segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Cidadão delivery


 Autor: Luis Lago(*)

Sou, sem dúvida alguma, um dos exemplares da espécie que não sabe sequer fritar um ovo.  Não sei cozinhar.   Meu fogão é uma peça intacta,  tão virgem quanto estava na loja;  tão decorativa quanto a orquídea da sala de visitas. O oposto do micro-ondas que sempre girou mais que todos os pilotos de Fórmula 1, em todos os circuitos mundiais. O oposto do celular – meu inseparável amigo e companheiro;   mudo e fiel como um satélite ao seu planeta.

Perto da hora do almoço, começo um ritual primitivo que consiste em dançar ao redor dos mais variados aplicativos e seus ícones, caçando cupons de desconto e promoções.

De segunda a sábado, para  o almoço, vou de marmitas a pratos feitos de R$ 20.  É sempre o mesmo bife,  ou frango, com arroz, feijão e batatas fritas mais murchas que a bola do meu Corinthians.

No jantar,  o encanto multicolorido dos fast-foods me atrai com seus burgers, suas esfihas abertas, seus quibes crocantes, e seus sushis de R$ 2.

Sou,  definitivamente um cidadão delivery.  Feliz, mas com uma cintura onde já é possível circum-navegar em direção ao "porto umbigo".  Feliz,  nesse fundamental e vital isolamento pandêmico.

Mas,  essa vida delivery só é possível graças a uns  bravos heróis que não arredam os pés (e as motos e bikes) das ruas:  – os entregadores.

Não sei se todos já deram o devido valor à categoria.  Pense apenas que a mesma covid que pode nos pegar,  também assombra os entregadores.  Nosso direito ao isolamento social não pode sobrepor-se ao direito de quem trabalha com entrega,  Portanto,  façamos o mínimo: sejamos educados.

O mundo está cheio de gente chata e sem a mínima noção de humanismo.  Gente que não se dá o trabalho de descer na portaria do prédio com a presteza necessária para não deixar o entregador esperando.  Gente que não sabe a pronúncia correta para a palavra obrigado”;  ou possui alguma doença rara que a simples menção a um agradecimento pode provocar arritmia cardíaca ou impotência sexual.

Entregadores de delivery merecem caixinhas,  estátuas e nomes de praça.  No futuro,  talvez,  se organizem melhor como classe.  E organizados,  podem por os pés na política.  Um dia, quem sabe,  teremos um deputado, um senador, um ministro ex motoqueiro.  Ou, ate´mesmo um presidente orgulhoso do seu passado como entregador de delivery. 

Minha vida de cidadão delivery não seria a mesma sem eles. Graças a eles me dou ao luxo até de tomar um cafezinho quentinho e saboroso.

É quando,  então,  me ponho a pensar que vai ser lindo quando, do meu aplicativo,  eu pedir um delivery de vacina.  Sim, com todas as opções possíveis e imaginárias.  Com um menu abrangente e desafiador, posso pedir a vacina chinesa, ou a russa, ou a inglesa, até mesmo a jamaicana,  quixá a brasileira, e outras.

Por enquanto, continuo com minhas com meus bifes, meus quibes, minhas esfihas,  e com minhas batatas murchas. 

Mas não preciso de delivery para sonhar.


(*) LUIS LAGO










- Jornalista e  Fotógrafo (Não necessariamente nessa ordem); e
-Autor dos livros "O Beco" (poesias) Editora e Livraria Teixeira e "São tênues as névoas da vida" Âmbito Editores (ficção desenvolvida no estilo literário denominado "Realismo mágico")

Nota do Editor:

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