sábado, 3 de fevereiro de 2024

Letramento na construção de competências linguísticas




 Adriana Mello (*)

A língua concorre para a constituição e validação das práticas sociais, de modo que, atualmente, após tantos estudos e pesquisas nessa área, não cabe mais concebê-la isolada de tais práticas, como se tivesse um sentido imanente, independente do uso e do contexto. É na prática, na interação, que a língua constitui e se constitui, ao mesmo tempo.

Ao considerarmos a língua como prática social, é inquestionável que os aspectos estruturais deixam de ser o eixo da abordagem, pois tão (ou mais) relevantes do que as questões gramaticais ou sintáticas, são as de ordem discursiva, que consideram a língua em uso, ou seja, o foco passa a ser, segundo Cook (1989) investigar como e porque palavras e frases adquirem significados conforme colocadas em uso em situações comunicativas, tendo em vista nosso conhecimento de mundo e nosso conhecimento linguístico. Esse deslocamento do foco explicita que os enunciados não carregam consigo um sentido pronto, unívoco, mas sim produzem sentidos a partir do contexto de uso, validando diferentes práticas.

Há que se considerar o aspecto ideológico da linguagem já apontado por Bakthin (2000), que afirma ser essa – a linguagem – uma arena onde se dão embates, com acordos e conflitos, numa tensão constante pelo poder. A prática discursiva instaura práticas sociais que, por sua vez, realimentam esse ciclo. Cabe citar aqui a assertiva de Gnerre (1997) sobre a relação entre linguagem e poder: uma variedade linguística vale o que valem na sociedade os seus falantes, isto é, vale como reflexo do poder e da autoridade que eles têm nas relações econômicas e sociais.

Nessa perspectiva, mostra-se bastante pertinente, ao trabalharmos no ensino de língua, seja materna ou estrangeira, adotarmos a noção de letramento já que ela, como salienta Marcuschi (2001, p.25), abarca as dimensões sociais, culturais, cognitivas, políticas e ideológicas da língua. Considerar o letramento como forma de capacitar o indivíduo para os usos sociais da língua amplia o conceito do que seja "proficiência":

                         

não basta ler e escrever, é preciso saber fazer uso do ler e do


escrever, saber responder às exigências de leitura e escrita que


a sociedade faz continuamente (SOARES, 2001, p.20)

Pouco vale alguém saber decodificar, se não consegue produzir sentidos a partir da leitura feita, que tornem aquela informação útil de alguma forma e insira o usuário da língua no "jogo" das práticas discursivas.

Não são poucas as matérias de jornais e revistas que apontam algo extremamente preocupante: uma grande parcela dos jovens em idade escolar não sabe utilizar a Internet em suas pesquisas e trabalhos escolares. A falta de estratégias e criticidade na seleção de material, conduzem a leituras superficiais, com pouca ou nenhuma interpretação da pertinência e veracidade do que está sendo lido. São tantas informações disponíveis e tão atordoante o ritmo em que são veiculadas, que se vive hoje a chamada infodemia, cujo "efeito colateral" são as fakes news - tão perniciosas – que, para combatê-las, os currículos escolares passaram a tratar deste conceito como forma de frear o avanço da criação e circulação de informações falsas em diferentes esferas sociais e suas consequências, por vezes, desastrosas.


Torna-se, portanto, imperioso adotar práticas que promovam o letramento e encaminhem para reflexões e ações autônomas e emancipatórias. Sobre isso, vale ressaltar a afirmação de Kleiman (1995, p.22):
Letramento é um conjunto de práticas sociais, cujos modos

específicos de funcionamento têm implicações importantes

para as formas pelas quais os sujeitos envolvidos nessas

práticas constroem relações de identidade e poder.

                                                        

A noção de discurso também amplia enormemente o conceito de língua, ao considerar que as práticas comunicativas, para se efetivarem, devem considerar não somente o caráter sistêmico da língua, mas as bases em que constroem os enunciados, isto é, quem fala, o que fala, para quem fala, em que momento fala (ressalta-se que aqui o termo fala refere-se ao discurso produzido, seja ele oral ou escrito). Consequentemente, é a partir dessa noção que as práticas de letramento devem se dar, pois ela possibilita que aquilo que é dito seja vinculado ao contexto, às condições de produção do enunciado.

Assim, pode-se afirmar que um texto, seja ele de que tipo for, não tem sentido e sim produz sentido e esta produção está estreitamente relacionada ao contexto. Imaginemos a situação a seguir: alguém pega um cigarro, diz à pessoa do lado "Tem fogo?" e obtém como resposta "Parei". Do ponto de vista da língua como estrutura, poderia se dizer que as frases não guardam relação entre si, soando até como incoerentes; porém ao considerarmos a situação comunicativa, elas passam a fazer todo sentido! "Tem fogo?" corresponde a dizer "Você tem isqueiro ou fósforo para me emprestar, para que eu possa acender meu cigarro?". "Parei" assume o sentido de "Não tenho fósforo nem isqueiro porque não sou mais fumante." Deste modo, a noção de coerência/incoerência precisa ser relativizada, redimensionada, desvinculada de um conceito absoluto. Para todo texto, contexto. Para todo contexto, letramento.

Referências:

BAKHTIN, Mikhail M.  Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992;

GNERRE, Maurizzio. Linguagem, escrita e poder. São Paulo: Martins Fontes, 1987;

KLEIMAN, A. B. (Org.). Os significados do letramento. Campinas: Mercado de Letras, 1995;

MARCUSCHI, L.A. Letramento e oralidade no contexto das práticas sociais e eventos comunicativos;

In: SIGNORINI, I. (Org.). Investigando a relação oral/escrito e as teorias do letramento. Campinas: Mercado de Letras, 2001;e

SOARES, M. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.

 *ADRIANA ANDRADE MELLO


 





















Licenciada em Língua Portuguesa e Língua Inglesa – Faculdades Integradas de Cruzeiro (1996);

 -Pós-graduada em Leitura e Produção de Texto pela Universidade de Taubaté (1999);

-Professora efetiva na rede estadual paulista desde 2000;

-Complementação Pedagógica pela  UNIG (2001);

-Mestre em Linguística Aplicada pela Universidade de Taubaté (2003); 

 -Pós-graduada em Ensino de Língua Inglesa pela UNESP REDEFOR (2012)   e

- Designada no Programa de Ensino Integral desde 2014, na EE Oswaldo Cruz (Cruzeiro/SP)

Área de Linguagens (Português / Inglês)

Nota do Editor:

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4 comentários:

  1. Cláudia Tibães -Corretor Digital 🇧🇷3 de fevereiro de 2024 às 13:52

    Excelente! Letramento é muito importante. 💛💚🇧🇷

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    1. Agradeço pela leitura do artigo e por seu comentário!🌹

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  2. Parabéns belíssimo e ilustrativo texto

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