segunda-feira, 22 de julho de 2024

Cidinha


 

Autor:Benedito Godoy Moroni(*)

Certo dia, em Piracicaba, Cidinha bem pequenininha saiu a passear de Jeep com o pai e o avô paterno. Quando voltou estava chateadinha, nem conseguia andar e ficar direito em pé. A tia, preocupada, quando foi prepará-la para dormir, ao tirar o vestidinho a fim de colocar a camisolinha percebeu que as duas perninhas da criança estavam em um só lado da calcinha. Ao contar ao pai o ocorrido, ele se lembrou que durante o passeio levou Cidinha ao banheiro e depois colocou a calcinha, sem aperceber-se de haver colocado as duas perninhas dela no mesmo lado da calcinha. Isso foi motivo de muitas risadas, pois viram que a dificuldade da criança não era doença, nem mal estar, mas sim, desatenção do pai.

Como Cidinha era uma criança agradável, graciosa e encantadora, os pais e familiares começaram a ensiná-la a fazer coisinhas para o deleite dos amigos. Um primo de sua mãe ensinou-a a "dar banana simples (com um braço) e banana dupla (com os dois braços)"; aprendeu com outro parente a falar "a vida está difícil” (e colocava as mãozinhas na cabeça com se estivesse desconsolada) e até uma família estrangeira ensinava a ela palavras sírias. Uma senhora turca, por sua vez, contava rindo que sempre ao carregar Cidinha, esta, com carinha apavorada, olhando-a de perto, dizia assustada e quase chorando:
- Eu tenho meeedo...
E essa senhora gentilíssima, carinhosa e um amor, infelizmente, era real e totalmente destituída de qualquer traço de beleza ou encantamento...

Os pais de Cidinha, ele violinista e a mãe pianista, ensinaram a menina, então com dois aninhos, a cantar algumas músicas acompanhando-os. Entre elas tocavam e cantavam Chiquita Bacana, de Braguinha e Alberto Ribeiro:
"Chiquita Bacana lá da Martinica
Se veste com uma casca de banana nanica
Não usa vestido, não usa calção
Inverno pra ela é pleno verão
Existencialista com toda razão
Só faz o que manda o seu coração..."
Ensinaram, também, a música Pedreiro Waldemar de Wilson Batista e Roberto Martins:
"Você conhece o pedreiro Waldemar?
Não conhece?
Mas eu vou lhe apresentar
De madrugada toma o trem da Circular
Faz tanta casa e não tem casa pra morar
Leva marmita embrulhada no jornal
Se tem almoço, nem sempre tem jantar..."

Cidinha ouviu de alguém a expressão "vá à merda". Ela comentou com seus pais que ouvira tal coisa. Eles lhe disseram, procurando ensiná-la, para não repetir isso, pois era falta de educação e menininha educada não falava essas coisas.
Cidinha, a partir de então, em conversa com a tia e avó paterna, dizia em tom de segredo, conselho e cochichado:
- Não pode dizer "vá à merda".
Certa feita, em visita que o juiz de direito fazia quase que diariamente a seu amigo prefeito, avô materno de Cidinha, ele aproveitou para brincar com menininha, enquanto o prefeito carregava em seus braços a netinha. Acontece que, justamente nesse dia, ela estava febril e indisposta. O juiz, como fazia em suas visitas, começou a pedir para Cidinha fazer as gracinhas que o divertiam. Pediu para que ela repetisse e repetisse. A garotinha, amuadinha e já cansada de atender os insistentes pedidos do juiz, aconchegando-se nos ombros do avô, baixinho em seu ouvido, perguntou-lhe:
- Vovô, posso falar: vá à merda?
O avô, nada falou e saiu cantarolando para outro lado da sala, afagando-a. O juiz, curioso, perguntou a seu amigo prefeito o que Cidinha havia dito, pois não conseguira entender direito. O avô, procurando disfarçar, disse que ela lhe falara:
- Vovô, não cante música lerda!
O juiz achou aquilo lindo, uma gracinha...

Quando a mãe ia a São Paulo para realizar suas compras, levava Cidinha consigo. A loja era o Mappin, então como que o “Shopping Center” da época na capital. Enquanto a mãe assistia ao desfile de roupas e acessórios para ela, as vendedoras levavam Cidinha, que sempre estava vestida com todo esmero, a desfilar no balcão do estabelecimento, para deleite delas e das pessoas que lá estavam.

Em outra ocasião, em Piracicaba, ainda novinha foi esclarecer-se com a tia:
- Titia, a vovó Mariquinha Tricta é avó de mamãe, certo?
- Sim, respondeu a tia.
- Então, continuou Cidinha, ela é minha bisavó, correto?
A tia confirmou e Cidinha continuou a expor sua análise:
- Tia Anália é tia de mamãe, certo?
- Correto, respondeu a tia.
Ao que concluiu a menininha:
- Então tia Anália é minha bistia?
Passado o espanto inicial, a tia deu uma gostosa gargalhada e imediatamente contou o fato inusitado a todos.


Com quatro aninhos, de ouvido, Cidinha já dedilhava ao piano, com a mão direita, tocando a música "Muñequita linda ,(Te Quiero Dijiste:", de Maria Grever:
"Muñequita linda
De cabellos de oro
De dientes de perla
Labios de rubí
Dime si me quieres
Como yo te adoro
Si de mi te acuerdas
Como yo de ti...

Bonequinha Linda (Eu Te Amo, Você Disse)
Bonequinha linda
De cabelos dourados
De dentes de pérola
Lábios de rubi
Me diga se você me ama
Como eu te adoro
Se você lembra de mim
Como eu de você...”

 Ainda não alfabetizada, começou a aprender a tocar piano e a estudar balé. Para tocar, aprendeu o nome das notas musicais substituídos por figurinhas.

Aos dez anos estudou violão. Seu interesse por esse instrumento deveu-se ao fato de que a secretária da escola de balé que Cidinha frequentava encantava-a tocando violão. Isso despertou na menina a vontade de aprender a tocar violão. No Natal, o pai da Cidinha perguntou o que ela queria de presente. Ela, quando lhe pediu um violão, deixou-o escandalizado e horrorizado...
- Isto é coisa de “capadócio”. Onde já se viu uma menina tocando violão, instrumento de boêmio e desocupado que fica sentado em bares e botequins. E concluiu:
- Isso é só “fogo de palha”. Já, já passa.
Porém, como ela não se deixou vencer, insistindo muito e não desistindo do pedido, o pai resolveu comprar-lhe um violão: o mais simples e barato que existia na época. Nem afinação o violão segurava direito. Entretanto ela ficou feliz e, mesmo com toda dificuldade, Cidinha estudou e praticou.
Passado algum tempo, o pai vendo que, apesar do instrumento ruim, a filha progredia muito. Então, entusiasmado com tal progresso, procurou um comerciante idôneo de instrumentos musicais em sua cidade e encomendou-lhe o melhor violão que tivesse na época e assim foi feito. Quando o violão chegou, o vendedor que era musicista também, ensinou na hora à Cidinha a música “Fiz pra você” de Mário Vieira:
"Derrubei um barraco que eu tinha
Construí um bangalô
E na frente fiz um jardim
Ficou tão bonito, ficou um amor
Ai, ai, ai,
Tudo isso fiz pra você
Ai, ai, ai,
Só depende de você querer..."
O pai ficou todo orgulhoso.        

Um ano depois a professora chamou a tia de Cidinha e relatou-lhe:
- Tudo que eu poderia ensinar à Cidinha, já o fiz, agora precisa procurar outro professor para aprimorar os conhecimentos dela. Agora ela precisa de um profissional mais experiente, para fazer um curso mais adiantado. Tanto isso é verdade que escolas e festas já vão até a casa de vocês para pedir que ela toque em seus eventos.

O tempo passou, Cidinha, mesmo não seguindo a carreira musical, cresceu, evoluiu e deslanchou, tanto na vida familiar e profissional, como social e culturalmente.

No balé montou sua própria academia, onde lecionava, a qual se destacou por apresentar seus alunos em espetáculos arrebatadores e de sucesso, comentados e relatados pela imprensa e órgãos especializados na região e no estado.

*BENEDITO GODOY MORONI


-Advogado, jornalista e escritor;

-Graduado em Direito  pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco, Universidade de São Paulo(1972); e

-Membro do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo e da Academia Venceslauense de Letras. 


Nota do Editor:

Todos os artigos publicados no O Blog do Werneck são de inteira responsabilidade de seus autores.

3 comentários:

  1. Rubens, advogado FDUSP Turma 1972rma 1972722 de julho de 2024 às 10:59

    Bom dia! Deveras interessante.
    Cordial abraço.

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  2. Blz, parabens pela biografia de n/ estimada colega. CIDINHA.

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