quinta-feira, 10 de julho de 2025

Na verdade, o que chamam de "amor" é trabalho não remunerado...


 

@ Luiza Pereira

A frase do título escancara uma realidade cotidiana por vezes invisibilizada: A romantização do trabalho de cuidado realizado majoritariamente por mulheres dentro dos lares. Este trabalho, essencial ao funcionamento da sociedade e ao bem-estar das famílias, segue desvalorizado, não contabilizado e naturalizado socialmente como "prova de amor".

Importante esclarecer que considera-se como trabalho não remunerado toda atividade que exige tempo, energia e habilidade, mas que não gera retorno financeiro direto, como lavar, cozinhar, limpar, cuidar de crianças, idosos ou pessoas doentes. Tarefas que sustentam a vida, mas que raramente entram em estatísticas econômicas ou decisões patrimoniais.

De acordo com dados do IBGE[1], mulheres brasileiras dedicam em média o dobro de horas semanais aos afazeres domésticos e cuidados com pessoas do que os homens. Isso revela um desequilíbrio estrutural que atravessa todas as classes sociais.

Muitas mulheres vivem sob o peso da jornada tripla de trabalho e a desigualdade de gênero, que engloba:

1.O trabalho remunerado fora de casa;

2. O trabalho doméstico dentro de casa; e

3. O cuidado com filhos e familiares dependentes.

Essa sobrecarga pode afetar diretamente sua saúde física e mental, o desempenho profissional, a autonomia financeira e as chances de ascensão social. O que se convencionou chamar de "amor materno" ou "dedicação feminina" é, na verdade, uma forma velada de exploração de gênero. Nas relações familiares, é comum rotular o cuidado com o lar e os filhos como uma expressão natural do afeto feminino. No entanto, essa visão romântica mascara a lógica do machismo estrutural, que atribui às mulheres a responsabilidade exclusiva de manter a casa em ordem e os vínculos afetivos funcionando. Entretanto, amor não é sinônimo de sobrecarga.

A verdade é simples e urgente: trabalho doméstico é trabalho. Requer organização, conhecimento, paciência e esforço constante. Sua invisibilização contribui para a desvalorização da mulher como sujeito de direitos e de patrimônio.

O Direito das Famílias e divisão justa de responsabilidades precisa acompanhar essa realidade. A ausência de remuneração ou reconhecimento formal do trabalho doméstico tem reflexos diretos, como por exemplo, na partilha de bens após a dissolução de uma união. Quando o patrimônio é adquirido apenas em nome do homem que teve “carreira”, mas foi sustentado emocionalmente e logisticamente pelo trabalho invisível da mulher.

Essa é uma distorção que a jurisprudência tem evoluído para tentar corrigir, reconhecendo a importância do trabalho doméstico, tanto na formação do patrimônio comum, quanto no cuidado com os filhos e na herança. A valorização desse trabalho é medida de justiça e de igualdade substancial.

Como destaca o Texto para Discussão nº 329 do Senado Federal, ‘trata‑se apenas de uma compensação financeira pelo reconhecimento do valor econômico do trabalho de cuidado’, ressaltando que, ao abrir mão da carreira para dedicar tempo integral aos cuidados, a mulher sofre um verdadeiro ‘apagão profissional’.[2]

O cuidado é trabalho, e a justiça começa pelo seu reconhecimento.

Hoje, já há um entendimento desenvolvendo-se de que o esforço invisível da mulher que se dedicou integralmente ao lar, abrindo mão de carreira e de renda própria, contribui de forma direta para a constituição e preservação do patrimônio familiar. Não se trata de "ajuda", mas de participação ativa na vida econômica da família, ainda que sem contrapartida financeira.

Nesse sentido, é emblemática a decisão recente do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, que reconheceu o direito à meação de bens à companheira que, mesmo sem renda própria, contribuiu com trabalho doméstico e cuidado dos filhos:
Ementa: "Em união estável sob o regime da comunhão parcial de bens, é cabível a partilha igualitária do patrimônio adquirido na constância da convivência, ainda que os bens estejam registrados apenas em nome de um dos conviventes, notadamente quando evidenciada a contribuição indireta da mulher por meio do trabalho doméstico e cuidado com os filhos.  TJSC – Apelação Cível n. 5005687‑57.2021.8.24.0091[3]

Essa e outras decisões[4] sinalizam uma virada de chave: lentamente, o Judiciário passa a reconhecer que o amor não se mede pela renúncia, e que a entrega cotidiana da mulher ao cuidado e à manutenção do lar tem valor jurídico, e deve, sim, ser compensada e partilhada.

A jurisprudência também dialoga com o que já prevê a doutrina: o princípio da solidariedade familiar, a função social da família e a busca pela efetiva igualdade de direitos entre homens e mulheres, conforme preceituam a Constituição Federal (arts. 1º, III; 3º, I e IV; 226, §5º) e o Código Civil (art. 1.658 e seguintes).

Justiça é reconhecer que o tempo, o corpo e a energia das mulheres têm valor e que trabalho de cuidado é, sim, trabalho. Amor não é sobre sacrifício unilateral. Amor é partilha. E o cuidado só é justo quando é compartilhado.

REFERÊNCIAS

[1] IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Mulheres brasileiras na educação e no trabalho. Portal IBGEeduca. Disponível em: https://educa.ibge.gov.br/criancas/brasil/atualidades/20459-mulheres-brasileiras-na-educacao-e-no-trabalho.html. Acesso em: 1 jul. 2025.;

2] SENADO FEDERALEconomia do Cuidado e Direito de Família: Texto para Discussão nº 329. Brasília: Senado Federal, [mês/ano de publicação, se disponível]. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/.../td329. Acesso em: 1 jul. 2025;

[3] TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SANTA CATARINA. Apelação Cível nº 5005687‑57.2021.8.24.0091. Ementa. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/tj-sc/2567542967. Acesso em: 1 jul. 2025;

[4] A 4ª Turma do STJ pacificou entendimento de que a companheira tem direito à indenização pelos serviços domésticos prestados durante a convivência, compensando o "apagão profissional" causado pela dedicação integral ao lar. STJ – Recurso Especial 331511/SE BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 4ª Turma. Recurso Especial nº 331511/SE. Reconhecimento do direito da companheira à indenização pelos serviços domésticos prestados durante a convivência. Ementa em: JusBrasil. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/busca?q=indeniza%C3%A7%C3%A3o+por+servi%C3%A7os+domesticos+prestados. Acesso em: 1 jul. 2025.

BIBLIOGRAFIA

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 5 out. 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 1 jul. 2025;
BRASIL. Código Civil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 11 jan. 2002. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm. Acesso em: 1 jul. 2025. IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Mulheres brasileiras na educação e no trabalho. Portal IBGEeduca. Brasília:
SENADO FEDERAL. Economia do cuidado e direito de família. Texto para Discussão nº 329. Brasília: Senado Federal, 2024. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/textos-para-discussao/td329. Acesso em: 1 jul. 2025; e
STJ – SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso Especial nº 331.511/SE. Rel. Min. Cesar Asfor Rocha. 4ª Turma. Brasília, DF, julgado em 19 nov. 2002. Disponível em: https://www.stj.jus.br. Acesso em: 1 jul. 2025;
TJSC – TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SANTA CATARINA. Apelação Cível nº 5005687-57.2021.8.24.0091. Rel. Des. Cláudia Lambert de Faria. Julgado em 13 dez. 2023. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/tj-sc/2567542967. Acesso em: 1 jul. 2025.

LUIZA PEREIRA  - OAB/RS- nº 91.233











 Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Ritter dos Reis (2012);

  Conselheira da OAB/RS;

• Pós-graduada em Direito Civil e Processo Civil pelo Centro Universitário Ritter dos Reis (2014);

   Pós-graduada em Direito Público pela UFRGS (2018);

    Colunista do O Blog do Werneck;

        Membro das Comissões do Direito de Família da OAB/RS;

        Membro das Comissões da Mulher Advogada da OAB/RS subseção Canoas;

• Sócia fundadora do escritório LUIZA PEREIRA ADVOCACIA DA FAMÍLIA e PATRIMÔNIO, OAB/RS 10.357, com atuação exclusiva na área do direito de Família e Sucessões desde 2013.

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Nota do Editor:

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Um comentário:

  1. Excelente texto! Você aborda com clareza e profundidade um tema fundamental e muitas vezes invisibilizado. Gostei especialmente da forma como expôs o conceito de trabalho não remunerado e o relacionou com a desigualdade de gênero estrutural. É uma reflexão necessária para provocar mudanças reais na valorização do cuidado e na divisão justa das responsabilidades dentro dos lares. Parabéns pela sensibilidade e pela qualidade da análise!

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