@ Susanne Vale Diniz Schaefer
O Brasil vive hoje uma epidemia silenciosa de fraudes financeiras. Segundo levantamento da Serasa, em 2024 foram registradas quase 3 (três) tentativas de golpe por segundo. Isso mesmo: por segundo![1]
O crescimento foi de 17% em relação ao ano anterior, com destaque para o perfil mais atingido, pessoas com mais de 50 anos, boa parte delas servidoras públicas. O prejuízo vai muito além do valor, alcançando a dignidade ferida, a confiança abalada, o nome comprometido e a sensação de impotência que se instala.
Atendo vítimas de fraudes bancárias há muitos anos e são histórias que se repetem, mas que nunca perdem a capacidade de me indignar. O que está em curso no Brasil vai além de incidentes isolados, estamos diante de um sistema que permite, facilita e em alguns casos até mesmo lucra com a desinformação e a dor alheia.
O servidor público, figura que representa estabilidade, previsibilidade de renda e confiança institucional, se tornou o alvo preferencial de fraudes e não é difícil entender o motivo. Seus dados estão expostos. Sua margem consignável está quase sempre disponível. E sua rotina é atravessada por ligações, mensagens e ofertas que, sob aparência legítima, escondem armadilhas com consequências graves.
Os golpes na área bancária não acontecem apenas por ação de quadrilhas externas, eles nascem e se fortalecem dentro da própria cadeia de vendas bancária. São correspondentes sem qualquer fiscalização, atendentes despreparados, plataformas terceirizadas que acessam dados sensíveis com autorização das próprias instituições financeiras. A engrenagem gira com fluidez porque há omissão, conivência e acima de tudo, um grande descaso com o consumidor.
Dentre os casos mais perversos, temos a falsa portabilidade de empréstimo, que é hoje uma das fraudes mais comuns. Nela, o servidor acredita estar reduzindo juros e aliviando seu contracheque, recebe um valor em conta que, segundo o atendente, "não é dele", e sim um recurso temporário a ser devolvido para a suposta quitação do contrato anterior. Mas o que de fato ocorre é a contratação de um novo empréstimo, sem qualquer liquidação do anterior. O servidor então passa a pagar dois contratos simultaneamente e quando busca ajuda, descobre que nem sequer há registro formal da portabilidade prometida, que não passava de um engodo para que o correspondente ou o fraudador, conseguissem receber o recurso do segundo empréstimo.
Esse tipo de fraude não seria possível se as instituições financeiras adotassem mecanismos mínimos de proteção. Mas em vez disso muitas delas terceirizam a captação de crédito para empresas cujo único foco é bater metas, não zelar pelo cliente. Funcionários de dentro da cadeia de vendas acessam sistemas bancários, inserem dados, preenchem contratos, conduzem a operação do início ao fim sem que o titular sequer compreenda o que está assinando.
A responsabilidade por essas condutas não é do consumidor. Ela é da instituição que lucra com a operação e o ordenamento jurídico brasileiro é claro nesse sentido. O artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor estabelece que o fornecedor de serviços responde, independentemente de culpa, pela reparação dos danos causados ao consumidor por defeitos relativos à prestação dos serviços. A Súmula 479 do STJ consolida esse entendimento, de que as instituições financeiras respondem objetivamente pelos danos causados por fortuito interno relativo a fraudes e delitos praticados por terceiros no âmbito de operações bancárias.
Temos ainda hoje outra preocupação, pois o cenário que já é alarmante tende a se agravar ainda mais com o avanço das tecnologias de inteligência artificial. A popularização de ferramentas de deepfake está criando uma nova geração de fraudes bancárias, mais sofisticadas, convincentes e difíceis de detectar.
Hoje golpistas conseguem imitar a voz de uma pessoa com poucos segundos de áudio, conseguem gerar vídeos aparentemente reais usando apenas imagens públicas da vítima, como aquelas postadas em redes sociais. Em poucos cliques, produzem uma gravação em que a pessoa "aparece" autorizando uma operação que jamais realizou.
Enquanto isso, os sistemas de validação adotados por muitas instituições financeiras continuam arcaicos e contratos de valores elevados estão sendo formalizados com base em uma simples selfie geolocalizada. Em alguns casos, basta um vídeo de segundos com o suposto cliente dizendo frases como "aceito contratar o empréstimo". Não há validação biométrica robusta, nem análise antifraude sofisticada, nem cruzamento de dados para confirmação da identidade, basta parecer verdadeiro.
É urgente que o sistema bancário seja atualizado à altura dos riscos que ele mesmo está criando, a mera aparência de consentimento não pode ser considerada manifestação válida de vontade e o princípio da boa-fé objetiva exige que o fornecedor do serviço aja com diligência, o que inclui adotar sistemas de autenticação que realmente protejam o consumidor e não apenas facilitem a venda.
Se uma instituição escolhe meios frágeis de validação para acelerar suas contratações, ela assume o risco e esse risco não pode ser empurrado para o consumidor depois que a fraude se concretiza. A justiça precisa estar atenta a esse novo cenário, porque os golpes do futuro já estão acontecendo hoje.
É muito comum que o servidor ao perceber o golpe se sinta tão culpado que alguns não contam nem para a família, por vergonha e medo. O fato é que boa parte acredita que não têm direito a reclamar de ter sido enganado, seja porque “assinou algo”, mesmo que não tenham compreendido e outros desistem no meio do caminho sufocados pela burocracia imposta pelos próprios bancos para impedir que a vítima leve adiante sua reclamação.
É por isso que sempre defendo que informação é ferramenta de justiça, defender essas vítimas é para mim mais do que um trabalho, é uma missão.
O Brasil precisa falar mais sobre essas práticas e reconhecer que não se trata de um problema individual, mas estrutural no qual o Judiciário tem papel decisivo na reparação, mas também na prevenção. Cada sentença que reconhece a fraude e condena a instituição financeira é um recado, cada decisão que aplica a responsabilidade objetiva ajuda a criar um padrão de conduta e é isso que buscamos, uma justiça que não apenas corrige, mas transforma.
REFERÊNCIA
SUSANNE VALE DINIZ SCHAEFER
Advogada graduada pela UNIESP (2017)
Pós- graduada em Direito Báncário pela PUC - Minas (03/2025)
Pós-graduada em Direito civil e Processo Civil pela Faculdade Legale São Paulo (2020);
-Membro da Comissão de Direito Bancário e Comissão de Defesa do Consumidor na OAB Santos-SP;
-Agente de Crédito Bancária certificada de acordo com as normas do Banco Central, com mais de seis anos de experiência prática na área bancária especialista em crédito consignado;
-Sócia fundadora na Schaefer & Souza Advogados Associados, com equipe focada em processos envolvendo fraudes bancárias, possuindo o escritório além de área de amplo atendimento ao consumidor, nichos de atuação na esfera do direito civil, empresarial,trabalhista e previdenciário.
-Autora do Canal "Via do Direito" no YouTube onde se compartilham conhecimentos sobre direitos, especialmente conscientizando consumidores e ensinando como evitar e como lidar com fraudes envolvendo crédito consignado.
Nota do Editor:
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