sexta-feira, 12 de abril de 2019

O Céu e o Inferno em Nós

Autora:Mônica Maria Ventura Santiago(*)


Palavras-Chave:
Céu; Inferno; Comportamento; Conhecimento; Paz; Cólera; Moral; Virtudes; Disciplina de Vivenciação; Leonardo Da Vinci; Jesus; Judas.

Interessante observar nas características do comportamento humano uma certa dicotomia pela qual duas facetas, absolutamente distintas, quais a singeleza e a perversidade, parecem conviver ora, reinando uma, ora reinando outra, cada qual à espreita de oportunas circunstâncias de manifestação.

Criaturas em estado de pacifismo, não de passividade, expressam no comportamento, seja falando, seja nos sentimentos e nas atitudes, a paisagem que todos almejamos qual o Reino dos Céus na Terra.

Indivíduos pacíficos são capazes de influenciar positivamente o meio onde atuam e, com perseverança, conseguem modificar o ambiente. 


Todavia, encontramo-nos na Terra onde a violência dos maus, o ataque dos perversos e a investida dos coléricos se apresentam nas mínimas situações do dia a dia, quando, a vontade do desforço é quase inevitável, transformando todos em iguais, déspotas, tiranos e arbitrários entre si.

Se nos fosse possível separar as duas classes distintas, pacíficos de um lado e coléricos de outro, talvez, pudéssemos escolher o lado aprazível à nossa convivência. 

Mas, a verdade é que, ternura e doçura, brandura, pacifismo e singeleza habitam em cada um de nós assim como a cólera, a raiva, a mágoa, o ressentimento, a inveja, a sede de vingança, as mentiras e traições. 

Virtudes e imperfeições convivem no ser e, na historiografia humana, somente o Mestre Divino constitui a exceção, e, foi por isso que Ele nos disse e João, 14-27, anotou: "A paz vos deixo. A minha paz vos dou" – Porque, embora todos os esforços que façamos na senda do bem, algumas vezes, a agressão é tão rude, a calúnia é tão venenosa, são tão ofensivas as palavras e atitudes alheias, a incompreensão e a intolerância são tão violentas, que sucumbimos e perdemos aquela paz que tanto almejamos.

Obviamente, ninguém perde aquilo que não possui e, se a paz escapa aos nossos sentidos obnubilados pelas agressões recebidas é porque, de fato, não a tínhamos em nós.

Quando o pacífico se permite encolerizar é sinal que trocou a vigilância daquele ensinamento sublime do "vigiai e orai para não cairdes em tentação" – Mateus, 26-41, pelos conflitos do ser em si mesmo, que afligem de fora para dentro e de dentro para fora, seja pelas revoltas que geram animosidades e se espalham intoxicando quantos se encontrem no seu raio de ação; seja por ansiedades descabidas pela aquisição de valores amoedados ou de poder temporal que, ambos, sem real valor, produzem perturbação que afeta o sistema emocional da criatura dando curso a insidiosas enfermidades de consequências funestas.

Nos conflitos do ser em si mesmo, a cólera pode ser ainda, fruto de desventuradas expectativas que resultam do pessimismo contumaz que enreda incautos no desespero e na desesperança que são alimentados pelos mensageiros do erro, da mentira, da falácia e do engodo.

As criaturas repercutem seus conflitos íntimos nos ambientes que frequentam no seio familiar, nas oficinas de trabalho, na sociedade, nas instituições públicas ou privadas, nos movimentos sociais e na seara religiosa, nos educandários e academias, nos campos da política e na justiça, na cultura, na comunicação e nas artes.

Seria esse proceder o inferno na Terra se não fosse o nosso Orbe uma Escola. Educandário abençoado de aprendizado e iluminação para as almas em conflito, no bojo do qual, experiências, vivências e convivências, lapidam aflições e problemas no esclarecimento que liberta da ignorância de fantasmas milenários do crime, da insânia, da maldade e da abjeção extrema.

No contexto destas reflexões, recordo uma das mais belas páginas da Literatura universal, que narra, a história que se pretende real, da experiência marcante do genial Leonardo Da Vinci, quando se preparava para imortalizar o extraordinário mural, intitulado "A Última Ceia" na Igreja de Santa Maria delle Grazie em Milano, na Itália renascentista por volta do ano 1495.

Da Vinci estudava as expressões respectivas de todos os personagens que ele deveria retratar no grande mural. Como seriam as expressões faciais dos discípulos do Mestre Jesus? Que sentimentos e emoções cada um dos presentes naquela Ceia derradeira junto ao seu Mestre, estariam expressando, naquele ágape fraterno?

Mas, Jesus era o Personagem mais importante, afinal, como seria a face do Homem que dividiu a história da Humanidade em antes e depois d’Ele?!

O genial pintor e escultor desejava encontrar um modelo cuja doce brandura e enérgica atitude na coragem de dizer "sim, sim, não, não", aliadas à gentil presença na amorosa compaixão pelo outro, representasse tudo o que se sabia do Divino Senhor. Alguém que pudesse expressar pacifismo, integridade, dignidade e ao mesmo tempo, a valentia de amar incondicionalmente até mesmo o pior dos inimigos.

Leonardo procurou por todos os lugares onde pudesse encontrar pessoas de alma generosa e semblante sereno. Visitou conventos e não logrou êxito ao observar as reações dos religiosos. Procurou nos educandários de Milão e onde quer que se pudesse buscar a presença da paz, em vão.

Porém, certo dia, visitando os campos floridos nos arredores da cidade, escutou uma melodia harmoniosa de alguém que pastoreava as ovelhas tocando uma flauta doce e, atraído por aqueles acordes, deparou-se com um belo jovem. A barba bem cuidada, os cabelos encaracolados na altura dos ombros, olhos azuis como duas estrelas fulgurantes, uma expressão serena e tanta pureza que Da Vinci emocionou-se, encontrara o modelo que lhe serviria para retratar Jesus!
Emocionado, Da Vinci convidou o jovem para o trabalho. Ele posaria para que a sua serenidade pudesse ser retratada e o pintor lhe recompensaria com um pequeno saco de veludo contendo moedas de ouro.

O jovem pastor de ovelhas não era ganancioso, mas, estimulado pela família, aceitou o convite e, ao fim de algumas sessões, estava composto o rosto de Nosso Senhor, Jesus Cristo, no célebre afresco que atravessa os séculos comovendo as criaturas, enaltecendo a genialidade da arte humana.

Contudo, faltava ainda retratar o último dos discípulos do Mestre, Judas Iscariotes. Os anos sucediam-se e aquele era um personagem intrigante. Da Vinci meditava em como deveria retratar a expressão de cobiça pelas moedas de prata daquele que, havia vendido o seu Amigo aos inimigos. Como deveria retratar os olhos inquietos do traidor? Como seria a expressão facial daquele homem cujos conflitos nas ambições foram as marcas miseráveis de seu comportamento?

O célebre artista procurava nas expressões dos piores criminosos de sua época, visitando prisões, antros de degredo e prostituição nos subúrbios da cidade, acreditando que a face de Judas, seria o retrato da hediondez, da vilania, do ódio, da ganância, da cólera e da crueldade. Como ele poderia ter traído o seu Mestre, o Irmão Maior de todos os aflitos e sofredores da Terra?!

Os anos escorreram na ampulheta do tempo e o gênio artístico ainda não encontrara o modelo que lhe inspirasse a face do discípulo imprevidente, mas, ele precisava terminar a Obra. Foi caminhando pelas ruas da cidade que, numa esquina suja e abandonada ao degredo humano, Da Vinci se deparou com um homem atirado à sarjeta, prematuramente envelhecido, trôpego, esfarrapado, mendicante. Contudo, o que chamou sua atenção foi o olhar esgazeado, a expressão facial era odienta, endurecida, algo de arrogante e, ao mesmo tempo muito rancor e maldade. 

Finalmente, Leonardo encontrara nas expressões daquele ser o seu modelo artístico. Sem titubear, convidou-o a posar oferecendo-lhe boa soma de moedas. O homem aquiesceu meneando a cabeça em silêncio o que intrigou ainda mais o artista.

Uma, duas, três, quatro sessões. O modelo em silêncio e Leonardo não se conteve, inquirindo-o: "afinal, o que se passa com você? – Desde que iniciamos o trabalho eu necessitava das expressões próprias do dia em que o conheci. Preciso retratar a impiedade e a insatisfação, mas, a expressão de seus olhos já não é mais a mesma! Aquele ríctus de maldade que vislumbrei em sua face, hoje não encontro mais. O que aconteceu?"

O homem, então, cabisbaixo e pensativo, levantando-se, redarguiu: "Eu não posso mais. O senhor não precisa me pagar nada. Eu não posso mais".

- "Mas, por que não pode? Volte a ser aquele ser desprezível e cruel que eu encontrei, pois, necessito retratá-lo para esta grande Obra!"

"Não posso! Não posso porque no transcorrer deste trabalho, volvi ao meu passado não tão distante, quando o senhor me contratou para ser modelo para o rosto do Cristo de Deus!"

Estarrecido, Leonardo Da Vinci, exclamou: "Mas... como...?! Você não pode ser aquele jovem, o flautista?! O pastor de ovelhas?!
“Sim, senhor! Sou eu! Eu era puro naquele tempo. Minha pureza era construída na ingenuidade. Eu então, não conhecia as misérias do mundo. Quando o senhor me pagou aquelas moedas de ouro que para mim, eram uma fortuna, vi-me cercado por pessoas desonestas, exploradores pertinazes que me levaram à perdição nas ilusões daquilo que o dinheiro podia comprar. Mulheres lindas e devassas se aproximaram jurando-me amor eterno em paixões que me corromperam". 

"Fui ao inferno do degredo moral para defender minhas últimas moedas de ouro. Travei lutas insanas contra bandidos que me atacaram em emboscadas. Matei um, matei outro, tornei-me um assassino. Matei uma mulher que se homiziou em meu coração dizendo me amar enquanto me atraiçoava. Eu a odiei e a matei com meu punhal. Depois de todas essas desgraças eu odiei o mundo. Meu fim, o senhor conheceu quando me encontrou e não me reconheceu. Porém, hoje, recordando meu passado, o que eu fui e no que eu me transformei! Era ingênuo, puro, jovem e inocente! Não posso mais posar, me perdoe!"

Leonardo Da Vinci anotou e a história gravou para sempre o nome de Pietro Bondinelli, legando à posteridade o ensinamento: há em cada criatura virtudes e mazelas. A vida é como uma última Ceia, um convite à messe de amor! É inadiável o processo educativo contra o mal e, antes que cogitemos imprecar contra os maus, é imprescindível buscar a justa elevação de ideias, ideais, emoções e sentimentos.

Aprendamos a viver com nobreza sem a acomodação às situações que nos exigem atitude, pois, acomodação é diferente de resignação e é também adversária da ação no bem!

Se as lutas são árduas e emoções e sentimentos nos constrangem à cólera, é hora de parar, recomeçar e esquecer porque o importante é esforçar-se para a renovação incessante. Jamais permitir que a indecisão, o medo, a insatisfação e as ansiedades perturbem nossa busca pela paz.

Que o Cristo interior em cada criatura seja o Sol que ilumine o Judas que se esconde em nós, convocando-nos a atitudes renovadas no porvir!

Referências Bibliográficas:
Judas Segundo o Evangelho de São João;
Judas Segundo o Evangelho de São Marcos;
Judas Segundo o Evangelho de São Mateus;
Livros:
Judas – Betrayer or Friend of Jesus – Autor: William Klassen – Fortress Press ex Libris Publication 2005.
A Ciência de Leonardo Da Vinci – Um Mergulho Profundo na Mente do Grande Gênio da Renascença – Autor: Fritjof Capra – Editora Pensamento – Cultrix Ltda.2007.

Obras da Literatura Espírita / Joanna de Ângelis/ Divaldo P. Franco.

*MÔNICA MARIA VENTURA SANTIAGO
















- Advogada. Especialidades:
- Direito de Família e Sucessões,
- Direito Internacional Público,
- Direito Administrativo;
-Lato Sensu em Linguística e Letras Neolatinas;
-Degree in English by Edwards Language School – London - Accredited by the British Council, a member of English UK and a Centre for Cambridge Examinations;
-Escreve artigos sobre Direito; Política; Sociologia; Cidadania; Educação e Psicologia.

Nota do Editor:

Todos os artigos publicados no O Blog do Werneck são de inteira responsabilidade de seus autores.


16 comentários:

  1. Muito bom, é para que possamos fazer reflexões, pois tudo depende de nossas percepções, devemos entao mudar a qualidade de nossa percepção.

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  2. O céu e o inferno em nós, deixa-nos a oportunidade para refletirmos passagens bíblicas
    e traze-las ao presente. Confrontamos diariamente a busca incessante por nossas 30 moedas,
    esquecendo-nos com frequência de inúmeros casos da realidade, onde a ilusão do poder pelo poder,
    refletem as mazelas da miserabilidade em todo mundo. Aqui no Brasil, já constatamos inúmeros Judas,
    com suas moedas até mofando em cômodos insalubres,enquanto nossos semelhantes, vilipendiados
    por esta sede incurável, não menos frequentemente, morrem pela falta de recursos retirados
    da mesma fonte. Quando agimos dessa forma, perdemos a preciosa oportunidade de buscar pelo MELHOR,
    e os reflexos deste desvio, nos mostram o quanto as mentes e corações, encontram-se tão insalubres
    quanto a imensa quantidade de recursos desviados. Este caminho também nos revela que, enquanto não mudarmos
    a atitude, lá na frente iremos fatalmente encontrar um bela corda, esperando nossos próprios pescoços.
    Alguns até tecem a própria corda com os recursos insalubres.
    Parabéns pelo conteúdo, e também pelo convite para apreciar esta excelente reflexão! Abraço, Paz e bem!

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    1. Olá amigo Oliveira!
      Obrigada pela gentil atenção ao atender o convite para ler!
      Grata também pelo excelente comentário!
      Paz e bem!!

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    2. Muito bom o artigo, reflete a nossa busca pelo imaginário, a pperfeição, ânsia pelo poder e como o homem com o poder se transforma. Parabéns e Vitória.

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    3. Olá, Zulmira!
      Obrigada pela gentileza de comentar!
      Paz e bem!!

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  3. Essa foi a melhor matéria que li sobre o assunto. Foi também seu melhor texto. Perfeito, Mônica, Perfeito!

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    1. Olá, Mônica Torres!
      Obrigada, amiga!
      Que bom que você aprovou o texto!
      Paz e bem!

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  4. Inspirador seu artigo seria bom a gente ficar atento para refletir sempre Cristo na nossa vida e nos livrar do nosso Judas interior. Parabéns

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    1. Olá, Neide!
      Obrigada pelo comentário!
      Feliz pela atenção de sua leitura!
      Paz e bem!!

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  5. Oi Mônica, texto super atual. Vale a reflexão! Infelizmente, nosso Judas está mais ativo, não é? Tempos difíceis!! Mas sempre encontraremos no fundo dos nossos corações, a qualquer tempo, Ele. Uma porta que não fecha, luz que não se apaga, perfume de nossas almas. Parabéns!!!!

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  6. Olá, Demétrio!
    Que surpresa agradável, nesta Semana Santa do Senhor de 2022, um leitor gentil, trazer-me um comentário do Artigo publicado, exatamente, há três anos! Gratidão! Que nosso Mestre e Pastor, Jesus Cristo, uma vez mais nessa Páscoa, nos abençõe com o Seu olhar misericordioso! Paz e luzes de amor para você junto aos seus amados!!

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  7. Período oportuno para ler e refletir sobre este maravilhoso texto.
    Necessitamos repensarmos as nossas atitudes nesta época em que comemoramos o sofrimento de JESUS afim de nos exemplicar a humildade,a honestidade,o respeito e o amor ao próximo mediante a traição recebida.
    Mesmo assim hoje, ainda enxergamos,convivemos com cenas monstruosas,semelhantes aquelas que ELE recebeu.
    Parabéns Mônica por sua maravilhosa redação. Vc é muito iluminada para expor as suas ideias.
    Abraços com carinho...

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    1. Olá, querida Enyr!
      Generosidade sua comentar com mais reflexões que nos auxiliam a buscar a transformação. Sim, é preciso modificar o homem velho que vive em nós, transformando as atitudes que relembram traições, desrespeito, incompreensões, ganância, para permitir que o homem novo renasça com o Cristo em nossas Almas.
      Gratidão! Paz!

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  8. Em tempos de ouro nos templos, lembrando que Jesus Cristo recusou o reino da terra! Excelente texto! Saudades!

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  9. Meu Deus!
    Essa Páscoa tem sido um belo presente!
    Gratidão, Álvaro!
    Como é bom ter a atenção de sua leitura e a generosidade de seu comentário!
    Feliz Páscoa para você junto aos seus amados!
    Paz e bem!

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