quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Incidência do CDC nos Contratos de Seguro e Bancários


Numa linguagem figurada, é possível dizer que seguro é uma espécie de rede jurídico-econômica que nos protege dos riscos a que estamos expostos. 

Poucos têm em exata dimensão a importância do seguro no mundo econômico moderno; mais do que meio de preservação do patrimônio, tornou-se, também, instrumento fundamental de desenvolvimento. Não fora a segurança que só o seguro pode dar, inúmeros empreendimentos seriam absolutamente inviáveis dada a enormidade os riscos que representam. Bastaria, por exemplo, uma única plataforma de extração de petróleo incendiada, ou uma aeronave acidentada, com centenas de vítimas, para abalar irremediavelmente a estabilidade econômica das empresas que exploram tais tipos de atividades. Mas, através do seguro, consegue-se socializar o dano, repartindo-o entre todos (ou muitos), de sorte a torná-lo suportável, por maior que ele seja. Além disso, o seguro movimenta bilhões de dólares anualmente, gerando riqueza e milhares de empregos em todo o país. 

Boa definição do seguro é aquela que lhe deu a Rainha Elizabeth I, há mais de três séculos: “Com o seguro, o dano é um fardo que pesa levemente sobre um grande número de pessoas, em vez de insuportavelmente sobre um pequeno número.” 

Hoje não mais se questiona a incidência do Código do Consumidor nos contratos de seguro, mesmo porque o seu art. 3º, §2º, inclui expressamente a atividade securitária no comércio de serviços. Por se tratar de conceito legal, vale dizer, interpretação autêntica, não há como negar que, além da disciplina estabelecida no Código Civil e leis especiais, o seguro está também subordinado aos princípios e cláusulas gerais do Código do Consumidor sempre que gerar relações de consumo. 

E como o contrato de seguro é normalmente civil, realizado entre o segurador e pessoa física, na sua imensa maioria configura relação de consumo. Só não se aplicará o Código do Consumidor quando o contrato de seguro for empresarial, isto é, contratado por um empresário como insumo de sua atividade econômica, seguro por acidente de trabalho, de crédito, de transporte etc. Nesses casos, o segurado é invariavelmente empresário e a garantia pretendida com o contrato representa um insumo da empresa. 

Essa é a lição de Fábio Ulhoa Coelho, a seguir: 

"Os seguros civis estão sempre sujeitos à disciplina da lei tutelar dos consumidores. Se o contratante do seguro não é empresário ou a garantia não é insumo de atividade empresarial, a relação de consumo invariavelmente se caracteriza entre ele e a seguradora. Nesse caso, o contratante, segurado e mesmo o beneficiário são consumidores pela lei (CDC, art. 2º), ao passo que a seguradora é fornecedora de serviço nela especificado (CDC, art. 3º e seu §2º). Para invocar proteção da legislação consumerista, o consumidor de seguro civil não precisa provar sua condição de vulnerável, que a lei reconhece e presume de modo absoluto . Quando, porém, o risco objeto de cobertura é insumo do contratante do seguro e este evidentemente empresário, em princípio, não se aplica ao contrato o CDC. Em suma, o seguro está sujeito à legislação tutelar dos consumidores , a exemplo de todos os demais contratos , se caracterizada a relação de consumo, isto é, se contratante do seguro ou segurado pode ser considerado o destinatário final do serviço securitário."
Não se aplica o Código do Consumidor, igualmente, quando segurada for a administração pública. O seguro é sempre insumo (meio) para a realização dos fins visados pelo Estado, de sorte que a administração pública não é sua destinatária ou usuária final. 

No mundo negocial tornou-se usual a expressão contrato de consumo. Se examinarmos o Código do Consumidor do começo ao fim, não vamos nele encontrar a disciplina de nenhum contrato de consumo; o Código sequer utiliza essa expressão; fala em relação de consumo, no que andou bem. 

Realmente, seria uma temeridade, até uma impossibilidade, se o legislador pretendesse disciplinar no CDC todos os contratos que geram relação de consumo. Hoje, tudo ou quase tudo tem a ver com consumo: saúde, habitação, segurança, transportes, alimentação, vestuário, serviços públicos de luz, água, telefonia, e assim por diante. Somos mais de 200 milhões de consumidores, sem contar as pessoas jurídicas, gerando diariamente outras tantas milhões de relações de consumo. Consumo é um estuário onde desaguam todas as áreas do Direito.

Os contratos bancários é a área em que o CDC sofreu a maior resistência. O Código do Consumidor, em seu art. 3º, §2º, incluiu expressamente a atividade bancária no conceito de serviço. Tratando-se, como se trata, de conceito legal, desde então não há como excluir os bancos da incidência do Código do Consumidor. 

Como se vê, não há fundamento jurídico que permita afastar a aplicação do Código do Consumidor das operações bancárias. Os bancos são empresas comerciais que captam recursos no mercado financeiro para os redistribuir em operações de crédito. O produto da atividade bancária é o dinheiro e o crédito conferido ao cliente para ser utilizado no consumo de produtos e serviços. Só não haverá relação de consumo caso o devedor tome o dinheiro para repassá-lo. 

Igualmente inconsistente o argumento no sentido de não estarem subordinados à disciplina do Código do Consumidor os depósitos em conta corrente, CDB e poupança por não receberem os bancos remuneração por esses serviços. Ninguém desconhece que se trata de uma gratuidade aparente porque os bancos, ao reaplicarem no mercado financeiro os recursos captados dos poupadores e correntistas, recebem uma remuneração indireta muito superior ao rendimento creditado aos titulares das contas. A toda evidência, a gratuidade a que se refere o conceito de serviço constante no art.3º, §2º, do Código de Defesa do Consumidor é a gratuidade real, e não meramente aparente, cujo serviço tem remuneração indireta. 

Tal como a doutrina, a jurisprudência do egrégio Superior Tribunal de Justiça prestigia também a aplicação do Código do Consumidor nas operações bancárias. Hoje a questão está sumulada no Superior Tribunal de Justiça no verbete nº 297: “O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras.”. 

Inquestionavelmente, os bancos desempenham importantíssimo papel social e econômico. O crédito está na base do desenvolvimento e da sustentação contemporâneos, e as instituições financeiras, nesse cenário, são indispensáveis para o atendimento das necessidades dos consumidores. Prova disso é a Crise Financeira Global que se agravou em 2008 em todos os países do mundo. E a crise teve início na quebradeira dos bancos a partir dos Estados Unidos (EUA). Bilhões de dólares foram injetados na economia pelas grandes potências econômicas, em socorro das instituições financeiras. 

É exatamente em razão desse relevantíssimo papel social e econômico que os bancos desempenham numa sociedade desigual como a brasileira, onde o fornecimento de crédito é indispensável até mesmo para a satisfação de necessidades primárias para a larga maioria da população, que a atividade bancária tem que ser controlada para impedir os abusos. 

Não por acaso, as primeiras leis protetivas do consumidor versaram sobre atividades relacionadas ao fornecimento de crédito – no Brasil, por exemplo, a Lei de Usura e Lei de Economia Popular. Nada, portanto, justificaria a exclusão das citadas instituições da submissão, nas suas relações com os consumidores, de seus produtos e de seus serviços ao sistema do Código de Defesa do Consumidor. 

Por FLÁVIO CARDOSO



















- Advogado - OAB/SE 8.904;
- Especialista em Direito Público;
- Pós-Graduado em Direito do Consumidor;
- Membro da Comissão de Direito do Consumidor da OAB/SE;
- Sócio do Escritório CBZ Advogados.

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