Autora:Vitória
Luiza El Murr (*)
A promulgação da Lei 14.713/2023 representa um marco significativo na defesa dos direitos de crianças e adolescentes em situações de vulnerabilidade. Com a inclusão de uma importante exceção à regra da guarda compartilhada, essa lei estabelece um novo parâmetro de proteção para os filhos cujos pais estejam envolvidos em casos de violência doméstica.
Essa alteração no Código Civil, ao impedir a concessão de guarda compartilhada quando há indícios de violência, reforça o papel do Estado na proteção dos mais vulneráveis, oferecendo às crianças e adolescentes uma salvaguarda essencial contra os efeitos devastadores de um ambiente familiar abusivo.
Antes da sanção dessa lei, o regime de guarda compartilhada havia se consolidado como regra imposta pelo ordenamento jurídico pátrio, uma evolução significativa das políticas familiares com o intuito de garantir responsabilidades equilibradas entre os pais após a dissolução do relacionamento.
A guarda compartilhada, instituída pela Lei 11.698/2008, representou um avanço ao priorizar o melhor interesse da criança e do adolescente, promovendo uma divisão equitativa de responsabilidades e encorajando uma parentalidade ativa por ambos os genitores, independentemente do término do vínculo conjugal.
Contudo, embora o objetivo da guarda compartilhada fosse a cooperação entre os pais, o dispositivo legal não diferenciava com precisão casos em que o convívio poderia ser prejudicial ao bem-estar da criança, especialmente nos cenários em que havia violência doméstica. Até a promulgação da Lei 14.713/2023, o regime de guarda compartilhada poderia, em tese, ser aplicado mesmo quando existiam indícios de violência, sendo a sua exclusão uma medida excepcional. O legislador, à época, confiava na discricionariedade judicial para que, analisando o caso concreto, o juiz decidisse sobre a aplicação ou não da guarda compartilhada. No entanto, essa abordagem apresentou falhas na proteção integral dos menores.
Um dos pontos de maior vulnerabilidade do antigo regime era a subjetividade que envolvia a análise de casos com suspeita ou evidências de violência. Mesmo com mecanismos processuais que previam a oitiva de testemunhas e a coleta de provas, o julgamento sobre a capacidade parental podia ser complexo, especialmente quando a violência não deixava marcas físicas visíveis, como é o caso de abusos psicológicos e emocionais. Assim, existiam situações em que o agressor poderia, ainda que indiretamente, manter controle e coação sobre o outro genitor através de uma guarda compartilhada imposta, utilizando-se da criança como um instrumento de manipulação e intimidação.
É nesse contexto que a Lei 14.713/2023 emerge como uma resposta contundente às limitações da legislação anterior. A nova norma traz a previsão expressa de que a guarda compartilhada não pode ser concedida quando houver indícios de violência doméstica, ampliando a proteção da integridade física, psíquica e emocional dos menores envolvidos. Essa mudança é de extrema relevância, pois reconhece que a violência doméstica, em suas múltiplas formas, compromete gravemente a convivência familiar e o desenvolvimento saudável da criança, mesmo quando esta não é vítima direta dos atos violentos.
A legislação, ao reconhecer os impactos da violência doméstica no ambiente familiar, visa não apenas resguardar a criança de exposições diretas ao conflito, mas também garantir que ela não seja utilizada como um instrumento de perpetuação do abuso. Estudos psicológicos amplamente aceitos indicam que crianças que presenciam atos de violência em casa, mesmo que indiretamente, sofrem prejuízos emocionais que podem se estender por toda a vida adulta. Elas vivenciam um ambiente de tensão e medo constante, o que afeta seu comportamento, aprendizado e suas relações interpessoais. Assim, a retirada da guarda compartilhada em casos de violência doméstica não se trata de uma mera questão técnica de direito de família, mas de uma medida urgente de proteção psicossocial.
A Lei 14.713/2023 também reforça a responsabilização do agressor, que, ao ser impedido de exercer a guarda compartilhada, perde um importante mecanismo de controle sobre a vítima. Esse ponto é essencial, pois em muitos casos de violência doméstica, o exercício da guarda era utilizado como uma ferramenta de prolongamento do abuso, obrigando a vítima a manter uma relação de proximidade com o agressor. A legislação anterior, ao não fazer a distinção necessária nesses casos, colocava as mães – em sua maioria as vítimas de violência doméstica – e seus filhos em uma posição de contínua exposição ao abusador, perpetuando o ciclo de violência familiar.
Além disso, a nova norma corrige um descompasso entre a teoria e a prática no direito de família. O melhor interesse da criança sempre foi o norte orientador das decisões judiciais envolvendo guarda, mas a concessão de guarda compartilhada em casos de violência frequentemente colocava em xeque esse princípio. Ao trazer uma proibição expressa, a lei assegura que o melhor interesse da criança seja efetivamente preservado, excluindo qualquer possibilidade de a guarda compartilhada ser utilizada como um instrumento de perpetuação de abuso ou como uma medida que comprometa o ambiente familiar saudável e seguro que a criança necessita para se desenvolver plenamente.
Um ponto importante a ser destacado é que a Lei 14.713/2023 não elimina por completo a convivência com o genitor agressor, salvo em casos extremos em que a visitação também seja contraindicada por razões de segurança. A convivência poderá ser regulada de maneira que proteja a criança, por exemplo, por meio de visitas supervisionadas, uma alternativa comum em casos de violência doméstica. Nesse sentido, a lei busca equilibrar o direito de convivência parental com a garantia de segurança e bem-estar do menor, evitando a exclusão total do genitor violento do convívio, exceto quando absolutamente necessário.
Vale destacar que, com a sanção dessa lei, o Brasil se alinha com uma tendência internacional de maior proteção dos direitos das crianças em situações de violência doméstica. A Convenção sobre os Direitos da Criança, da qual o Brasil é signatário, prevê que os Estados Partes devem adotar todas as medidas legislativas e administrativas necessárias para proteger a criança contra qualquer forma de violência, abandono, maus-tratos ou exploração. A Lei 14.713/2023 reflete esse compromisso internacional, ao estabelecer salvaguardas mais robustas e detalhadas no direito interno, voltadas à preservação da integridade das crianças e adolescentes que convivem com o drama da violência doméstica.
Em suma, a Lei 14.713/2023 é uma vitória significativa na proteção de crianças e adolescentes, bem como na construção de um ambiente familiar mais seguro e saudável. Ao impedir a guarda compartilhada em casos de violência doméstica, o legislador brasileiro reconhece os efeitos devastadores da violência sobre os menores, trazendo à tona a necessidade de priorizar a segurança, o bem-estar e o desenvolvimento emocional das crianças acima de qualquer consideração sobre a igualdade de responsabilidades parentais. Essa mudança legislativa reforça o compromisso do Estado com a proteção dos vulneráveis e representa um avanço imprescindível para a evolução do direito de família no Brasil.
*VITÓRIA LUIZA RL MURR
-Graduada pela Faculdades Metropolitanas Unidas – UniFMU (2018);
-Pós graduada em Direito de família e sucessões pela Escola Paulista de Direito - EPD (2020); e
- Áreas de Atuação: Direito de Família e Sucessões, Direito Imobiliário, Direito do Consumidor.
Nota do Editor:
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