mas não possuem referência expressa na legislação, apesar de existir algum conteúdo legal que se coaduna os institutos.

O Enunciado 412, da V Jornada de Direito Civil, CJF, aponta que "As diversas hipóteses de exercício inadmissível de uma situação jurídica subjetiva, tais como supressio, tu quoque, surrectio e venire contra factum proprium, são concreções da boa-fé objetiva".

A supressio e a surrectio estão ligadas por serem o mesmo instituto visto por cada uma das partes envolvidas. São os dois lados da mesma moeda.

A supressio, oriunda do alemão "verwirkung", traz a redução do conteúdo obrigacional, em função do decurso de tempo sem o exercício de um direito. Equivale a uma por "renúncia tácita, de um direito ou de uma posição jurídica, pelo seu não exercício com o passar dos tempos". O instituto da supressio traz a possibilidade de se considerar suprimida uma cláusula contratual expressa, com uma obrigação contratual, pelo não exercício do direito, fazendo surgir no devedor de boa-fé objetiva a justa expectativa de que essa obrigação não mais existe.

A surrectio, oriunda do alemão, "erwirkung", é o oposto da supressio, porque traz o surgimento de um direito, também pautado na boa-fé de uma conduta reiterada. Assim, enquanto a supressio é a perda de um direito, a surrectio é o nascimento de um direito. Na surrectio, o exercício continuado e sem reclamação da outra parte, em desarmonia com as cláusulas contratuais, faz surgir para a parte um direito não previsto inicialmente, calcado na boa-fé objetiva.

O instituto do tu quoque vem da expressão latina "até tu, Brutus, meu filho?" ("tu quoque Brutus filie mi") e tem por objetivo impedir que atos abusivos sejam capazes de violar a boa-fé objetiva. Nesse sentido, caso uma das partes viole cláusulas contratuais, não poderá ser beneficiada por essa violação e também não poderá exigir que a outra parte cumpra suas obrigações.

A venire contra factum proprium é oriunda da expressão latina que significa "agir contra fato próprio". Com isso, impede que a parte tenha um comportamento contraditório a seus próprios atos, porque gerou na outra parte, munida de boa-fé, um entendimento, fundamentado em comportamento anterior que não pode ser quebrado.

O Enunciado 362, da IV Jornada de Direito Civil, CJF expressamente traz o fundamento da venire contra factum proprium ao prescrever: "A vedação do comportamento contraditório (venire contra factum proprium) funda-se na proteção da confiança, tal como se extrai dos arts. 187 e 422 do Código Civil".

Ainda tímidos, os institutos não são explicitamente tratados na legislação, mas o Código Civil levemente aponta esses institutos no art.113, com a alteração trazida pela Lei 13.874:

Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.

§ 1º A interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido que:

I - for confirmado pelo comportamento das partes posterior à celebração do negócio;

II - corresponder aos usos, costumes e práticas do mercado relativas ao tipo de negócio;

III - corresponder à boa-fé;

IV - for mais benéfico à parte que não redigiu o dispositivo, se identificável; e

V - corresponder a qual seria a razoável negociação das partes sobre a questão discutida, inferida das demais disposições do negócio e da racionalidade econômica das partes, consideradas as informações disponíveis no momento de sua celebração.

§ 2º As partes poderão livremente pactuar regras de interpretação, de preenchimento de lacunas e de integração dos negócios jurídicos diversas daquelas previstas em lei.

Da mesma forma o art. 330 do Código Civil:
Art. 330. O pagamento reiteradamente feito em outro local faz presumir renúncia do credor relativamente ao previsto no contrato.

Além disso, podemos encontrar julgados que trazem os institutos.

O Superior Tribunal de Justiça: "(...) O instituto da 'supressio' indica a possibilidade de se considerar suprimida uma obrigação contratual, na hipótese em que o não-exercício do direito correspondente, pelo credor, gere no devedor a justa expectativa de que esse não-exercício se prorrogará no tempo (...)" (REsp 953.389/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 23/2/2010, DJe 15/3/2010).

No mesmo sentido:

Ação de cobrança. Contrato de locação. Diferença de alugueres. Locador que recebe valor de aluguel inferior ao pactuado. Locador que de muito tempo vinha aceitando, sem qualquer objeção, o pagamento do valor que era depositado a seu favor em conta corrente, particularidade bastante para afastar o alegado débito, em razão dos princípios da boa-fé objetiva e do "venire contra factum proprium. A inércia do locador em reclamar a diferença dos valores pagos pelo aluguel faz surgir, à luz do princípio da boa-fé objetiva, estampada no artigo 422 do Código Civil, a presunção de que concordou com os valores pagos. Tal conclusão está em consonância com o instituto da supressio, consectário do princípio da boa-fé objetiva, que norteia o contrato, trazendo deveres implícitos às partes, a fim de dar-lhe segurança jurídica e previsibilidade, em respeito à sua função social. Multa por infração contratual devida apenas uma vez. (...).

(TJ-SP - APL: 10130507320148260006 SP 1013050-73.2014.8.26.0006, Relator: Ruy Coppola, Data de Julgamento: 20/04/2017, 32ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 20/04/2017)

Dessa forma, vemos que a aplicação das figuras parcelares pelos tribunais evidencia a supremacia da boa-fé.

Fontes:

BRASIL. Enunciados. Jornadas de Direito. Disponível em:<http://www.cjf.jus.br/enunciados/>. Acessado em: 09 de janeiro de 2025.;

Supressio, boa-fé e vedação do comportamento contraditório nos contratos de locação. 

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. CURSO DE DIREITO CIVIL: CONTRATOS. 8. ed. rev. e atual., Salvador: Ed. JusPodivm, 2018; e

Breves apontamentos sobre a boa-fé objetiva nas relações contratuais: venire contra factum proprium, supressio, surrectio e tu quoque. 
Em 

MARIA PAULA CORRÊA SIMÕES














-Advogada graduada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo(1992);

-Pós Graduada em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica- PUC/COGEAE(1995);

-Pós Graduada em Direito Contratual pela Pontifícia Universidade Católica- PUC/COGEAE(1999);

-Pós Graduada em Direito Constitucional pela Escola Superior de Direito Constitucional ( 2005)e

-Pós Graduada em Lei Geral de Proteção de Dados pela Legale (2022).

Nota do Editor:

Todos os artigos publicados no O Blog do Werneck são de inteira responsabilidade de seus autores.