segunda-feira, 4 de abril de 2022

Lourenço


Autor: Elismar Santos(*)

Da pequena janela da casinha de pau à pique, Lourenço olha ao longe. A verdade é que não olha para nada; apenas pensa, relembra os tempos em que tudo era mais bonito por aquelas bandas, de quando ainda havia chuvas, de quando o sustento ainda vinha das suas mãos calejadas, dos seus esforços joviais, da sua pequena ambição de trabalhador rural.

O pobre homem, catrumano, criado nas entranhas do Cerrado; comendo manga, jabuticaba e pequi; correndo atrás das poucas cabeças de gado por entre os garranchos secos, queimando-se com as folhas de Cansanção, buscando água barrenta na velha cacimba nos fundos da casinha, nunca pensara em ser doutor, político ou fazendeiro. Queria apenas colher algumas poucas medidas de feijão e o arrozinho que desse para vencer o mês. Agora, nem isso anseia mais.

Da pequena janela da casinha de pau à pique, Lourenço fita o passado. A vontade de voltar pulsa no seu peito. Se pelo menos houvesse um jeito de revisitar os velhos tempos! Pediria perdão aos pais pela sua falta de ambição; tomaria mais banhos no Sanharó; treparia mais vezes na velha mangueira que dava para a pinguela sobre o riacho.

De que adiantaria voltar?! Voltasse e faria tudo como antes. Se não, talvez fizesse diferente, e tudo poderia ser pior. Talvez devesse ter tido um pouco mais de ambição, um pouco mais de coragem, só um pouquinho mais. Pode ser que assim... tivesse se tornado um fazendeiro de verdade... tivesse casado com Pedrelina... tivesse uma vida para chamar de sua... talvez.

Da pequena janela da casinha de pau à pique, Lourenço deixa que as lágrimas lhe desçam pela face enrugada, murcha, um rosto sofrido de quem nunca tivera qualquer grande ambição. Os olhos cansados já não veem o futuro, apenas relembram o passado e veem-nos desfilando, como as velhas fotografias dos monóculos, à sua frente.

O pobre homem ainda escuta ao longe os trabalhadores, homens, mulheres e crianças, que subiam o morro para irem carpir as terras dos velhos fazendeiros, cantarolando cantigas bonitas que, naquela época, já lhe enterneciam a alma. Forçando um pouco mais as lembranças, é capaz de reconhecer cada um daqueles que sobem com suas enxadas jogadas ao ombro, homens e mulheres de faces enrugadas, crianças de olhos cansados, pessoas sem grandes futuros pela frente.

Da pequena janela da casinha de pau à pique, Lourenço vê a noite que desce lentamente, feito uma escura cortina a adormecer candidamente todo o Cerrado. Os pássaros, como sempre fora, aninham-se nas copas dos pequizeiros, enquanto os bichos da noite preparam-se para a contínua rotina da vida. O velho catrumano já não tem o viço de outrora; sente-se cansado, e as pálpebras pesam; o corpo cansado diz que é hora de ir. Fecha a janela e a última luz se apaga na velha casinha de pau à pique.

*ELISMAR SANTOS

-Professor de Língua Portuguesa;
-Poeta, Escritor e Locutor;
-Mora em São João da Lagoa, Norte de Minas Gerais; 
-Possui quatro livros publicados: Sanharó (Romance),
Mutação (Poesia), e
A Pá Lavra (Poesia e O Poeta e Suas Lavras (Poesia). 
Seus textos podem ser lidos também em www.elismarsantoss.blogspot.com

Nota do Editor:

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Um comentário:

  1. O Elismar tem o poder de levar o leitor para o centro da narrativa.
    Lembra muito Guimarães Rosa.

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