sábado, 12 de julho de 2025

Cringe, lacre e a língua das redes


 


@ Adriana Mello


A língua portuguesa está sempre em movimento. Ainda que a gramática pareça rígida, a forma como usamos as palavras no dia a dia muda com o tempo — e, nos últimos anos, a internet se tornou um verdadeiro laboratório de criação linguística. Termos antigos ganharam sentidos completamente novos, influenciados por memes, redes sociais, fandoms e debates sociais. A linguagem digital não apenas gera palavras, mas transforma o significado de expressões já conhecidas, revelando a criatividade dos falantes e as mudanças culturais em curso.

Um bom exemplo é a palavra "cringe", que veio do inglês e originalmente expressa vergonha alheia. No Brasil, ela viralizou em 2021, quando jovens da geração Z começaram a nomear como "cringe" alguns comportamentos dos millennials — como tomar café, usar calça skinny ou ouvir certas músicas. O termo rapidamente entrou no vocabulário popular, mesmo entre quem nem sabia pronunciar a palavra corretamente. Outro caso curioso é "ranço": antes relacionado a alimentos estragados, hoje serve para expressar antipatia por alguém. Você pode não saber explicar a origem, mas com certeza já ouviu (ou disse) "peguei ranço" de alguém, seja uma figura pública ou não.

A internet também ampliou o uso de "lacrar", que antes significava apenas fechar algo com lacre, como uma carta ou um envelope. No contexto digital, lacrar virou sinônimo de causar impacto, brilhar, dar uma resposta de efeito ou vencer um debate, principalmente em temas sociais. Expressões como "fulano lacrou no discurso" tornaram-se comuns. Já o termo “cancelar” ganhou novos contornos com a chamada "cultura do cancelamento": hoje, alguém pode ser "cancelado" nas redes por atitudes consideradas ofensivas ou polêmicas, o que muitas vezes resulta em críticas massivas e boicotes virtuais.

Os neologismos não param por aí, surgiu até um verbo que não existia no dicionário: "shippar". Derivado do inglês relationship, ele significa torcer para que duas pessoas fiquem juntas, seja na vida real ou na ficção. É comum entre fãs de séries e novelas: "eu shippo muito esse casal!". Essa criatividade linguística mostra como a cultura pop e a internet são forças ativas na evolução do português, principalmente entre os mais jovens.

Boa parte dessas transformações está ligada ao fenômeno dos empréstimos linguísticos, especialmente do inglês. A internet aproximou o Brasil de outras culturas, principalmente da norte-americana, o que facilitou a entrada de termos como crush, fake news, hater, streaming, entre muitos outros. Diferente de um tempo em que estrangeirismos eram vistos com desconfiança, hoje eles são incorporados rapidamente, muitas vezes sem tradução, por parecerem mais "naturais" no ambiente digital. Esse processo é comum em qualquer idioma vivo — o português, por exemplo, já incorporou no passado palavras do francês (abajur), árabe (almofada) e do italiano (novela).

É interessante notar que nem sempre esses termos vêm apenas por necessidade de nomear algo. Muitas vezes, o uso de estrangeirismos reflete também tendências culturais, desejo de pertencimento e modernidade. Palavras como trending, spoiler ou delivery não são só práticas: elas criam um estilo de comunicação ligado ao universo online, jovem e globalizado. Embora ainda haja debates sobre o uso excessivo de termos estrangeiros, é importante perceber que essas mudanças acontecem a partir do uso real das pessoas — não por imposição, mas por adaptação.

Como aponta a pesquisadora Lucia Santaella (2003), a cibercultura tem moldado profundamente os modos de interação e expressão, criando formas de linguagem que desafiam os modelos tradicionais. Ela destaca que as mídias digitais alteram não apenas os suportes da comunicação, mas também os próprios sentidos atribuídos às palavras no ambiente virtual. O meio digital, segundo a autora, não é neutro: ele condiciona práticas linguísticas e simbólicas, o que ajuda a entender por que certos termos se transformam tão rapidamente em fenômenos culturais.

Além disso, como afirma o linguista Marcos Bagno (2007), a língua não é um código fixo e homogêneo, mas um conjunto de variações em constante negociação social. Para ele, o que muitos classificam como "erro" ou "ameaça ao idioma" é, na verdade, parte do funcionamento natural da linguagem. Ao considerar a influência da internet nas práticas linguísticas cotidianas, Bagno reforça que a norma culta não é superior às formas populares ou digitais de expressão — todas revelam, à sua maneira, as dinâmicas culturais e sociais do nosso tempo.

Esses exemplos revelam uma verdade muitas vezes esquecida: a língua é viva e reflete a sociedade em que vivemos. O que hoje é gíria ou meme pode, no futuro, fazer parte do vocabulário formal. Em vez de enxergar essas mudanças com receio ou preconceito, é interessante acompanhá-las com curiosidade. Afinal, elas mostram não só como falamos, mas também como pensamos, nos relacionamos e sentimos. E, se a língua acompanha a vida, nada mais natural que ela seja tão mutável quanto nós.

Referências:

BAGNO, Marcos. Nada na língua é por acaso: por uma pedagogia da variação linguística. São Paulo: Parábola Editorial, 2007;

PRIBERAM. Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. Priberam Informática, [s.d.]. Disponível em: https://dicionario.priberam.org/. Acesso em: 04 jul. 2025; e

SANTAELLA, Lucia. Cibercultura: linguagem e tecnologia na era digital. São Paulo: Editora Paulus, 2003.

ADRIANA MELLO














Licenciada em Língua Portuguesa e Língua Inglesa – Faculdades Integradas de Cruzeiro (1996);

 -Pós-graduada em Leitura e Produção de Texto pela Universidade de Taubaté (1999);

-Professora efetiva na rede estadual paulista desde 2000;

-Complementação Pedagógica pela  UNIG (2001);

-Mestre em Linguística Aplicada pela Universidade de Taubaté (2003); 

 -Pós-graduada em Ensino de Língua Inglesa pela UNESP REDEFOR (2012)   e

- Designada no Programa de Ensino Integral desde 2014, na EE Oswaldo Cruz (Cruzeiro/SP)

Área de Linguagens (Português / Inglês)

Nota do Editor:

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