segunda-feira, 8 de julho de 2024

Mandado de segurança e a Escola positiva penal


 Autor: Daniel  Guimarães Zveibil(*)

Se é verdade que a emenda constitucional nº 03 de 1926 tentou pôr fim à doutrina brasileira do habeas corpus, alterando o § 22 do art. 72 da Constituição de 1891 para reposicionar, no texto constitucional, o habeas corpus em seu leito tradicional de defesa de "liberdade de locomoção", não deve haver dúvida de que a prática consistente da doutrina brasileiro do habeas corpus marcou o coração de uma geração inteira de juristas.

É o que explica a crescente defesa, na política brasileira, quanto à necessidade de um sucessor da doutrina brasileira do habeas corpus. E devemos ressaltar, na linha de nossa exposição, que isso vem de antes de 1934, prevalecendo convergência quanto à necessidade de se criar processo que substituísse a ampliação do habeas corpus, desde que tal amplitude foi ceifada pela emenda constitucional de 1926. Todavia, existia grave preocupação no que concerne à força desse novo meio processual.

Astolfo Rezende testemunha tal conjuntura ou como este sentimento era reinante em 1927: "Sobre a ‘necessidade’ de uma lei especial de processo que torne possível o impedimento de actos do poder publico lesivos do direito individual, parece unanime a opinião dos que se manifestam sobre o projecto, com excepção do Sr. Sérgio Loreto. O parecer da Commissão de Justiça, elaborado pelo deputado Mello Franco, assignala com muita nitidez o caracter utilitario do projecto, e o seu objectivo: ‘O operoso e intelligente autor do projecto (diz o parecer) quiz attender aos reclamos que desde muito se fazem no sentido da instituição de um remedio processual, adequado á prompta defesa dos direitos pessoaes. Os oradores accentuaram tambem a necessidade uma lei neste sentido. Nesta ordem de ideias, dizia o deputado Mattos Peixoto: ‘Os nossos juizes e tribunaes estenderam o habeas corpus á protecção dos direitos pessoaes, que necessitavam de garantias promptas e efficazes. A reforma constitucional, porém, visou abolir semelhante ampliação, a que um constitucionalista notavel chama a hypertrofia do habeas corpus. Para que, entretanto, ella surta effeito nessa parte, é necessário dotar de acção rápida e efficiente os direitos que, além da liberdade de locomoção, o habeas corpus anteriormente tutelava. É necessidade indeclinavel a criação de um succedaneo do habeas corpus para os direitos que este hoje não pode mais proteger segundo a intenção da reforma constitucional.” Na mesma ordem de ideias se manifestaram os demais oradores. Não houve, porém, possibilidade de accordo sobre a especie ou natureza do direito que se pretende proteger por meio deste processo especial. Este é, entretanto, o ponto fundamental da questão: quaes são os direitos a cuja protecção e resguardo é preciso acudir com um remedio celere e efficaz?" (RESENDE, Astolfo. O Succedaneo do Habeas Corpus: O Que se Apura dos Debates Parlamentares de 1927, Archivo Judiciario, Vol. VI, abril, maio e junho, 1928, p. 141)

Depois de 1930, de um lado cristalizara-se a certeza da necessidade prática da conquista liberal; de outro, emergira o receio da conquista liberal prejudicar o poder das autoridades necessário para transformações sociais e econômicas. Nesse contexto a Revolução de 1930 deu-se por meio de coalizão bastante heterogênea, sendo possível distinguir duas grandes posições básicas: os constitucionalistas liberais e os semiautoritários nacionalistas. Segundo Skidmore, os constitucionalistas liberais lutavam basicamente por eleições livres, governo constitucional e plenos direitos civis. Os semiautoritários nacionalistas preocupavam com a “regeneração nacional” e modernização do país, e se mostravam dispostos a formas políticas não democráticas para alcançarem mudanças sociais e econômicas. (SKIDMORE, Thomas E. Brasil: de Getúlio a Castello (1930-1964). São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 41 e seguintes)

Esse hibridismo impactou fortemente na Constituição de 1934, porque acolheu tanto ideais liberais já contidas na Constituição de 1891, como também princípios constitucionais que visavam regular a questão econômico-social do país. Por isso, concluiu Nelson Nogueira Saldanha:

A Constituição [de 1934] trazia algumas modificações dignas de nota na montagem das competências, e continha, por força da influência da Constituição alemã de 1919 (chamada ‘Weimar’), expressivos traços socialdemocráticos, incluindo importantes dispositivos que interferiram na ordem econômica e na vida do trabalho e que punham o Estado como que a serviço de uma composição de interesses de classe” (SALDANHA, Nelson Nogueira. História das Ideias Políticas no Brasil. Brasília: Senado Federal, 2001, cap. XIV, p. 292/293).

Tal contexto impactou diretamente no dispositivo sobre o mandado de segurança na Constituição de 1934, e daí sua natureza jurídica “excepcional” ou “extraordinária” impondo-lhe cabimento mais restrito, a exigir que a ameaça ou violação de direito "certo e incontestável" se desse por "acto manifestamente inconstitucional ou illegal de qualquer autoridade" (Constituição de 1934, art.113, n.º 33). É a partir do aludido pano de fundo político, portanto, tentando acomodar necessidades liberais e sociais na Constituição, que fica compreensível a preocupação de João Mangabeira posicionar o mandado de segurança entre o habeas corpus e os interditos possessórios, tentando dosar a força processual do mandado: "O Sr. Mangabeira adoptou esse texto e não o do projecto da Camara, porque, para garantia desses direitos, não queria um remedio tão expedito quanto o habeas corpus, que ás vezes estrangula a auctoridade; mas também não queria submetter um caso desses ao ryto commum dos interdictos possessorios, que não são tão rapidos quanto parece e se prestam a muita chicana. Dêem a um advogado habil uma posse e quer saber quem lh’a tomará! Conhecia um velho habil rabula bahiano, que dizia: Eu fico com a posse; a propriedade, dou-a a quem quiser!"

Olhando a questão mais de perto, confirma essa conjuntura o significado subliminar (ou inexplícito) no conteúdo dos debates do anteprojeto da Constituição de 1934, os quais prenunciavam sucessor da doutrina brasileira do habeas corpus sem a mesma abertura do próprio habeas corpus em sua conhecida e prestigiada versão "brasileira". Na prática, o espírito de "excepcionalidade" que se pretendeu imprimir ao mandado de segurança, devido especialmente à política praticada na década de 1930, tornou-o herdeiro de importantes aspectos da ação sumária especial da Lei nº 221/1894, uma vez que esta ação estava longe de ser incisiva como o habeas corpus. Sendo assim, temperado pelas formalidades da ação sumária especial, o molde político do mandado tornou-o mais compatível ao habeas corpus em sua versão de controle social da pobreza, a qual se alinhava perfeitamente aos desígnios da Escola Positiva Penal.

E na versão positivista, o habeas corpus expressava-se claramente como medida de natureza subsidiária aos meios ordinários e, sobretudo, nela a natureza de garantia constitucional (prevista na Constituição de 1891) cedia diante do que se entendia, pelas classes dominantes, de "necessidades coletivas ou sociais", traduzidas pela Escola Positiva Penal como imperativo de defesa social. Esse espírito do habeas corpus diminuído e coarctado pela justificativa de controle social da pobreza, tornou-se compatível – até conveniente, na verdade – para a ideologia da excepcionalidade do mandado de segurança. Por isso, além de outros fatores, o texto constitucional de 1934 exprimia um mandado de segurança bastante "excepcional" diante das necessidades coletivas ou sociais que deveriam prevalecer sobre as individuais.

É seguro admitirmos, portanto, que o mandado de segurança nasceu marcado – mesmo que indiretamente, ou por via oblíqua – pelo espírito da Escola Positiva Penal, e precisamente naquilo que ela era absolutamente compatível ao espírito da política de 1933/1934: exigência do constitucionalismo liberal ceder diante do que se entendia por necessidades práticas coletivas ou sociais.

Assim, o mandado de segurança herda o amplo espaço constitucional de atuação da prestigiada doutrina brasileira do habeas corpus, todavia a tecnologia jurisdicional recebida encaixa-se melhor no habeas corpus do controle social da pobreza. Sobre o habeas corpus do controle social da pobreza em contraste com a doutrina brasileira do habeas corpus, vale a leitura do cientista político Andrei Koerner em: KOERNER, Andrei. Habeas-corpus, prática judicial e controle social no Brasil (1841-1920). São Paulo: IBCCrim, 1999.

A verdade é que diversos juristas já se debruçaram sobre o processo histórico de formação do mandado de segurança porque é a única forma de relermos, criticamente, algumas de suas restrições atuais. Por outro lado, todo processo histórico do mandado de segurança também nos alerta para o fato de que emerge o complicado e trabalhoso desafio de proceder a identificação de restrições processuais legítimas ou ilegítimas atribuídas ao mandado de segurança. As que podem ser consideradas legítimas são as justificáveis à luz do texto constitucional, especialmente às necessidades práticas dos direitos "constitucional processual" e "processual constitucional". A restrições ilegítimas são frutos da ideologia autoritária dos anos 1930 e da Escola Positiva Penal, as quais persistem vivas com pseudojustificativas aformoseadas por meio de novas roupagens.

Por isso, é fundamental compreender as influências do mandado de segurança em sua formação, todas tipicamente de tecnologia interdital ou mais próximas dela, tais como: habeas corpus, juicio de amparo, ação sumária especial de 1894, interditos possessórios, medidas cautelares. Porém, essa compreensão não basta: a leitura histórica do mandado de segurança (e igualmente das demais garantias processuais constitucionais) não pode ser dissociada das fases político-constitucionais do Brasil, especialmente alteração dos ventos políticos, pois todos eles impactam na (re)formulação do conteúdo das garantias processuais constitucionais.

*DANIEL GUIMARÃES ZVEIBIL










- Graduado pela Iniversida Católica de São Paulo (2000);

-Mestrado pela USP (2006);

-Doutorado pela USP (2017);

 -Possui trabalhos em processo constitucional,

-Professor de pós-graduação e

-Defensor público do Estado.


Nota do Editor:

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