segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

O menino que vendia lixas

Era uma segunda-feira qualquer. Tinha saído do serviço e estava a caminho da universidade. Em minha cabeça, muitos pensamentos rolavam. Eu teria prova de economia naquele dia e não havia estudado praticamente nada do conteúdo apreendido. Na ansiedade dos meus 19 anos, eu havia passado o final de semana em baladas, dispondo com amigos o tempo que tinha para me preparar. E agora, naquele momento, restavam-me como consolo para recuperar o tempo perdido, apenas aqueles minutos em que aguardava sentado, num dos frios bancos de concreto da estação Santana do metrô de São Paulo, a chegada do ônibus que me levaria ao destino desejado.

Foquei meus pensamentos e pouco a pouco esmiuçava os conteúdos da prova. Estava alheio a qualquer coisa que acontecia ao meu redor. Era uma das primeiras provas que eu teria no semestre e o medo de uma possível reprovação tomava minha mente, mas essa era uma perspectiva da qual eu não podia me dispor. Eu trabalhava para pagar meus estudos e, ainda assim, meus ganhos não eram suficientes para arcar com os custos da mensalidade, cuja prestação era completada com a ajuda que meus pais ainda me davam.

Sobre meus pais, bem... naquela época, a situação financeira do país estava meio complicada. Meu pai, desempregado, sofria com fortes dores nas pernas por causa de um reumatismo que o afetava. Minha mãe recebia um salário mínimo como pensão do INSS e passava boa parte do seu tempo cortando cabelos, costurando e fazendo blusas de tricô para aumentar nossa renda familiar e ainda me ajudar, no que podia, com os gastos de meus estudos. Tempos incrivelmente difíceis! Estávamos iniciando o plano real e não sabíamos o que poderia acontecer. A sociedade estava muito apreensiva na ocasião.

 Envolvido com os conceitos relacionados à demanda, à lei da oferta e da procura, eu procurava me concentrar nas anotações esboçadas em meu caderno e nos conceitos trazidos no livro. Puxava setas, circulava informações, fazia observações, valia-me do que era possível a fim de guardar o mínimo necessário para a realização da prova, e, de fato, não estava nem aí para os acontecimentos ao meu redor. Queria mesmo, e desesperadamente, me apropriar do mínimo que fosse a fim de garantir o necessário à minha aprovação, até que, de repente, uma voz interrompeu minha concentração:

- Tio, compra uma lixa!

Naquela hora, nem olhei para a cara de quem me chamava. Não queria esboçar qualquer tipo de conversa. Fingi que não era comigo e continuei meus estudos. Mas ele insistiu. E, dessa vez, se não bastasse simplesmente utilizar-se da fala, ensaiou um cutucão na minha perna:

- Tio, por favor, compra uma lixa!

Indignado e meio estressado, parei o que estava fazendo. Em meu pensamento tinha uma única vontade, afastar de perto de mim aquele que me incomodava. Então, rispidamente, respondi:

- Não tenho dinheiro!

O garoto sentou-se ao meu lado. Nesse momento, com o olhar aos cantos, eu o observei com mais atenção. Devia ter, no máximo, cinco anos de idade. Era maltrapilho, estava sujo, nariz escorrendo, mas, certamente, um rapazinho muito bonitinho e ávido em conversar.

- Tio, o que está fazendo?

Ainda sem muita paciência, e com a mente lançada à prova que dali a pouco iria fazer, eu respondi com muita má vontade:

 - Estou estudando.

Olhos para cima, como se estivesse pensando o que acontecia, ele interpôs:

- Desse tamanhão e ainda estuda?

Achei graça. E naquele momento estendi a conversa:

- Pois é! Desse tamanhão e ainda estudo – respondi. E, na tentativa de confrontá-lo, logo perguntei:

- E você, desse tamanhinho todo, o que faz?

- Eu vendo lixas, oras!

A resposta que ele me deu naquele momento soou de duas maneiras para mim. A primeira, tamanha naturalidade de sua fala, era como se fosse extremamente comum uma criança daquele tamanho vender lixa por aí. E a segunda que, pela carinha que ele fez, de certa forma, foi a que mais me incomodou, afinal, ele já havia me dito que estava vendendo lixas e eu, obviamente, ainda esboçava desnecessária incapacidade intelectual ao questioná-lo sobre o que ele fazia por ali.

- E sua mãe sabe que você está aqui? - Indaguei.

- A minha mãe sabe. Ela está doente. Aí a gente tem que levar dinheiro para comprar pão, leite...

- Mas quem cuida de você aqui? – Insisti.

- É aquela mulher! – Ele apontou com o dedo para uma senhora. Ela ficava sentada em um gramado e tinha em torno de si muitas crianças. Ali, pelo que eu pude perceber, ela recolhia de cada um os centavos obtidos com a venda das lixas.

Fiquei estarrecido por um instante.

Dias atrás eu havia assistido a uma reportagem que falava sobre as “mães da rua” e muitas situações, como a que eu estava presenciando naquele instante, haviam sido relatadas pelo repórter durante a sua apresentação.

As “mães da rua” eram mulheres que aproveitavam de crianças, tirando-lhes a infância, para explorar sua capacidade de trabalho. Mulheres que abusavam do trabalho infantil e que davam, às crianças que aliciavam, algumas quinquilharias em troca do que faziam.

Tentando melhor compreender a situação, perguntei ao garoto:

- E quanto você ganha por cada maço de lixa que vende?

Cada maço era composto por cinco lixas e custava vinte e cinco centavos. Ele, então, me respondeu que ganhava por cada maço vendido, uma moedinha de cinco centavos.

 Economicamente, confesso, pois estava com os conteúdos de minha prova na cabeça, até achei o negócio interessante. Afinal de contas, ele tinha uma comissão de vinte por cento sobre cada produto vendido, mas é claro, pensamentos insanos à parte, fiquei completamente consternado ao me dar conta de quem era aquele garoto e do que ele fazia ali. Tive vontade de sair e denunciar aquela mulher, mas faltou-me a coragem. Fiquei no âmbito da indignação e, por medo, não fiz nada. Pelo contrário! Em minha presente imaturidade, decidi pelo pior: Eu ia comprar uma lixa!

Olhei para os lados e notei que meu ônibus se aproximava do ponto e eu precisaria colocar um fim na situação.

Coloquei a mão no bolso para pegar as moedinhas com as quais compraria as lixas e lembrei-me que nada tinha de valor, a não ser o cheque com o qual pagaria a mensalidade de minha faculdade.

Naquele instante, meu coração bateu mais forte.

Olhei para o garoto, enquanto guardava meu material na mochila, e, recuando, comentei:

- Olha! Eu até compraria uma de suas lixas, mas infelizmente eu me dei conta de que estou sem dinheiro. Tenho que pagar a mensalidade da faculdade, tenho que pagar o ônibus da ida para lá e depois o da volta para casa. Estou com fome e não tenho se quer dinheiro para comer um lanche. Além de tudo isso, meus pais ainda estão me ajudando porque não estou dando conta de tudo sozinho – e, completamente envergonhado, ainda exclamei - dessa vez, não poderei lhe ajudar!

O garoto me fitou.

Era como se estivesse fazendo uma leitura sobre mim.

Por um instante nada comentou.

Ficamos apenas nos olhando, até que, em um gesto que me desconcertaria para o resto de minha vida, ele enfiou a mão no bolso, retirando todas as moedas que tinha dentro dele, dizendo-me:

- Tio, toma para você! É para te ajudar, então! 

POR FÁBIO ROBERTO CHAGAS DE                      SOUZA










Advogado, Administrador de Empresas e Filósofo; e
Especialista  
  -no Ensino de Filosofia, em Gestão Escolar e 
  -em Liderança, Motivação, Gestão de Pessoas e de Equipes. 
Atualmente, trabalha no Senac São Paulo como técnico de Desenvolvimento Profissional.
Mora em Taubaté, Estado de São Paulo

Nota do Editor:

Todos os artigos publicados no O Blog do Werneck são de inteira responsabilidade de seus autores.

7 comentários:

  1. Excelente análise social em um estilo jornalístico e, acima de tudo, poético. PARABÉNS, meu Amigo Fábio Roberto. ABRAÇOS!
    Luís Lago
    São paulo 23/jan/2017

    ResponderExcluir
  2. Emocionante ler esse relato. Imagino quantas vezes mais emocionante foi vivê-lo. Muito bom o texto e as reflexões que traz. Parabéns, amigo.

    ResponderExcluir
  3. Não sei se hj acordei fragilizada, mas chorei. Lindo texto. Uma lição de vida! Parabéns! 👏👏👏😍🙏

    ResponderExcluir
  4. Artigo gostoso de ler. Fácil de se enxergar no lugar e até mesmo tendo as mesmas reações. O quanto deixamos de ver ao enxergarmos somente nosso umbigo?

    ResponderExcluir