@ Maria Paula Corrêa Simões
Contrato é um negócio jurídico bilateral que representa um acordo de duas ou mais vontades, adquirir, resguardar, transferir, modificar ou extinguir direitos, cuja formalização deve ser norteada pelos princípios da função social e da boa-fé, consoante dispõe o artigo 422 do Código Civil.
A regra que deveria ser observada e respeitada em qualquer sociedade e em todos os níveis de atuação, a boa-fé é um princípio fundamental que embasa todo ordenamento civilista, como a necessidade de pautar condutas. A boa-fé apresenta-se sob dois enfoques: a boa-fé subjetiva e a boa-fé objetiva. A boa-fé subjetiva é a consciência ou a convicção sincera de se ter um comportamento correto e probo, de acordo com o direito e com a intenção do agente. Já a boa-fé objetiva está relacionada a elementos externos, normas de conduta que determinam como este mesmo sujeito deve agir, conduzindo as ações de forma honrada, leal e correta. A boa-fé objetiva impõe às partes a obrigação de agir com probidade, honestidade e transparência durante toda a negociação contratual, durante a execução do contrato e após a conclusão.
A boa-fé objetiva ainda se divide em algumas figuras parcelares que são reconhecidos pela doutrina e pela jurisprudência, mas não possuem referência expressa na legislação, apesar de existir algum conteúdo legal que se coaduna os institutos.
O Enunciado 412, da V Jornada de Direito Civil, CJF, aponta que "As diversas hipóteses de exercício inadmissível de uma situação jurídica subjetiva, tais como supressio, tu quoque, surrectio e venire contra factum proprium, são concreções da boa-fé objetiva".
A supressio e a surrectio estão ligadas por serem o mesmo instituto visto por cada uma das partes envolvidas. São os dois lados da mesma moeda.
A supressio, oriunda do alemão "verwirkung", traz a redução do conteúdo obrigacional, em função do decurso de tempo sem o exercício de um direito. Equivale a uma por "renúncia tácita, de um direito ou de uma posição jurídica, pelo seu não exercício com o passar dos tempos". O instituto da supressio traz a possibilidade de se considerar suprimida uma cláusula contratual expressa, com uma obrigação contratual, pelo não exercício do direito, fazendo surgir no devedor de boa-fé objetiva a justa expectativa de que essa obrigação não mais existe.
A surrectio, oriunda do alemão, "erwirkung", é o oposto da supressio, porque traz o surgimento de um direito, também pautado na boa-fé de uma conduta reiterada. Assim, enquanto a supressio é a perda de um direito, a surrectio é o nascimento de um direito. Na surrectio, o exercício continuado e sem reclamação da outra parte, em desarmonia com as cláusulas contratuais, faz surgir para a parte um direito não previsto inicialmente, calcado na boa-fé objetiva.
O instituto do tu quoque vem da expressão latina "até tu, Brutus, meu filho?" ("tu quoque Brutus filie mi") e tem por objetivo impedir que atos abusivos sejam capazes de violar a boa-fé objetiva. Nesse sentido, caso uma das partes viole cláusulas contratuais, não poderá ser beneficiada por essa violação e também não poderá exigir que a outra parte cumpra suas obrigações.
A venire contra factum proprium é oriunda da expressão latina que significa "agir contra fato próprio". Com isso, impede que a parte tenha um comportamento contraditório a seus próprios atos, porque gerou na outra parte, munida de boa-fé, um entendimento, fundamentado em comportamento anterior que não pode ser quebrado.
O Enunciado 362, da IV Jornada de Direito Civil, CJF expressamente traz o fundamento da venire contra factum proprium ao prescrever: "A vedação do comportamento contraditório (venire contra factum proprium) funda-se na proteção da confiança, tal como se extrai dos arts. 187 e 422 do Código Civil".
Ainda tímidos, os institutos não são explicitamente tratados na legislação, mas o Código Civil levemente aponta esses institutos no art.113, com a alteração trazida pela Lei 13.874:
Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.
§ 1º A interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido que:
I - for confirmado pelo comportamento das partes posterior à celebração do negócio;
II - corresponder aos usos, costumes e práticas do mercado relativas ao tipo de negócio;
III - corresponder à boa-fé;
IV - for mais benéfico à parte que não redigiu o dispositivo, se identificável; e
V - corresponder a qual seria a razoável negociação das partes sobre a questão discutida, inferida das demais disposições do negócio e da racionalidade econômica das partes, consideradas as informações disponíveis no momento de sua celebração.
§ 2º As partes poderão livremente pactuar regras de interpretação, de preenchimento de lacunas e de integração dos negócios jurídicos diversas daquelas previstas em lei.
Da mesma forma o art. 330 do Código Civil:
Art. 330. O pagamento reiteradamente feito em outro local faz presumir renúncia do credor relativamente ao previsto no contrato.
Além disso, podemos encontrar julgados que trazem os institutos.
O Superior Tribunal de Justiça: "(...) O instituto da 'supressio' indica a possibilidade de se considerar suprimida uma obrigação contratual, na hipótese em que o não-exercício do direito correspondente, pelo credor, gere no devedor a justa expectativa de que esse não-exercício se prorrogará no tempo (...)" (REsp 953.389/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 23/2/2010, DJe 15/3/2010).
No mesmo sentido:
Ação de cobrança. Contrato de locação. Diferença de alugueres. Locador que recebe valor de aluguel inferior ao pactuado. Locador que de muito tempo vinha aceitando, sem qualquer objeção, o pagamento do valor que era depositado a seu favor em conta corrente, particularidade bastante para afastar o alegado débito, em razão dos princípios da boa-fé objetiva e do "venire contra factum proprium. A inércia do locador em reclamar a diferença dos valores pagos pelo aluguel faz surgir, à luz do princípio da boa-fé objetiva, estampada no artigo 422 do Código Civil, a presunção de que concordou com os valores pagos. Tal conclusão está em consonância com o instituto da supressio, consectário do princípio da boa-fé objetiva, que norteia o contrato, trazendo deveres implícitos às partes, a fim de dar-lhe segurança jurídica e previsibilidade, em respeito à sua função social. Multa por infração contratual devida apenas uma vez. (...).
(TJ-SP - APL: 10130507320148260006 SP 1013050-73.2014.8.26.0006, Relator: Ruy Coppola, Data de Julgamento: 20/04/2017, 32ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 20/04/2017)
Dessa forma, vemos que a aplicação das figuras parcelares pelos tribunais evidencia a supremacia da boa-fé.
Fontes:
Supressio, boa-fé e vedação do comportamento contraditório nos contratos de locação.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. CURSO DE DIREITO CIVIL: CONTRATOS. 8. ed. rev. e atual., Salvador: Ed. JusPodivm, 2018; e
Breves apontamentos sobre a boa-fé objetiva nas relações contratuais: venire contra factum proprium, supressio, surrectio e tu quoque.
Em
MARIA PAULA CORRÊA SIMÕES
-Advogada graduada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo(1992);
-Pós Graduada em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica- PUC/COGEAE(1995);
-Pós Graduada em Direito Contratual pela Pontifícia Universidade Católica- PUC/COGEAE(1999);
-Pós Graduada em Direito Constitucional pela Escola Superior de Direito Constitucional ( 2005)e
-Pós Graduada em Lei Geral de Proteção de Dados pela Legale (2022).
Nota do Editor:
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