Caros leitores desta coluna,
Estamos quase entrando em férias
de meio de ano e as viagens com a família se aproximam. O destino para o
merecido lazer e descanso é escolhido a dedo: Resorts no literal, Hotéis fazendas,
Parques Termais etc.
E, com a experiência de quem já passou por essa situação, em meio às férias, num momento vulnerável de descanso e lazer, surge um tentador convite para que você e sua família participem de uma palestra-evento, ‘sem compromisso’, para o lançamento de um empreendimento imobiliário.
Invariavelmente é uma excelente e única oportunidade para aquisição de uma unidade (ou quota de empreendimento) com potencial lucrativo pela valorização e também pela locação da unidade. E mais, a participação no evento dará direito a um brinde surpreendente.
Aviso, muita atenção e cautela para não se arrepender ao tocar o sino!
Spoiler: Tocar o sino é uma técnica intimidadora de vendas pela qual o turista que integra o cardume de participantes e sucumbe aos vorazes ataques da equipe de vendas, acaba fechando o negócio e toca um sino para estimular os outros ‘alevinos’ a agirem da mesma forma! E os que resistem bravamente e não sucumbem às investidas dos tubarões, ainda têm que lidar com o desconforto da gratuidade pelo brinde oferecido em contrapartida ao seu precioso tempo de lazer despendido na palestra.
E, para além desse constrangimento e intimidação que surge nesse ambiente opressor de vendas, focado basicamente nas condições econômicas e negociais do empreendimento, o fato é que pouca ou nenhuma atenção é dada à "volumosa papelada" que se segue ao aceite da proposta.
É justamente sobre esse Spoiler que pretendo chamar a atenção dos leitores.
Independentemente de o negócio em si ser vantajoso, o fato é que – em diversos casos – a operacionalização e a estrutura jurídica do negócio pode ser comprometedora e, até mesmo, ilegal.
Digo isso porque, por vezes, o empreendedor (um grupo econômico formado pelo empreendedor, construtor e um gestor de vendas) resolve captar recursos para o desenvolvimento desse empreendimento imobiliário através de uma "sociedade em conta de participação" que consiste numa sociedade despersonalizada, em que nela figuram 2 tipos de sócios: (a) o ostensivo e (b) o participante.
Ao ostensivo compete gerir e conduzir os negócios. Ao participante, também chamado de sócio oculto, compete o dever de realizar o investimento e o direito de fiscalização, nos termos do contrato.
Nessa estrutura societária simplificada, prevista nos arts.991 a 996 do CC/2002, surge um patrimônio especial formato pela contribuição desses sócios, sob responsabilidade exclusiva do sócio ostensivo, único que obriga essa sociedade perante terceiros. E ao término dessa sociedade (p. ex. concretização do objeto social e entrega do empreendimento), ela se resolve pela prestação de contas do sócio ostensivo aos sócios participantes.
Ocorre que essa estrutura jurídica não pode ser utilizada de forma indiscriminada e simulada para captação de recursos oriundos de potenciais investidores no mercado de capitais - a chamada poupança pública - sem observar as normas previstas pela CVM e pela Lei n° 6.385/1976 (Lei do Mercado de Capitais).
Isso porque, a oferta pública de contratos de investimento coletivo (CIC), relativos a empreendimentos imobiliários via SCP, exige a obtenção de prévio registro perante a CVM ou sua dispensa, sob pena de infringir o art. 19, caput, e §5°, I, da Lei 6.385, e os arts. 2º e 4° da Instrução CVM n° 400.
Mas o fato é que, inadvertidamente, muitos acabam por firmar contratos para adquirir tais empreendimentos imobiliários via SCP e, ao final, acabam por serem lesados quando o empreendimento não é concluído conforme o prometido naquela "palestra-evento".
O jeito, então, é recorrer ao Poder Judiciário para solucionar o problema.
Trago abaixo alguns precedentes do TJSP reconhecendo a ilegalidade nessa prática de captação de investidores para o mercado imobiliário e a resolução dessa sociedade "SCP":
APELAÇÃO CÍVEL
Sociedade em conta de participação. Investimento no ramo imobiliário.
Irrelevância. Instrumento de compra e venda com roupagem de sociedade em conta
de participação. Negócio subjacente de natureza obrigacional cível. Contrato
com especificação da unidade imobiliária vendida. Simulação reconhecida (art.
167 do CC). Modificação no projeto e não construção da unidade autônoma. Culpa
da vendedora reconhecida. Reembolso que deve ser integral e em uma única
parcela (Tema 577 do C. STJ) Recurso desprovido.
(TJSP;
Apelação Cível 1131911-12.2023.8.26.0100; Relator (a): Débora
Brandão; Órgão Julgador: 6ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível
- 18ª Vara Cível; Data do Julgamento: 05/06/2024; Data de Registro:
05/06/2024)
***
APELAÇÃO. AÇÃO
DE PRESTAÇÃO DE CONTAS C.C. DEVOLUÇÃO DE QUANTIAS PAGAS. FRAÇÃO IDEAL EM
EMPREENDIMENTO TURÍSTICO COM ADESÃO A POOL DE LOCAÇÃO. SENTENÇA DE PARCIAL
PROCEDÊNCIA. EXCLUSÃO DE EMPRESAS DO POLO PASSIVO POR ILEGITIMIDADE.
INCONFORMISMO DOS AUTORES. LEGITIMIDADE PASSIVA. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA
ENTRE EMPRESAS DO GRUPO ECONÔMICO. Relação jurídica de consumo caracterizada.
Aplicação dos arts. 2º, 3º, 7º, parágrafo único, e 25, §1º, do CDC. Documentos
que demonstram atuação coordenada das rés na concepção, comercialização e
administração do empreendimento, com comunhão de sócios, identidade de
endereços e funções complementares. Participação de todas as rés no ciclo
contratual, desde a venda da fração ideal até a gestão das receitas de locação.
Exclusão do polo passivo que compromete a efetividade da prestação de contas e
abre margem à fragmentação artificial de responsabilidades. Precedentes desta
Corte envolvendo o mesmo empreendimento. Legitimidade passiva reconhecida.
Sentença reformada. Recurso a que se DÁ PROVIMENTO.
(TJSP;
Apelação Cível 1007213-89.2024.8.26.0037; Relator (a): Fatima
Cristina Ruppert Mazzo; Órgão Julgador: 4ª Câmara de Direito Privado; Foro de
Araraquara - 3ª Vara Cível; Data do Julgamento: 28/04/2025; Data de
Registro: 28/04/2025)
***
Gestão de
negócios – Ação de rescisão contratual e cobrança – Reconhecida a fraude na
previsão da constituição de sociedade em conta de participação em contrato de
investimento realizado, de forma adesiva, com investidora eventual –
Configurada a relação de consumo entre as contratantes – Precedentes deste
Tribunal e do Superior Tribunal de Justiça. - Considerando a relação jurídica
obrigacional, não societária, entre as partes contratantes, afasta-se a
alegação de incompetência – Não se aplica a cláusula compromissória, que é nula
nas circunstâncias – Cabimento da ação de rescisão do contrato, a que a autora
faz jus, bem como ao reembolso do valor do aporte – Afastada a alegação de
nulidade na citação – Configurado o grupo econômico entre as rés e a responsabilidade
solidária e objetiva, em decorrência da aplicação do Código de Defesa do
Consumidor – Sentença mantida – Recursos das rés não providos.
(TJSP;
Apelação Cível 1005102-74.2023.8.26.0100; Relator (a): Silvia Rocha;
Órgão Julgador: 29ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível - 21ª
Vara Cível; Data do Julgamento: 30/11/2023; Data de Registro: 30/11/2023).
Fica muito claro em tal situação que
não existe uma sociedade; que o contratante não é verdadeiramente um sócio
participante do empreendedor-ostensivo, mas um mero consumidor duplamente lesado
(em termos econômicos e jurídicos), devendo-se, por isso mesmo, afastar as
cláusulas simuladas previstas na SCP e tratar o negócio jurídico com a devida
roupagem: um contrato de adesão de promessa de venda e compra de unidade
imobiliária, sendo regido pelo CDC.
Recorrendo ao dito popular alerto aos incautos turistas: É melhor ‘amarelar’ e evitar tocar o sino, ainda que passando algum constrangimento e/ou desconforto no famigerado evento, do que ‘avermelhar ou até arroxar’ diante das perdas e novos custos envolvidos com a demanda judicial.
Dito isso, e com escusas pelo "spoiler", só me resta desejar boas férias e boa viagem a todos.
-Graduado em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie(2000-2004);
-Graduado em CIÊNCIAS CONTÁBEIS pela Universidade de São Paulo - FEA-USP (2003-2008), tendo cursado disciplinas de Finanças, Direito do Comercio Internacional e Direito Comercial na HEC-MONTRÉAL CANADÁ (2006);
-Professor da Universidade Mogi das Cruzes - UMC na Graduação e Pós-graduação, Professor da EBRADI;
-Leciona as disciplinas de Direito Civil, Empresarial e Tributário para os cursos de Direito, Ciências Contábeis e Administração de Empresa;
- Professor da EBRADI
-Mestre em Direito Político e Econômico na Universidade Presbiteriana Mackenzie (2016);
-Especialista em Direito Processual Civil - Anhanguera-Uniderp.(2014);
- Pós-graduado em Direito Empresarial na PUC-SP (2010);
- Sócio fundador do escritório Fornari e Gaudêncio Advogados Associados;
- Linhas de pesquisa: direito empresarial, direito tributário, direito econômico, direito civil, direito & internet.
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