terça-feira, 4 de setembro de 2018

Maiakovski, Fleury, Lula, o STF e Outras Mazelas





"Na primeira noite eles se aproximam / e roubam uma flor / do nosso jardim. / E não dizemos nada. / Na segunda noite, já não se escondem; / pisam as flores, / matam nosso cão, / e não dizemos nada. / Até que um dia, / o mais frágil deles / entra sozinho em nossa casa, / rouba-nos a luz, e, / conhecendo nosso medo, / arranca-nos a voz da garganta. / E já não podemos dizer nada." ([1])
Este trecho de poesia de autoria do carioca Eduardo Alves da Costa, erroneamente atribuído ao poeta russo Vladimir V. Maiakovski (1893 - 1930), fez furor no Brasil durante os anos 70 e 80 do século passado, entre os que nos opúnhamos à ditadura militar.

O poema - cuja leitura integral é imperdível (vide nota 1) - é um grito contra a mentira, contra a resignação covarde, a propaganda enganosa ("Olho ao redor / e o que vejo / e acabo por repetir são mentiras. / Mal sabe a criança dizer mãe / e a propaganda lhe destrói a consciência"), propaganda esta bem ao estilo Joseph Goebbles (1897 - 1945), o gênio da comunicação nazista, a quem se atribui a frase "uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade."

Aliás, é notável que a referência que Eduardo Costa faz à repetição da mentira, se aplique à própria falsa atribuição de autoria do poema, pois, ainda hoje há quem pense tratar-se de obra do famoso poeta russo.

A reflexão vem a propósito da grande discussão que se trava no país acerca da possibilidade de prisão de condenado em processo criminal, já julgado em segunda instância, até que não caiba mais nenhum recurso contra a decisão condenatória (ou seja, até o "trânsito em julgado"). Tal reflexão é feita não sob o ângulo da mentira, mas sob o ângulo da permissividade contra o Direito e a Lei.

Nas Constituições anteriores à de 1988 não havia qualquer disposição quanto ao "trânsito em julgado" de decisão condenatória, limitando-se a estabelecer - grosso modo - que "ninguém será preso senão em flagrante delito ou, por ordem escrita da autoridade competente, nos casos expressos em lei" (art. 141, § 20 da CF/1946; com redações variáveis, mas em sentido semelhante: o § 11 do art. 122 da CF/1937, o § 21 do art. 113 da CF/1934, § 13 do art. 72 da CF/1891 e § 10 do art. 179 da Constituição do Império de 1824).

Já o Código de Processo Penal (CPP), decretado por Getúlio Vargas em plena ditadura (Decreto-Lei 3.689 de 3/X/1941), tratava da prisão decorrente de sentença condenatória - ou de pronúncia nos crimes de competência do Tribunal do Júri - nos artigos 393, 408, §1º e 594.

O artigo 393([2]) determinava a prisão como consequência imediata da sentença condenatória ainda que recorrível, ou seja, bastava a condenação em primeira instância para que o réu fosse preso. Igualmente o artigo 408, §1º([3]) que autorizava o juiz de primeira instância, determinar a prisão do réu apenas com a sentença de pronúncia, isto é, a decisão que mandava o acusado ao Tribunal do Júri.

E, mais,  o réu não poderia apelar se não estivesse preso, motivo pelo qual, se estivesse solto só poderia recorrer entregando-se à prisão e, caso fugisse dela depois de recorrer, o recurso ficaria "deserto", isto é, seria considerado inexistente, conforme dispunham os artigos 594([4]) e 595([5]) daquele Código.

A primeira grande mudança nesse sistema deu-se em 1973, no auge de outra ditadura. Para proteger o Delegado Sérgio Paranhos Fleury, então chefe do DOPS e notório torturador, que estava prestes a ser julgado por homicídios ligados ao "Esquadrão da Morte" - milícia de extermínio de "inimigos" do Estado que era acobertada pelo regime -, o governo militar fez aprovar no Congresso a Lei 5.941 de 22/XI/1973, que ficou conhecida como Lei Fleury.

Esta Lei modificou, entre outros, a redação dos artigos 408 e 594 do CPP, para estabelecer que a prisão automática deixasse de ser aplicável se o réu fosse "primário e de bons antecedentes".

A mudança,  embora destinada a proteger um membro do regime, foi saudada mesmo pelos mais contrários à ditadura, como um avanço, porque dava maior amplitude ao princípio da presunção de inocência([6]), coibindo eventuais condenações injustas, arbitrárias ou equivocadas, contra pessoa de "bons antecedentes",  garantindo sua liberdade até o reexame da condenação.

Com a redemocratização do país os constituintes de 1988, na ânsia de cercear qualquer tipo de arbitrariedade, praticada em larga escala nos tempos sombrios da ditadura que se encerrara, alçam a presunção de inocência à categoria de princípio constitucional, insculpido nas chamadas “cláusulas pétreas” (art. 60, § 4º, IV da CF/88).

Assim, a CF de 1988, em seu artigo 5º, inciso LVII determina que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória"([7]). Deu-se, portanto, uma ampla elasticidade ao princípio de presunção de inocência, sobrepondo-o a decretos condenatórios sujeitos a qualquer recurso, sejam de primeira ou segunda instância e, até mesmo, da instância especial (Superior Tribunal de Justiça) se pendente julgamento de eventual Recurso Extraordinário pelo Supremo Tribunal Federal.

Daí, porque, a seguir-se rigorosamente o disposto na norma constitucional, nenhum condenado pode ser encarcerado para cumprir  pena enquanto houver qualquer recurso possível, salvo no caso de prisão temporária ou prisão preventiva, que podem ser decretadas pelo juiz, a qualquer momento do processo, nas hipóteses previstas em Lei. Veja-se que as prisões temporária e preventiva nada têm a ver com o cumprimento de sentença condenatória; trata-se do que é denominado de "prisão processual" que tem por finalidade garantir a ordem pública, a ordem econômica a investigação ou a aplicação da lei penal([8]) e que, portanto, como dito acima, podem ser decretadas a qualquer momento do processo, em qualquer instância e antes da condenação do acusado.

Em 2008, duas alterações no Código de Processo Penal sobrevêm: uma, com a total modificação do artigo 408 (que tratava da prisão após a sentença de pronúncia), que passa a tratar de matéria completamente diversa ([9])  e outra com a revogação do artigo 594 ([10]) que só facultava o direito a recurso aos réus presos ou que se recolhessem à prisão.

Já em 2011, a Lei 12.403  não só revoga o artigo 393 do CPP -  aquele que estabelecia como efeito da sentença condenatória a imediata prisão do réu (vide nota 2) - como dá nova redação ao artigo 283, que passa dispor que:  "Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva".

Como está claro, essas modificações legislativas nada mais fizeram do que adaptar o CPP ao texto constitucional- após mais de 20 anos de vigência deste -, pois os mencionados dispositivos  contrariavam o mandamento de que ninguém pode ser considerado culpado até que não caiba mais nenhum recurso de defesa.

Porém, não por acaso, a meu ver, essas modificações legislativas foram feitas entre 2008 e 2011, quando já em andamento Ação Penal 470 ("Mensalão") e quando se iniciava a "Operação Lava Jato" (iniciada em 2009).

Chama a atenção, ainda, a Súmula 267 do Superior Tribunal de Justiça, que estabelece: "A interposição de recurso sem efeito suspensivo, contra decisão condenatória não obsta a expedição de mandado de prisão", decisão frontalmente contrária ao texto da Constituição Federal, mas que vige ainda hoje, apesar da nova redação dada pela supracitada Lei 12.403/11, ao artigo 283 do CPP e do julgamento, realizado em 2009 pelo Supremo Tribunal Federal, do Habeas Corpus 84.078/MG.

Neste HC o Plenário da Suprema Corte decidiu, por maioria de 7 a 4, pela inconstitucionalidade da prisão antes do trânsito em julgado de sentença condenatória, mudando assim o entendimento que prevalecia até então, inclusive objeto da referida Súmula do STJ.

Como não é novidade para ninguém, nossos cárceres estão abarrotados de presos que sequer julgados foram, de outros que já cumpriram pena e de tantos mais que, condenados em primeira instância, aguardam o julgamento de seus recursos há anos e nunca ninguém se incomodou com isso (como diz o povo, "lugar de bandido é na cadeia!"). Paradoxalmente, poucos se incomodavam com o uso abusivo de recursos sem fundamento e nitidamente protelatórios (e ressalto o "abusivo", pois que tenho o direito a recursos como absolutamente sagrado) que levavam à impunidade ou até à fuga de condenados que aguardavam em liberdade ([11]).

Porém, a notoriedade dos envolvidos no lodaçal do "Mensalão" e da "Lava Jato", a decepção dos que acreditaram nos arautos da moralidade pública que não fizeram senão conspurcá-la da maneira mais reles, acabaram levando o debate da matéria à imprensa não especializada e ao público em geral. A grita aumentou quando o ex-presidente Lula foi processado e, a final, condenado. A questão deixou de ser jurídica, deixou de ser técnica e passou ao plano das paixões humanas.

E, nesse clima de clamor público, é que o Plenário do Supremo (agora com outros membros) foi levado a debruçar-se, novamente, sobre o tema, no Habeas Corpus 126.292/SP, julgado em 17/02/2016, e por 7 a 4 firmam entendimento contrário ao tomado em 2009, entendendo constitucional a prisão após o julgamento de segunda instância.

Ante a clareza cristalina do texto do inciso LVII do art. 5º da CF/1988, como já se disse alhures, a decisão tomada em 2016 pelo STF usurpa competência legislativa, constituindo-se em verdadeira emenda constitucional disfarçada. E, pior, de cláusula imutável (pétrea), sequer por Emenda Constitucional.

E é esse, exatamente, o problema. O Supremo Tribunal Federal vem, voluntariamente ou premido pela sociedade, se arvorando na função de legislar. Assim é com a questão do aborto, das células tronco e de tantas outras que por lá têm passado ultimamente. Apenas 7 ministros - que constituem a maioria da Corte - têm o poder de tomar decisões que deveriam ser submetidas a exame e votação pelas duas casas do Legislativo Federal, da qual deveria emanar o poder. Mas o Legislativo não cumpre seu papel, ou o cumpre mal, porque a corrupção, a sede de poder, a desonestidade, a defesa apenas dos interesses próprios e escusos, parecem ter tomado conta do Estado.

O assunto é gravíssimo. Nessa hora em que imperam, de um lado, o  inconformismo de muitos com o que reputam ausência de justiça e - de boa-fé - entendem seja mais adequado dar uma interpretação menos formalista à Lei,  e, de outro, o sentimento revanchista  dos que querem “justiça” a qualquer preço,  há os que se calam ou fazem vista grossa à agressão à Lei, com receio de opor-se ao sentimento de revolta generalizada, “Até que um dia, /  o mais frágil deles /  entra sozinho em nossa casa, /  rouba-nos a luz, e, /  conhecendo nosso medo, /  arranca-nos a voz da garganta. /  E já não podemos dizer nada.”.

REFERÊNCIAS


[1] "No Caminho com Maiakovsky", COSTA, Eduardo Alves da - in Poesia Brasileira, Nova Fronteira, 1985. Texto completo, entre outros, no sítio https://www.recantodasletras.com.br/poesias/5655034
[2] Art. 393. São efeitos da sentença condenatória recorrível;
I - ser o réu preso ou conservado na prisão, assim nas infrações inafiançáveis, como nas afiançáveis enquanto não prestar fiança.
 [3] Art. 408. Se o juiz se convencer da existência do crime e de indícios de que o réu seja o seu autor, pronunciá-lo-á, dando os motivos do seu convencimento.
§ 1º Na sentença de pronúncia o juiz declarará o dispositivo legal em cuja sanção julgar incurso o réu, mandará lançar-lhe o nome no rol dos culpados, recomendá-lo-á na prisão em que se achar, ou expedirá as ordens necessárias para a sua captura.
[4] Art. 594. O réu não poderá apelar sem recolher-se à prisão, ou prestar fiança, salvo se condenado por crime de que se livre solto.
[5] Art. 595. Se o réu condenado fugir depois de haver apelado, será declarada deserta a apelação.
[6] O princípio de presunção da inocência foi consagrado no artigo 9º da Declaração dos Direitos Humanos de 1789  e reafirmado, quase dois séculos depois, no artigo XI da Declaração Universal dos Direitos Humanos, promulgada pela ONU em 10 de dezembro de 1948, com os seguintes teores:
·        " Art. 9º. Todo acusado é considerado inocente até ser declarado culpado e, se julgar indispensável prendê-lo, todo o rigor desnecessário à guarda da sua pessoa deverá ser severamente reprimido pela lei.·         XI - Todo ser humano tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir sobre seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele."
[7] "Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;"
[8] "Art. 312.  A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria.  (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).
Parágrafo único.  A prisão preventiva também poderá ser decretada em caso de descumprimento de qualquer das obrigações impostas por força de outras medidas cautelares (art. 282, § 4o)."
[9]  Lei 11689 de 9 de junho de 2008
[10] Lei 11719 de 20 de junho de 2008
[11] A respeito do tema aqui tratado, interessante artigo de Luciano Ferreira, estagiário do Acervo O GLOBO, sob supervisão do Editor Gustavo Villela, publicado em 20/03/2018 e disponível em https://acervo.oglobo.globo.com/em-destaque/polemica-prisao-apos-2-instancia-entra-em-vigor-com-lei-fleury-em-1973-22507975
Recomendável, também, a leitura da excelente monografia “O princípio da presunção de inocência como garantia penal”, de autoria de Rafael Ferrari, publicado no sítio Âmbito Jurídico.com.br no link:
 http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=11829

POR BATUIRA ROGERIO MENEGHESSO LINO














-Advogado em São Paulo;
-Graduado em 1972 pela USP;
-Atuando na área de consultivo e contencioso cível;
-É sócio do escritório Lino, Beraldi, Belluzzo e Tartarini Advogados. 

Nota do Editor:
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Um comentário:

  1. Perfeito!
    Erudito!
    Mas minha dúvida cruel permanece:

    " As leis são quem devem se adaptar aos réus ou os réus quem deveria se sobrar à força da lei?"

    "Leis envelhecem ou são mal concebidas, ou pior; são maleáveis de forma propsital?"

    Enfim, para um homem que teve tudo alinhado para nos alçar ao crescimento, nos lançou ladeira abaixo e parece que o contra peso ainda está em nosso pescoço. 🤔🤔🤔🤗🤗🤗🇧🇷🇧🇷🇧🇷🇧🇷

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