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Vivemos no Brasil a Síndrome da Insegurança Pública.
Trata-se de uma condição permanente de sentir o medo e consequente ameaça no ambiente público, especialmente nas grandes cidades, com a chance de sermos furtados, roubados, sequestrados, agredidos ou mesmo mortos.
O medo é uma palavra definida no Dicionário Aurélio: "Sentimento de grande inquietação ante a noção de um perigo real ou imaginário". O medo do crime é especialmente lesivo às pessoas pois atinge o mais profundo da existência de cada um, pela ameaça que traz à vida, integridade física ou patrimônio.
As relações sociais ficam comprometidas, isso se constata com as medidas de proteção que cada um adota conforme suas possibilidades, alarmes, grades, trancas em suas casas, apólices de seguro, movimentos mais extremos de liberar porte de armas de fogo para as pessoas, além da restrição que que cada um impõe a si mesmo de frequentar certos espaços públicos, especialmente locais tidos como perigosos, condicionando neste modo restrito a qualidade de vida dos indivíduos.
Esse fenômeno da criminalidade desenfreada não é recente no Brasil. Em 2003, Luis Fernando Soares, ao apresentar novas políticas para a segurança pública, afirmou que o medo da sociedade não era ilusório nem fruto de manipulação midiática. Assim também Henrique Hoffmann Monteiro, em 2011, afirmava que a concentração de pessoas nas cidades fazia florescer o sentimento de insegurança.
Porém, o que podia estar ainda em estado latente na percepção social, quanto à insegurança que ameaçava as pessoas, tornou-se evidente na noite de 12 de maio (2006), uma sexta-feira, quando uma onda de atentados contra forças de segurança e alguns alvos civis atacou todo o Estado de São Paulo, sendo que, simbolicamente, os criminosos tomaram o poder do carro chefe da economia do país, por quatro dias.
Eram os longos braços do Primeiro Comando da Capital (PCC) em ação, uma organização criminosa que surgiu na intimidade dos presídios de São Paulo e que hoje se internacionalizou.
O crime cresceu, os criminosos aumentaram em população, com isto encontraram lideranças, ganharam espaço na mídia, angariaram muitos recursos financeiros, iniciaram ações planejadas de aliciamento de criminosos encarcerados, de corrupção de agentes públicos, de aquisição de armamento pesado, se organizaram em hierarquias criminosas, "protegeram" os criminosos adeptos da facção e mesmo suas famílias, tornando-se uma organização auto protegida, muito poderosa.
Não fora o grande número de criminosos encarcerados, em um sistema prisional falido, sem a capacidade do Estado em prevenir o cometimento de crimes, isto provavelmente não teria acontecido.
O Jornal O Estado de São Paulo (07/12/2022), informou que mais de meio milhão de veículos (564 mil) foram furtados ou roubados no Brasil ao longo de 2021, segundo estudo divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) – tal equivale a um quinto do que foi produzido no ano anterior. São 64 carros ou motocicletas subtraídos por hora no País.
Essas taxas criminais aumentam de período a período, com alguma ou outra oportunidade de queda. No caso de homicídios, em 1989, 28.767 pessoas foram vitimadas em suas vidas e passados 15 anos, em 2024, esse número aumentou em 18,73%, ou seja, 46.409 eventos.
É um absurdo o dia a dia das pessoas ameaçadas nas cidades brasileiras.
Segundo dados da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, naquele ano de 2024, na Cidade de São Paulo, 412.527 aparelhos celulares foram furtados e 283.715 furtos outros foram praticados.
Se a cidade murada medieval era um perigo fora dos muros, nas grandes cidades brasileiras, nos dias presentes, o perigo reside dentro da própria cidade, gerando, entre outros sentimentos, o medo do crime.
Ocorre que o crime é um fenômeno presente em todas as sociedades, sendo fruto da própria natureza humana.
São muitas as teorias que explicam a criminalidade, que vão desde aquela que considera o crime uma patologia individual, sustentando que um criminoso é um doente social; a que considera o crime produto de um sistema social perverso; outra afirmando que é fruto da desorganização social, ainda, teorias que consideram o crime como um problema econômico, e as teorias que sustentam ser o ambiente onde o crime ocorre um importante fator para a sua ocorrência.
O fato é que há crimes em todos os lugares do planeta, existem circunstâncias múltiplas para suas ocorrências, mas, para que seja possível viver em paz e harmonia, os seus registros devem representar níveis toleráveis, para que as pessoas de bem não sejam vitimadas sistematicamente.
Diante disso, os Estados constituídos respondem com o seu aparato controlador e inibidor das práticas criminais.
É nesse aspecto que cabe reflexões.
O crime é enfrentado, basicamente, por duas modalidades de ação, a dissuasão aos criminosos e a prevenção criminal.
A dissuasão da prática criminal é feita com a prisão dos criminosos, o julgamento de seus atos diante das leis penais, o encarceramento ou adoção de medidas alternativas, apreensão de armas, instrumentos e substâncias de cometimento de crimes, enfim, ações típicas de polícia e de justiça que procuram neutralizar os criminosos. Há autores que incluem essas práticas no que chamam de Sistema de Persecução Criminal.
Esse sistema tem por integrantes os organismos policiais, o ministério público, os organismos de justiça criminal e o sistema prisional.
Já a prevenção ao cometimento dos crimes se faz com ações mais abrangentes, a maioria delas não dirigidas diretamente aos criminosos, mas, aos cidadãos, ao ambiente público, como campanhas de prevenção e orientação do comportamento seguro das pessoas, estruturação habitacional nas cidades, apoio às famílias, ações de assistência à saúde dirigida aos viciados em drogas, educação pública abrangente de prevenção ao uso de drogas ilegais, retirada de moradores das ruas, assistência à criança e adolescente, urbanização e arquitetura considerando a segurança pública, monitoração e vigilância do ambiente público, fiscalização de estabelecimentos e outros afins.
Note-se que na maioria das ações preventivas nos ambientes públicos os órgãos policiais não tem competência legal, estruturas, tampouco habilidades para tais realizações, ficando com a polícia as ações dissuasivas.
No Brasil, a Constituição Federal de 1988 estabeleceu que a segurança é um direito de cada pessoa, assemelhando-a aos direitos individuais fundamentais. Preocupa-se em conceituar a segurança pública como dever do estado e responsabilidade de todos, porém, essa garantia não tem sido efetiva.
A Carta Magna deixou de considerar com precisão as responsabilidades de cada um dos entres federativos, União, Estados e Distrito Federal e Municípios, tendo somente relacionado os órgãos que seriam responsáveis pela segurança pública.
Assim, deu "status" constitucional à Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Polícia Ferroviária Federal; Polícias Civis dos Estados e DF; Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares dos Estados e DF, e, aos municípios, a possibilidade de criarem suas guardas municipais a fim de preservarem os seus patrimônios.
Em 20/02/2025, o Supremo Tribunal Federal, julgando Recurso Extraordinário (RE) 608588, com repercussão geral (Tema 656), decidiu que as guardas municipais podem exercer ações de segurança urbana, inclusive o policiamento ostensivo comunitário, sendo que, na prática, assumiram a condição de polícia dos municípios.
Em síntese, a gestão da segurança pública no Brasil, segundo nossa estruturação legal, se dá pela atuação das polícias, cada uma delas atuando em uma modalidade específica, sejam as polícias ostensivas ou as polícias judiciárias.
Em 1982, nos Estados Unidos da América, o medo imperava no sentimento dos cidadãos e, por isso, o Departamento de Justiça solicitou à Police Foundation de Washington, D. C., que buscasse ideias para controlar o crime urbano, e teve como conclusão que as estratégias tradicionais da polícia para a prevenção não funcionavam com tanta eficiência e que não conseguiam demonstrar a possibilidade de totalmente controlar o crime, ou seja, havia dificuldade em prevenir.
Não somente nos Estados Unidos da América, mas, amplamente na literatura especializada se constata que a polícia é fundamental no enfrentamento do crime e dos criminosos, faz a dissuasão às práticas criminais, produz a investigação dos crimes, promove a repressão imediata aos criminosos, a prisão dos autores, a condução dos réus à justiça pública para que seus crimes sejam julgados e que sejam retirados do seio da sociedade, também, a apreensão de armas e instrumentos de crime diversos, a prisão de foragidos, ou seja, um papel relevante, indispensável e insubstituível no combate ao crime e criminosos.
Não resta dúvidas de que a polícia sendo uma instituição universal, é a primeira manifestação do estado diante da necessidade de proteção das pessoas, tendo hegemonia no papel de diminuir a ameaça do crime, mas, é muito limitada na capacidade de prevenção das práticas criminais.
Muitos são os trabalhos de pesquisa científica que reconhecem nexo entre infraestrutura urbana e criminalidade, colocando o ambiente social, físico ou relacional como fator inibidor ou incentivador da prática criminal.
Teorias sustentam que o ambiente é um fator influente nas práticas criminais, como a Teoria das Janelas Quebradas, ou “Broken Windows”, que procura demonstrar que os aspectos urbanísticos de uma cidade são elementos cruciais para o bem-estar das pessoas. Elaborada na Universidade de Stanford (EUA), no ano de 1982, demonstrou que ambientes públicos degradados incentivavam a desordem e violência.
Nos anos 90, Nova York estava em estado de abandono, vandalizada por completo, assim, a autoridade municipal criou a operação denominada "Tolerância Zero", inspirada nessa teoria, com destacada atuação policial e também com a restauração do ambiente outrora depredado, com ações sistêmicas dos organismos municipais que revisaram a legislação, criando novos padrões de vigilância e fiscalização, e promovendo campanhas educativas diversas.
Nova York pôde, assim, reassumir seu "status" de cidade global, uma das capitais da economia e dos negócios mundiais, considerando a Teoria das Janelas Quebradas, inspirando a intervenção no ambiente realizada pela prefeitura local, em conjunto com a repressão policial às condutas criminosas.
Muitas outras teorias surgiram na Escola Sociológica de Chicago, desenvolvida na década de 1910, na Universidade de Chicago, Estados Unidos da América, tendo os pesquisadores relacionado sistematicamente o crime com o espaço social.
Também a teoria da prevenção situacional que considera medidas de redução das oportunidades para a prática de crimes. Tais medidas são direcionadas para formas específicas de crime, manipulando o ambiente circundante da forma mais concreta e permanente possível, aumentando, assim, os níveis de esforço para a prevenção e, consequentemente, aumentando o risco da prática criminosa, refletindo na redução da desejada recompensa pelo criminoso.
Enfim, a prevenção às práticas criminais apresenta grande eficácia se, do ambiente forem tiradas as oportunidades para que os crimes ocorram, conforme as teorias pertinentes sustentam e têm sido experimentadas com resultados importantes.
Localidades com baixa iluminação, atividades ilegais como jogos de azar, bares e similares ilegais, terrenos baldios, becos sem saída, moradias coletivas sem identificação, ruas estreitas sem a possibilidade de acesso de veículos oficiais, ausência da zeladoria pública, paredes de imóveis pixadas, perturbação do sossego público, lixo pelas ruas, ambientes degradados propícios à promiscuidade humana, criam locais e circunstâncias muito favoráveis ao cometimento de crimes.
Entretanto, a própria Constituição de 1988 no seu Artigo 30, prevê no inciso V, que cabe aos municípios organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluindo o de transporte coletivo, que tem caráter essencial; e, no seu inciso VIII, também estabelece que ao município incumbe promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano.
Como foi dito, as organizações policiais, não possuem fiscais, assistentes sociais, engenheiros, arquitetos, construtores, tampouco possuem conhecimento prático para atuarem na urbanização das cidades, o que é típico e exclusivo dos municípios.
Há uma concepção muito arraigada no país, por razões históricas, culturais e legais, confirmada agora pela decisão do Supremo Tribunal Federal, aumentando o rol de instituições atuantes no sistema policial brasileiro, de que segurança pública deve ser algo do manejo exclusivo e incisivo das instituições policiais.
Tal concepção induz às frequentes escusas de prefeitos eleitos que, diante do reclamo de seus munícipes, eximem-se das responsabilidades quanto aos problemas da segurança pública de suas cidades: "não posso fazer nada, a competência da segurança pública é do Estado".
Por outro lado, as organizações policiais se esforçam em suas práticas convencionais, a bem da verdade, a maioria delas de forma dedicada, competente, empenhando-se em estar presente, em esclarecer os crimes de autoria desconhecida, perseguindo os criminosos no estado de flagrância, prendendo foragidos e retirando armas de fogo das ruas, contudo, pouco conseguem no sentido de que não estejamos em meio à Síndrome da Insegurança Pública, que só aumenta seus efeitos.
Não obstante, mesmo diante desse estado de ameaça e de insegurança pública, e diante dos múltiplos enunciados das pesquisas científicas que focalizam a pouca capacidade da organização policial em prevenir crimes, no Brasil, os municípios estão excluídos da responsabilidade de produzir políticas locais preventivas contra o crime.
Seria de se esperar que a produção dos instrumentos de gestão urbanísticas, produzidos a cada quatro anos pelos municípios, tratassem da segurança pública do próprio município, com medidas de recuperação urbana e social localizadas.
Logicamente que em benefício da visão sistêmica da gestão pública, os organismos policiais atuantes em cada município, seriam partes essenciais nas discussões e estruturação de tais instrumentos, mas, a responsabilidade pela produção e execução de medidas preventivas locais seria das autoridades públicas municipais, de modo que, assim, os munícipes saberiam a quem dirigir seus reclamos.
Estaríamos assim construindo Planos de Segurança Pública para o respectivo ambiente público, mais especificamente, para a dada cidade, em substituição aos atuais e pouco efetivos Planos de Ação Policial.
Por fim, a segurança pública é uma atividade multisetorial, envolvendo muitos segmentos do poder público, envolvendo também todos os entes federativos, contudo, o crime ocorre nas cidades, lá estão os criminosos e suas vítimas, cada uma dessas cidades possui suas próprias características estruturais, geográficas, culturais, que demandam ações específicas e modalizadas em cada localidade.
Conclui-se que o trabalho das várias corporações policiais, mesmo que venham a buscar a excelência do que fazem, é incapaz de reverter a Síndrome da Insegurança Pública reinante no Brasil, sem que aos municípios seja dada a responsabilidade de adequar o ambiente público à prevenção das práticas criminais.
RENATO ALDARVIS
Advogado graduado pela Uninove (2021);
Especialista em Direito Civil e processo Civil;
Oficial da Reserva da Polícia Militar do Estado de São Paulo e
Mestrado em Cidades Inteligentes e Sustentáveis pela Uninove (2023)
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