Autores: Luiz Fernando Afonso Rodrigues e
Rachel Freitas Bezerra
1.INTRODUÇÃO
Este artigo possui como objeto uma análise acerca da possibilidade jurídica de aquisição originária da propriedade, por meio da usucapião, sobre terrenos de marinha não demarcados pela União.
Conforme será apresentado com o decorrer da pesquisa, verifica-se que os terrenos de marinha possuem proteção especial concedida pela Constituição Federal de 1988, especificamente, em seu art. 20, inciso VII, sendo, portanto, classificados como bens públicos, o que, em regra, lhes concedem a característica de serem imprescritíveis.
Contudo, a discussão gira em torno da possibilidade de serem considerados critérios de proteção ao particular (em virtude do princípio da função social da propriedade, dignidade da pessoa humana e direito ao livre exercício do direito de propriedade), em detrimento da ausência de iniciativa da União em realizar o procedimento administrativo demarcatório do terreno situado em área de marinha, por não ser razoável a não concessão do direito àquele que, por anos, ocupou um terreno de forma mansa, pacífica e ininterrupta, em virtude da omissão imotivada do Ente Público.
Neste aspecto, por intermédio da contextualização histórica, legislação aplicável ao tema, tendo ainda como base, as decisões recentes proferidas pelos Tribunais acerca do assunto e entendimento sumulado, será analisado, com esse estudo, a viabilidade jurídica do instituto da usucapião, ante as particularidades do tema.
2.SESMARIAS. TERRENOS DE MARINHA E SUA DELIMITAÇÃO PELO PREAMAR-MÉDIO DE 1831
No Brasil, as Sesmarias surgem no período colonial, por Dom Fernando I[1] , como uma forma de concessão de terras adaptada às necessidades de Portugal em território recém descoberto, com o fito de fomentar o povoamento na Colônia e promover proteção contra invasões estrangeiras.
Inicialmente, os donatários ou capitães eram as pessoas que tinham o direito de promover tal concessão, o que posteriormente foi ampliado aos Governadores e Capitães-Generais (RODRIGUES, 2015, p. 34).
De acordo com o dicionário online, Sesmarias significa "terreno sem culturas ou abandonado, que a antiga legislação portuguesa, com base em práticas medievais, determinava que fosse entregue a quem se comprometesse a cultivá-lo[2]" "As ordenações Manuelinas e Filipinas tinham por Sesmaria a seguinte definição: Sesmaria são propriamente as datas de terras, casais, ou pardieiros, que foram ou são de alguns senhores e que, já em outro tempo, foram lavradas e aproveitadas, e agora não o são." (RODRIGUES, 2015, p. 34).
Desta forma, o regime de Sesmarias equivale à fração de terra pública concedida ao particular, com o fito de tornar aquela terra produtiva, durante determinado período de tempo, sem que fosse necessário o pagamento de qualquer espécie de foro ou tributo aos que fossem cristãos, uma vez que efetuavam apenas o pagamento do dízimo.
Já a partir do século XVI, além da produtividade da terra, instaurou-se como critério para manutenção da concessão de terra, a sua utilização como moradia, além da exata demarcação do terreno e impossibilidade de sua venda durante determinado período de tempo.
Ocorre que, o que interessa ao objeto do presente estudo, é que com o surgimento da Ordem Régia de 21 de outubro de 1710, houve expressa proibição da concessão de Sesmarias sob terrenos de marinha, nos seguintes termos: "As Sesmarias nunca deveriam compreender a marinha que sempre deve estar desimpedida para qualquer incidente do meu serviço, e de defensa da terra." (RODRIGUES, 2015, p. 35), demonstrando a necessidade, à época, de proteção do território contra eventuais invasões fomentadas por Estados estrangeiros.
Por fim, cumpre destacar a Carta Régia de 13 de março de 1797, "proibindo a concessão de Sesmarias junto às costas marítimas e margens dos rios", o que mais uma vez demonstra o interesse da Coroa Portuguesa na proteção do território recém descoberto, tendo sido posteriormente encerrado tal regime em meados de 1822, após o marco da Independência do Brasil.
A partir de então, a matéria deixou de possuir regramento jurídico até o surgimento da Lei nº 601/1850 (Lei de Terras), que trouxe novas determinações para as formas de aquisição de terras no Brasil.
No que cerne à regulamentação do regime das Sesmarias, note-se que existiram diversas legislações a respeito do tema, desde a Lei das Sesmarias, instituída por D. Fernando I. "Após esta lei o instituto teve regulamentação por meio das Ordenações – Afonsinas (1446), Manuelinas (1521) e Filipinas (1603)", sem prejuízo de "alvarás, decretos, cartas régias, avisos régios etc[3]", com o fito de regulamentar o ato.
Nesse sentido, após uma breve exposição a respeito do regime das Sesmarias e de sua evolução histórica, foi possível identificar a importância dada aos terrenos de marinha desde a colonização do Brasil, o que se perpetua até os dias atuais, refletindo no sistema jurídico atualmente em vigor.
Os terrenos de marinha, por sua vez, se constituem como bens imóveis pertencentes à União, incluindo-se entre os bens públicos dominicais, nos exatos termos do art. 20, VII, da Constituição Federal[4] e Decreto-Lei nº 9.760/1946, em seu art. 2º, sendo aqueles situados no "continente, costa marítima e nas margens dos rios e lagoas”, bem como os que “contornam as ilhas situadas em zona onde se faça sentir a influência das marés".Quanto à sua concretização, podem ser "naturais ou artificiais, terrenos acrescidos aos de marinha, estes últimos formados natural ou artificialmente para o lado do mar, em seguimento aos de marinha" (RODRIGUES, 2015, p. 153).
Segundo Rodrigo Marcos Antonio Rodrigues, quanto à localização, os terrenos de marinha podem ser:
Continentais, costeiros ou insulares. O primeiro quando situado no interior do continente; o segundo quando situado na costa; e o terceiro quando situado nas ilhas oceânicas e costeiras. Podem, ainda, ser classificados tendo por objeto as águas que com eles confrontam e determinam a posição da linha do preamar-médio em marítimos, fluviais e lacustres. (apud GASPARINI, 2009, p. 938).
Nesse sentido, tem-se por preamar-médio o nível máximo que a maré pode alcançar, sendo o mesmo que maré "alta" ou "cheia", o que segundo Rodrigo Marcos Antonio Rodrigues era obtido através da análise da oscilação do mar dentro de uma lunação[5], de acordo com o Aviso nº 373 de 12 de julho de 1833 (apud BEVILÁQUA, 1975), alcançando, assim, a média aritmética entre preamar e baixamar.
O preamar-médio foi demarcado no ano de 1831, tendo sido inserido no ordenamento jurídico brasileiro pela primeira vez no Decreto nº 4.105/1868, especificamente em seu art. 1º, §1º, que assim dispõe:
Art. 1º, §1º - São terrenos de marinha todos os que banhados pelas águas do mar ou dos rios navegáveis vão até a distância de 15 braças craveiras (33 metros) para a parte de terra, contadas desde o ponto a que chega o preamar médio.
Tal demarcação faz alusão "ao estado do lugar no rio tempo da execução da Lei de 15 de novembro de 1831, art. 51, §14 (Instruções de 14 de novembro de 1832 art. 4º), sendo adotada a referida faixa a partir do preamar máximo atual, previsto no art. 3º do Decreto-Lei nº 4.120/42.
Desta forma, o Decreto-Lei nº 4.120/42 trouxe em seu teor inovações para fins de cálculo da faixa de 33 metros definida pelo preamar-médio de 1831, quando passou a vigorar o parâmetro do preamar máximo atual, calculado no tempo e forma determinados pela norma jurídica supramencionada, em seu art. 3º.
Ocorre que, com o advento do Decreto-Lei nº 9.760/1946, o qual entrou em vigor na data de sua publicação, em 06 de setembro de 1946, houve a revogação total do anterior Decreto-Lei nº 4.120/1942, quanto à sua extensão e modo, tendo sido inserido em seu art. 218 a menção expressa de que se tornaram revogadas todas as disposições em contrário.
Nesse sentido, em seu art. 2º, o Decreto-Lei nº 9.760/1946 retomou como critério de delimitação dos limites dos terrenos de marinha aquele previsto pelo preamar-médio de 1831, regulando de forma completa o assunto tratado no Decreto anterior, permanecendo inalteradas as regularizações realizadas durante a sua vigência, em virtude do direito adquirido e ato jurídico perfeito, nos termos do art. 202 do Decreto-Lei nº 9.760/1946.
Sob este aspecto, é importante salientar uma das motivações utilizadas para que o Decreto-Lei nº 9.760/1946 retornasse ao critério de delimitação definido pelo preamar-médio de 1831, de acordo com o exposto por Rodrigo Marcos Antonio Rodrigues em sua obra:
Seguindo a orientação vigente desde o século XIX, segundo Messias Junqueira, na época Procurador-Chefe do Patrimônio Imobiliário do Estado de São Paulo, foi: como o assunto envolve antecipações prováveis e possíveis invasões da propriedade imóvel particular, confrontante com as marinhas, preferiu o projeto, a ser acoimado de inconstitucional, voltar à regra tradicional que definiu os terrenos de marinha como sendo aqueles situados em uma profundidade de 33 metros, medidos para a parte da terra, da posição que passava a linha do preamar médio de 1831. (apud, GASPARINI, 2009, p. 1940).
Ou seja, a motivação para que fossem retomados os critérios anteriores de delimitação dos terrenos de marinha, segundo o Procurador-Chefe de São Paulo, à época, foi evitar que o Decreto-Lei vigente fosse objeto de vício de inconstitucionalidade, uma vez se tratar de tema sensível envolvendo a propriedade privada e os limites da extensão dos terrenos de marinha e seus acrescidos.
Portanto, depreende-se que os terrenos de marinha não possuem uma delimitação exata acerca de sua extensão, formando-se a partir do preamar-médio de 33 metros em sentido ao mar, seja ela pela ação da natureza ou do homem. Segundo Rodrigo Marcos Antonio Rodrigues, "a formação do acrescido não implica em qualquer alteração na posição do terreno de marinha, que permanece com a extensão de 33 metros a partir da mesma linha que se formou o acrescido, este para o lado contrário daquele, acrescendo ao bem dominial já existente." (RODRIGUES, 2015, p. 159).
Por outro lado, o Decreto-Lei nº 9.760/1946 trouxe em seu art. 9º a informação de que é de competência do Serviço do Patrimônio da União (SPU) “a determinação da posição das linhas do preamar-médio do ano de 1831 e da média das enchentes ordinárias”, tornando-se de sua atribuição a indicação da linha demarcatória existente entre os imóveis da União e de particulares.
Segundo a Orientação Normativa ON GEADE-002[6], em seu item 4.7.1, para que haja a demarcação dos terrenos de marinha é necessária a realização de pesquisas em documentos antigos, devendo "!ser utilizados os de autenticidade irrecusável, que remontem ao ano de 1831 ou à época mais próxima daquele ano e que indiquem a posição da orla marítima no ano de 1831 ou próxima a ele", em observância ao art. 11, §1º do Decreto-Lei nº 9.760/1946[7].
Todavia, os métodos adotados para definição da extensão dos terrenos de marinha, até os dias atuais, dão ensejo a críticas por diversos pesquisadores do assunto, no tocante à manutenção de parâmetros fixados em meados do ano de 1831, gerando incertezas, seja no âmbito administrativo ou judicial, pela impossibilidade de realização do cálculo para sua delimitação exata.
Isto porque, de fato, as condições do preamar-médio atuais já não são as mesmas do ano de 1831, em virtude de diversos fatores que contribuem para o aumento do nível do mar, conforme o texto produzido por Ângela Romiti (Terrenos de marinha e a linha do preamar médio do ano de 1831[8]) "tais como: diminuição da pressão atmosférica, aumento da quantidade de calor contida nos oceanos, diminuição da salinidade, aumento na componente dos ventos dirigidos à Terra e correntes litorâneas, modificações climáticas, dentre outros", razão pela qual a linha do preamar-médio definida em 1831 encontra-se, hoje, encoberta, seja por fenômenos naturais e/ou artificiais.
Portanto, tem-se que a implementação dos terrenos de marinha no Brasil obteve motivação em uma série de fatores que correspondem à defesa do território, exploração de terras recém descobertas e arrecadação de receitas pela Coroa, por intermédio da realização de cobrança de taxa de ocupação e aforamento, a ser detalhado em tópico próprio.
3. ENFITEUSE
De acordo com o entendimento de Rodrigo Marcos Antonio Rodrigues, depreende-se um breve conceito a respeito da enfiteuse:
A enfiteuse é a forma de utilização de uma propriedade em que o proprietário, por meio de um contrato perpétuo, atribui a outrem o domínio útil do imóvel, passando este adquirente a ser chamado de foreiro ou enfiteuta, permanecendo o proprietário com o domínio direto do imóvel, criando, desta forma, a figura enigmática do senhorio direto.
No Brasil, o instituto da enfiteuse surgiu também na era Brasil Colonial, uma vez que, com a concessão das Sesmarias, as terras passaram com o tempo ao domínio de particulares. Todavia, com o descumprimento de algo previamente ajustado, a terra voltava ao domínio da Coroa, sendo considerada devoluta (RODRIGUES, 2015, p. 63).
Ademais, conforme observa Rodrigo Marcos Antonio Rodrigues apud Edgard Carlos de Amorim:
[...] tanto as terras das Sesmarias como também aquelas que retornassem ao domínio da Metrópole foram objeto de contrato de enfiteuse. Conclui-se, assim, que tanto os terrenos de domínio público como aqueles de domínio particular serviram de base para o contrato de enfiteuse (1986, p. 2), tendo inclusive os próprios terrenos de marinha constituído contrato de enfiteuse.
Muito embora tenha havido substancial influência de Portugal na instituição da enfiteuse no Brasil, no ordenamento jurídico brasileiro contemporâneo é possível encontrar sua manutenção no Código Civil de 1916, in verbis:
Art. 678 - Dá-se a enfiteuse, aforamento, ou emprazamento, quando por ato entre vivos, ou de última vontade, o proprietário atribui a outro o domínio útil do imóvel, pagando a pessoa, que o adquire, e assim se constitui enfiteuta, ao senhorio direto uma pensão, ou foro, anual, certo e invariável.
Todavia, com a vigência do posterior Código Civil de 2002[9], foi estabelecida a proibição de serem instituídas novas enfiteuses ou subenfiteuses de caráter civil, o que não atingiu a enfiteuse aplicada aos bens de titularidade da União, regulamentados pela enfiteuse administrativa ou especial, lavrados perante a Secretaria do Patrimonio da União (SPU).
Neste aspecto, para que exista o domínio útil do enfiteuta, é necessário o seu registro no cartório de registro de imóveis da circunscrição do imóvel, nos termos do art. 167, I, alínea “10” da Lei nº 6.015/1973[10] .
Desta forma, a repartição do domínio pleno em domínio direto e útil, contempla o fenômeno da enfiteuse, de modo que o enfiteuta, que detém o domínio útil sobre o bem, possui o direito a usufruir de diversos benefícios a que contempla a propriedade, quais sejam: usar, gozar, fruir e dispor, ainda que não ocorra de forma totalmente livre, mediante o pagamento do foro à União.
Em síntese, Rodrigo Marcos Antonio Rodrigues apud Silvio Rodrigues define a existência do domínio direto e útil da seguinte forma:
Da natureza perpétua da enfiteuse decorre, para o enfiteuta, uma prerrogativa importante, ou seja, a de transmitir, por ato negocial ou por sua morte (CC/1916, art. 681), o conjunto de seus direitos. Note-se que, em virtude dessa circunstância, surgem e permanecem indefinidamente dois domínios paralelos sobre um mesmo prédio: um domínio direto, de que é titular o senhorio, e um domínio útil, de que é titular o foreiro. (2003, p. 270).
No tocante à existência de dois domínios distintos sobre terrenos de marinha, simultaneamente, o entendimento jurisprudencial já consolidado pelos Tribunais Pátrios é de que é possível a aquisição da propriedade pela usucapião, no que diz respeito ao domínio útil do bem:
APELAÇÃO.REMESSA NECESSÁRIA.DIREITO CIVIL.DIREITO ADMINISTRATIVO.AÇÃO DE USUCAPIÃO. AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA.DOMÍNIO ÚTIL.BEM IMÓVEL PÚBLICO.TERRENO DE MARINHA.POSSIBILIDADE.SENTENÇA ULTRA PETITA OU EXTRA PETITA.PRINCÍPIO DA CON GRUÊNCIA. IMPROVIMENTO. 1. Trata-se de remessa necessária e de recurso de apelação interposto pela União Federal contra sentença que julgou parcialmente procedente o pedido, declarando que as autoras adquiriram, por usucapião, o domínio útil de parcela de terreno cuja propriedade é da União. 2. É juridicamente possível a aquisição, pela usucapião, do domínio útil de bem público objeto de aforamento, in casu terreno de marinha. Vide: RE: 218.324/PE. 3. A sentença que, numa ação de usucapião em que se postula a propriedade plena, não reconhece a aquisição do domínio pleno, mas apenas do domínio útil, não pode ter dado mais do que se requereu na petição inicial, i. e. não pode ser considerada ultra petita, conforme afirma a União. Ao exato oposto, a sentença que reconhece não aquisição do domínio pleno, mas apenas a aquisição do domínio útil, ou seja, apenas no que tange aos poderes do domínio e não os plenos poderes do proprietário, reconhece menos do que foi pedido. 4. A jurisprudência é firme no entendimento de que sentença que reconhece aquisição do domínio útil em ação de usucapião de terreno de marinha não é extra petita, mas citra petita (ou infra petita), o que não viola o princípio da congruência. 4. Remessa necessária e apelação conhecidas e improvidas.
(TRF-2 - APELREEX: 00000989020124025102 RJ 0000098-90.2012.4.02.5102, Relator: GUILHERME CALMON NOGUEIRA DA GAMA, Data de Julgamento: 31/03/2017, 6ª TURMA ESPECIALIZADA).
Neste aspecto, de acordo com a ON – GEANE 002, em seu item 3.1: "a enfiteuse ou aforamento é um direito real perpétuo no bem alheio para uso e gozo, acrescido do poder de disposição. Ao foreiro é atribuído o domínio útil (83%), permanecendo a União (senhorio) com o domínio direto (17%). O somatório dos domínios direto e útil constitui o domínio pleno, reunindo todos os atributos da propriedade [11]".
Desta forma, com a divisão da propriedade destacada, o enfiteuta se obriga a efetuar o pagamento anual de uma espécie de pensão (foro), equivalente à 0,6% do valor de avaliação do domínio pleno, atualizado anualmente, à União (ON GEANE – 002, item 3.1).
4. CLASSIFICAÇÃO DOS BENS PÚBLICOS
De acordo com a redação do art. 98, do Código Civil, "São públicos os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno; todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a que pertencerem".
Neste aspecto, os bens móveis ou imóveis pertencentes à pessoa jurídica de direito público direta (União, Estados, Distrito Federal e territórios, Municípios), ou indireta (Autarquia e fundação pública), possuem peculiaridades necessárias à sua manutenção, o que não ocorre com a propriedade particular, sendo os bens públicos considerados imprescritíveis, inalienáveis, não onerosos e impenhoráveis. (MACIEL, I. M. Manual de Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 2023. E-book).
Quanto à imprescritibilidade, tem-se que, em regra, os bens públicos não podem ser objeto de usucapião, uma vez que o art. 102 do Código Civil e Constituição Federal[12] trazem tal proibição de forma expressa. Já quanto à impenhorabilidade, verifica-se que não é possível a constrição de bens públicos para o pagamento de dívidas, considerando que o pagamento será efetuado mediante o regime de precatórios, respeitada uma fila impessoal.
No tocante à não onerosidade, os bens públicos não podem ser objeto de penhor, anticrese ou hipoteca, o que significa que inexiste a possibilidade de serem gravados em garantia ao pagamento de dívidas de terceiros.
Por fim, os bens públicos não podem ser alienados, isto é, são bens afetados, que não se encontram disponíveis à comercialização, em razão do interesse público.
Ato contínuo, os bens públicos podem ser classificados ainda como sendo: bens de uso comum do povo, bens de uso especial e bens dominicais, especificados no art. 99 do Código Civil de 2002.
Os bens de uso comum do povo, de acordo com o art. 99, I, do CC, são aqueles tidos como "rios, mares, estradas, ruas e praças".
Segundo Igor Moura Maciel, os bens de uso comum são aqueles disponíveis à todas as pessoas, seja de forma gratuita ou mediante alguma contraprestação. Esses bens podem ainda ser objeto de concessão, permissão ou autorização aos particulares (MACIEL, I. M. Manual de Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 2023. E-book).
As praias, por exemplo, são consideradas de uso comum do povo, nos termos do art. 10 da Lei 7.661/1988, nos seguintes termos:
As praias são bens públicos de uso comum do povo, sendo assegurado, sempre, livre e franco acesso a elas e ao mar, em qualquer direção e sentido, ressalvados os trechos considerados de interesse de segurança nacional ou incluídos em áreas protegidas por legislação específica.
Rodrigo Marcos Antonio Rodrigues, em sua obra Cursos de terrenos de marinha e seus acrescidos" se preocupou em demonstrar a diferença existente entre as praias, que como dito, são bens de uso comum do povo, e os terrenos de marinha, que são aqueles definidos de acordo com a linha do preamar-médio. Segundo ele, "As praias, partindo do mar para a terra, são as que o fluxo da maré cobre e o refluxo descobre"(RODRIGUES, apud BEVILÁQUA, 1975, p. 258-259).
Portanto, muito embora as praias e os terrenos de marinha não sejam efetivamente conceituados como sendo a mesma coisa, tem-se que estes últimos possuem características muito próximas ao conceito das praias.
Já os bens de uso especial, são os "edifícios ou terrenos destinados a serviço ou estabelecimento da administração federal, estadual, territorial ou municipal, inclusive os de suas autarquias" (art. 99, II do CC).
Por fim, os bens públicos dominicais, são aqueles que "constituem o patrimônio das pessoas jurídicas de direito público, como objeto de direito pessoal, ou real, de cada uma dessas entidades" (art. 99, III do CC). De acordo com o entendimento do Igor Moura Maciel, esses bens não possuem destinação específica, podendo ser utilizados pelo poder público para gerar receita por meio da alienação.
5. FORMAS DE UTILIZAÇÃO DOS TERRENOS DE MARINHA E OS REGIMES DE TAXA DE OCUPAÇÃO E AFORAMENTO
Quanto aos terrenos de marinha e seus acrescidos, eles podem ter destinação específica para o serviço público, ter características semelhantes aos bens de uso comum do povo, ou ainda, integrar o patrimônio disponível da União, como ocorre com os bens tidos como dominicais, que se assemelham em parte à propriedade particular.
Neste aspecto, se extrai da leitura do art. 49, §3º do Ato Da Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da CRFB/88, que "a enfiteuse continuará sendo aplicada aos terrenos de marinha e seus acrescidos, situados na faixa de segurança, a partir da orla marítima", sendo possível apenas a transferência do chamado domínio útil através do contrato de enfiteuse, permanecendo com a União, que detém o senhorio direto, a nua propriedade.
O contrato de aforamento é registrado em um livro próprio da Superintendência Regional do Patrimônio da União (SPU) competente e possui força de escritura pública, procedimento este decorrente de ato administrativo (RODRIGUES, p. 187, 2015).
Ou seja, se estiver preenchido um dos requisitos previstos no art. 105 do Decreto Lei 9.760/1946, o interessado deve proceder com o requerimento junto à SPU, que por sua vez, só poderá negar tal concessão mediante decisão fundamentada, com a demonstração da ausência de preenchimento dos requisitos previstos em lei.
Restando preenchidos os requisitos legais e sendo deferido o ato pela SPU competente, ocorre o assentamento no registro imobiliário competente, de modo que passa a constar a União como a proprietária do bem imóvel e a repartição do domínio do terreno, detalhando a divisão do domínio útil ao foreiro (RODRIGUES, p. 187, 2015).
Todavia, além da aquisição do domínio útil através do contrato de aforamento, existe a possibilidade de ocupação do terreno de marinha por meio de um deferimento do pedido de inscrição de ocupação da área, em hipóteses que comportam as suas particularidades.
Pode ocorrer em situações em que exista posse prévia com justo título ou não, ou até mesmo quando o particular possui um título registrado no Cartório de Registro de Imóveis competente sem menção da existência de propriedade por parte da União, ou através de transferência por ato inter vivos ou causa mortis, ocasião em que deve haver o pagamento do laudêmio.
Diferentemente do contrato de aforamento, na ocupação, inexiste tal instrumento entre a União e o particular para a disponibilização de seus bens dominicais. Ocorre uma autorização por parte da União, que gera uma Certidão de Inscrição de Ocupação, ocasião em que passa o particular a efetuar anualmente o pagamento da taxa de ocupação (RODRIGUES, p. 187, 2015).
A ocupação dos terrenos de marinha possui natureza precária. Por esta razão, não nasce para o ocupante a possibilidade de se valer do instituto da usucapião, "podendo a União proceder ao seu cancelamento a qualquer tempo e imitir-se na posse do terreno", sem prejuízo de eventual indenização pelas benfeitorias realizadas, havendo o cancelamento antecipado e boa fé do ocupante, nos termos do art.132, §1º do Decreto-lei 9.760/1946 . (RODRIGUES, p. 187, 2015).
Nesse sentido, após uma breve exposição acerca dos institutos mencionados, serão discutidas, na sequência, as problemáticas de ordem prática relacionadas aos terrenos de marinha e seus acrescidos.
6. RESTRIÇÕES À PROPRIEDADE PRIVADA
Conforme anteriormente exposto, de acordo com o entendimento dos estudiosos do assunto, bem como da legislação que versa sobre o tema, em regra, o particular nunca terá a possibilidade de adquirir a propriedade plena dos imóveis situados nos terrenos de marinha.
Isto porque, inclusive existe entendimento sumulado sobre o assunto, quando se analisa a súmula 340 do STF e 496 do STJ, que informam que "desde a vigência do Código Civil, os bens dominicais, como os demais bens públicos, não podem ser adquiridos por usucapião" e que "os registros de propriedade particular de imóveis situados em terrenos de marinha não são oponíveis à União".
Ou seja, de acordo com o regramento jurídico vigente, o particular sempre terá que pagar pelo direito de utilização do terreno, para que em contrapartida possa exercer alguns atributos da propriedade, permanecendo a União como a titular do domínio direto do bem.
A presente matéria tem sido objeto de discussão desde o Brasil Colonial e continua a influenciar novos projetos de lei e Emendas Constitucionais até os dias atuais, como por exemplo a PEC 39/2011[13] , que objetiva revogar o inciso VII do art. 20 da CF/88 e o §3º do art. 49 do ADCT, para "extinguir o instituto do terreno de marinha e seus acrescidos e para dispor sobre a propriedade desses imóveis".
Isto porque, a bem da verdade, não permanecem as mesmas necessidades da era Brasil Colonial, tendo sido o conceito de terreno de marinha adotado pelo Brasil há pelo menos 150 (cento e cinquenta anos). A defesa do território através das vias marítimas, por exemplo, não é motivo suficiente para que perpetue o instituto objeto do presente estudo.
Conforme as informações lançadas pela própria SPU, cerca de 500 mil imóveis são classificados como terrenos de marinha, sendo que "de acordo com o Senador Ricardo Ferraço (PSDB-ES), cerca de 10 milhões de brasileiros vivem em terrenos de marinha[14]".
De acordo com a proposta de Emenda à Constituição 39/2011, em sua justificação, as pessoas mais afetadas com essa tributação excessiva, são indivíduos de classe média e média-baixa, o que prejudica o planejamento territorial urbano.
Isto porque, além do pagamento do foro, subsiste a necessidade de pagamento da taxa de ocupação, do Imposto sobre Propriedade Predial e Territorial Urbana, sem prejuízo do pagamento do laudêmio, o que evidentemente impede o desenvolvimento de políticas públicas em virtude das obrigações impostas, mas não é só.
Em atenção às notícias emitidas pelo site da Prefeitura de Santos/SP[15], por exemplo, verifica-se que no ano de 2021, foi informada a intenção do Município de se valer de terrenos pertencentes à União para promover a diminuição do déficit habitacional, o que demonstra que boa parte da população se encontra de forma irregular em suas habitações, seja pelo investimento a ser realizado, ou em virtude da burocratização do procedimento administrativo a ser realizado perante à SPU.
Na prática, boa parte das pessoas que adquirem imóveis pertencentes à União sequer possuem conhecimento acerca da dimensão do feito. Segundo a justificação da PEC em questão, extrai-se o seguinte trecho:
A consequência disso é a existência de inúmeras construções feitas sob a presunção de firmarem negócios jurídicos perfeitos, muitos deles financiados com recursos do sistema financeiro de habitação, sem que o proprietário saiba que se trata de terreno de marinha.
Encontra-se previsto no capítulo dos direitos e deveres individuais e coletivos da Constituição Federal de 1988, especificamente em seu art. 5º, XXIII a menção expressa de que "a propriedade atenderá a sua função social".
Ato contínuo, de acordo com o art. 182, §2º da CF/88: "a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor".
Ou seja, tem-se o efetivo cumprimento da função social da propriedade, quando ela traz consigo a aplicação das especificidades contidas no plano diretor da cidade, tendo a sua destinação aplicada para o desenvolvimento urbano, garantindo o bem estar da sociedade como um todo. (MACIEL, I. M. Manual de Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 2023. E-book).
Portanto, não soa razoável, em virtude do princípio da dignidade da pessoa humana, função social da propriedade, livre exercício do direito de propriedade e devida destinação social do bem, que se encontra de acordo com o plano diretor da cidade, deixar o particular à mercê de um ato que depende da iniciativa do Ente Público, sob o argumento de que, de forma presumida, os bens públicos são imprescritíveis.
Adiante, o Código Civil trata sobre as mais variadas formas de aquisição da propriedade. Especificamente em seu art. 1.238, verifica-se a possibilidade de aquisição da propriedade por meio da usucapião especial para fins de moradia e função social da propriedade, assim disposto:
Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé; podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis. Parágrafo único. O prazo estabelecido neste artigo reduzir-se-á a dez anos se o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo.
No tocante aos terrenos de marinha, existe um entendimento tradicional no sentido de que "o que se usucapia é o domínio útil, nunca o domínio direto do senhorio". (Rodrigo Marcos Antonio Rodrigues, 2015, p. 73).
Ademais, o art. 102 da CRFB/88 e súmula 340 do STF trazem uma vedação expressa a respeito da aquisição da propriedade pela usucapião sobre bens públicos, sendo possível apenas com relação aos imóveis de natureza privada.
Todavia, tal entendimento merece ser mitigado, em se tratando de situações em que o Poder Público se mantém inerte ao se abster de proceder com o procedimento demarcatório do terreno de marinha.
Nesse sentido, o centro da discussão trazida com o presente estudo é verificar se existe a possibilidade do particular se valer da usucapião para fins de aquisição da propriedade, diante das particularidades do tema, o que será no tópico seguinte detalhado.
7.POSSIBILIDADE JURÍDICA DE AQUISIÇÃO DA PROPRIEDADE PELA USUCAPIÃO EM TERRENOS DE MARINHA NÃO DEMARCADOS
A discussão sobre a possibilidade de aquisição da propriedade por meio da usucapião, em especial, a usucapião judicial social, é particularmente relevante quando se trata de terrenos de marinha que ainda não tenham passado pelo procedimento demarcatório.
De acordo com o Enunciado 492, da 5ª Jornada de Direito Civil, extrai-se que "a posse constitui direito autônomo em relação à propriedade e deve expressar o aproveitamento dos bens para o alcance de interesses existenciais, econômicos e sociais merecedores de tutela".
Ato contínuo, em observância ao princípio da função social da propriedade, note-se que o terreno de marinha, quando não destinado a alguma função social, não sendo de uso comum do povo, sendo este, portanto, "abandonado", pode ser objeto de usucapião, tendo sido este o entendimento adotado por alguns Tribunais, senão veja-se:
Utiliza-se como parâmetro para o desenvolvimento do presente estudo, o processo de nº. 1001923-89.2017.8.26.0441, em trâmite perante à 2ª Vara Cível do Foro de Peruíbe/SP, o qual teve como objeto o reconhecimento da propriedade de um bem público, pela usucapião extraordinária urbana, tendo o requerente pautado sua pretensão no fato de que possui a posse mansa e pacífica desde meados de 1994, e que "a referida posse se deu por conta do abandono em que se encontrava o imóvel e pela necessidade do ora requerente buscar fixar moradia para si e sua família".
Em sede de contestação, o Município de Peruíbe se manifestou no sentido de não haver a existência de animus domini, posto que o que fora alcançado pelo requerente, com a posse do bem público, seria apenas a sua mera detenção, insurgindo-se contra a pretensão autoral, por alegar a incidência de bem dominical.
Após o regular trâmite processual, em sentença meritória, o Juízo de primeira instância julgou improcedente a pretensão autoral, fundamentando a sua decisão com base nos arts. 100 a 102 do Código Civil e súmula 340 do STF, que versam sobre a impossibilidade de aquisição da propriedade de bens públicos por intermédio da usucapião.
Irresignado, o requerente interpôs apelação, insurgindo-se contra a sentença ora guerreada, fundamentando o seu pleito no fato de que há mais de 22 anos obteve o bem como se seu fosse e que houve um efetivo abandono do terreno, razão pela qual teria utilizado o espaço para fixar a sua moradia, assim como a de sua família.
Demonstrou ainda o requerente que zelava pela coisa, sinalizando que de acordo com a razoabilidade, deveria ser declarada a propriedade do bem, em virtude da função social alcançada, uma vez que o poder público não havia dado destinação social ao terreno.
Argumentação interessante fora sobrelevada, no que diz respeito ao fato de que a função social da propriedade possui posição privilegiada na Constituição Federal, sendo atribuída a ela o status de direito e garantia fundamental, o que afasta o puro e simples argumento de que os bens públicos assim os são de forma presumida, ante a necessidade de ser analisado o caso concreto e a proteção concedida pela Carta Magna.
Nesse sentido, de acordo com o entendimento formulado pelo requerente nos autos mencionados, a administração pública deveria respeitar a norma destacada, em virtude não só da função social da propriedade, mas da dignidade da pessoa humana e do direito ao livre exercício da propriedade.
Segue ainda o autor da ação alegando que se trata de "um bem público desafetado de finalidade pública e que não atinge função social alguma", razão pela qual a sentença merecia ser reformada, em virtude de todos os princípios constitucionais que norteiam o direito de propriedade.
De forma acertada, em sede de Apelação, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo julgou pela procedência do recurso autoral, em votação unânime, reconhecendo a prescrição aquisitiva ora pleiteada pelo apelante.
Em sua fundamentação, esclareceu o Tribunal que, em virtude de sua desafetação, tornou-se o bem suscetível de usucapião, indicando diversos outros precedentes que versam sobre o tema, como os autos de apelação de nº. 1001950-04.2019.8.26.0441, além do fato de que houve demonstração do autor pelo preenchimento dos requisitos previstos em lei, como a posse mansa e pacifica há mais de 22 anos.
Ou seja, verifica-se que, de acordo com as decisões recentes dos Tribunais, interessante posicionamento tem sido alcançado, no tocante à tentativa de se obter um equilíbrio entre os direitos que permeiam o tema, considerando que ambos os institutos possuem previsão Constitucional (direito de propriedade e proteção dada aos bens públicos), devendo ser levada em consideração as particularidades do caso concreto.
Já no Recurso Especial nº 1.090.847/RS decisão importante foi apresentada, no que tange a possibilidade de usucapião sob terrenos de marinha, de forma específica.
A demanda em questão versa sobre ação de usucapião de um suposto terreno de marinha, terreno urbano localizado no estado do Rio Grande do Sul, sendo certo que desde meados de agosto de 1986, ou seja, há mais de 20 (vinte) anos, a parte autora ocupa o imóvel, tendo sido demonstrada a ocupação mansa, pacífica e com ânimo subjetivo de dono, durante todos esses anos.
Após a regular citação dos entes federativos, foi manifestado o interesse pelo julgamento improcedente da ação, em virtude do fato de que os bens públicos não se sujeitam à prescrição aquisitiva em decorrência da usucapião, assim como ocorreu no julgado anteriormente estudado.
Versa, portanto, sobre imóvel não demarcado pela SPU, tendo sido utilizado como fundamento à pretensão da parte requerida, o fato de que os bens públicos seriam supostamente "presumíveis", alegando inclusive que era dever da parte autora comprovar que a área não se posicionava em terreno de marinha.
Ato contínuo, a decisão, de forma acertada em seu teor, pontuou que "no caso, não é possível afirmar que a área usucapienda abrange a faixa de marinha, visto que a apuração demanda complexo procedimento administrativo, realizado no âmbito do Poder Executivo", esclarecendo não ser cabível a imposição do ato, pelo Poder Judiciário, em virtude da separação dos poderes.
Lado outro, o fato da área não ser delimitada, seguindo o rito previsto em lei, não pode recair como prejuízo ao particular, pois este não pode se sujeitar ao ato futuro, incerto e voluntário de demarcação da área, pela União, fazendo jus à materialização de seu direito de usucapir o espaço na qual reside e ocupa com ânimo de dono, enquanto tal procedimento não se materializa.
Todavia, em manifestação aos autos, a União procedeu com intervenção no processo, alegando que a área na qual se pretendia a usucapião, presumivelmente, era terreno de marinha, sendo os autos redistribuídos à Vara Federal, na qual restou julgada parcialmente procedente, sendo declarada a aquisição originária da propriedade pela usucapião, "ressalvando eventual e futura demarcação do terreno pela União".
Irresignada, a União chegou inclusive a interpor Recurso Especial, sob o argumento de que, em síntese, a ação deveria ser julgada improcedente, em virtude da indisponibilidade dos bens públicos, de acordo com a norma Constitucional vigente.
Contudo, a decisão foi mantida, tendo sido adotado como fundamentação o que segue:
a) Da suscetibilidade do imóvel à usucapião extraordinária.
O argumento da União de que a área usucapienda encontra-se presumivelmente em terreno de marinha não merece ser acatado, o critério adotado pela Secretaria de Patrimônio da União de que terrenos em até 190m de distância da linha de preamar são "presumivelmente" de marinha padece de fundamentação legal.
Como demonstrado, tal constatação depende de processo demarcatório de competência do Delegado de Patrimônio da União, que irá atualizar as áreas dos terrenos de 33 metros da linha do preamar médio de 1833. Contudo, tal procedimento ainda não foi realizado.
A perícia afirma a impossibilidade de se determinar com certeza se a área usucapienda estará ou não em terreno de marinha após esse eventual processo de demarcação. [...]
Portanto, diante do laudo inconclusivo resultante da perícia realizada, bem como da existência de registro dos imóveis confinantes em nome de particulares, sem qualquer oposição da União, entendo que carece de fundamentação legal a alegação no sentido de que se caracteriza como terreno de marinha a área usucapienda.
Desta forma, com a análise dos julgados colacionados, verifica-se que restou demonstrado que, cada vez mais, tem sido alcançado um avanço no entendimento jurisprudencial, o que tem refletido na possibilidade de aquisição originária da propriedade por meio da usucapião, em terrenos não demarcados pela União.
Isto porque, não é presumível o status de terreno de marinha, ante a ausência de previsão legal nesse sentido.
Ademais, o reconhecimento da prescrição aquisitiva da propriedade concedida ao particular não viola a imprescritibilidade dos bens públicos, uma vez que o julgado acima colacionado manteve de forma expressa em sua decisão a ressalva de que pode haver a posterior delimitação da área por ato da Administração Pública, o que a concederá o domínio direto sobre o bem.
8 CONCLUSÃO
Em suma, é possível concluir com o presente estudo que a restrição à aquisição plena da propriedade, em se tratando de bens situados em terrenos de marinha, tem sido objeto de debate nos Tribunais e projetos de lei.
Muito embora a legislação brasileira e entendimentos sumulados demonstrem a impossibilidade de aquisição da propriedade dos bens públicos, por meio da usucapião, dada a característica de serem imprescritíveis, intensos debates têm sido promovidos no Judiciário, em se tratando da tentativa de ser alcançado um equilíbrio entre a preservação dos bens públicos e, de outro lado, a promoção da proteção ao particular, especialmente, tendo em vista a função social da propriedade.
Nesse sentido, a análise da função social da propriedade, com a devida destinação social do bem, aliado ao princípio da dignidade da pessoa humana e ao livre exercício do direito de propriedade, tem levado alguns Tribunais a reconhecerem a possibilidade de usucapião nos terrenos de marinha, quando não demarcados pela União. Os Julgados apresentados objetivam equilibrar o direito individual de quem ocupa o imóvel por longos anos, de forma mansa, pacífica, com o ânimo subjetivo de constituir sua moradia, levando em consideração as sensíveis questões que versam sobre o tema.
É evidente que a aquisição da propriedade em terrenos de marinha não demarcados pela União ainda é tema sensível nos dias atuais, por envolver interesse que vai além das partes diretamente envolvidas. Nesse sentido, nas fundamentações das decisões proferidas, foram aplicados princípios fundamentais que regem o ordenamento jurídico vigente, na tentativa de ser alcançado um equilíbrio, considerando-se as particularidades do caso concreto e a devida observância da lei.
Por todo o exposto, conclui-se que sim, existe a possibilidade de se utilizar a usucapião como forma de aquisição da propriedade em terrenos de marinha não demarcados pela União, em virtude dos princípios inseridos na Constituição Federal, pautados na busca da proteção das garantias fundamentais previstas como direitos individuais, ressalvada a possibilidade de posterior demarcação da área pela União, garantindo-lhe o domínio direto sobre o bem após o regular procedimento previsto.
REFERÊNCIAS
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[2] Sesmaria. In.: Dicio, Dicionário Online de Português. Porto: 7Graus, 2024. Disponível em: https://www.dicio.com.br/sesmaria/#:~:text=Significado%20de%20Sesmaria,se%20comprometesse%20a%20cultiv%C3%A1%2Dlo. Acesso em: 26 fev. 2024.
[3] SILVA, Rafael Ricarte da. "Sesmarias". In: BiblioAtlas - Biblioteca de Referências do Atlas Digital da América Lusa. Disponível em: http://lhs.unb.br/atlas/Sesmarias. Data de acesso: 26 fev. 2024.
[4] Art. 20, VII, da CRFB/88. São bens da União: VII – Os terrenos de marinha e seus acrescidos.
[5] Lunação. In.: Dicio, Dicionário Online de Português. Porto: 7Graus, 2024. Disponível em: <https://www.dicio.com.br/lunacao/>. Acesso em: 28 fev. 2024.
[6] Demarcação de terrenos de marinha. In.: ON-GEADE-002. Disponível em: <https://www.gov.br/gestao/pt-br/assuntos/patrimonio-da-uniao/plano-nacional-de-caracterizacao/arquivos/normas-e-padroes/on_geade_02_terrenos_marinha.pdf>. Acesso em 30 fev. de 2024.
[7] Art. 11. A Secretaria de Coordenação e Governança do Patrimônio da União realizará, no âmbito do processo demarcatório, audiência pública de demarcação das áreas da União, presencial ou eletrônica, nos Municípios abrangidos pelo trecho a ser demarcado. (Redação dada pela Lei nº 14.474, de 2022)
§ 1º A Secretaria de Coordenação e Governança do Patrimônio da União notificará o Município sobre a abertura do processo demarcatório e a apresentação de documentos históricos, cartográficos e institucionais, informando a respeito da realização da audiência e da cooperação na execução de procedimentos técnicos, inclusive quanto à publicidade perante a população local.
[8] Romiti, Ângela. Terrenos de marinha e a linha do preamar médio do ano de 1831. Disponível em: <https://www.jusbrasil.com.br/artigos/terrenos-de-marinha-e-a-linha-do-preamar-medio-do-ano-de-1831/417522635>. Acesso em 05 mar. 2024.
[9] Art. 2.038. Fica proibida a constituição de enfiteuses e subenfiteuses, subordinando-se as existentes, até sua extinção, às disposições do Código Civil anterior, Lei n o 3.071, de 1 o de janeiro de 1916 , e leis posteriores.
§ 2º A enfiteuse dos terrenos de marinha e acrescidos regula-se por lei especial.
[10] Art. 167. No registro de imóveis, além da matrícula, serão feitos: I – o registro: 10) da enfiteuse.
[11] Aforamento Gratuito de imóveis dominicais da União. In.: ON-GEANE-002. Disponível em: <https://colaborativo-spu.gestao.gov.br/sites/default/files/public/2024 01/IN%20n%C2%BA%203%2C%20de%2009%20de%20novembro%20de%202016_0.pdf>. Acesso em: 05 mar. 2024.
[12] Art. 183, §3º da CF. Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião.
[13] Proposta de Emenda à Constituição nº 39, de 2011. Revoga o Inciso VII do art. 20 da Constituição e o §3º do Art. 49 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para extinguir o instituto do terreno de marinha e seus acrescidos e para dispor sobre a propriedade desses imóveis. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=508965&fichaAmigavel=nao#:~:text=Revoga%20o%20inciso%20VII%20do,sobre%20a%20propriedade%20desses%20im%C3%B3veis>. Acesso em: 05 mar. 2024.
[14] Agência Senado. Cerca de 10 milhões de pessoas vivem em terrenos de marinha. Correio do estado. 30/10/2016. Disponível em: <https://correiodoestado.com.br/cidades/cerca-de-10-milhoes-de-pessoas-br-vivem-em-terrenos-de-marinha/290141/>. Acesso em: 05 mar. 2024.
[15] Santos planeja construir mais unidades habitacionais em áreas federais. Prefeitura de Santos. 15/04/2021. Disponível em: <https://www.santos.sp.gov.br/?q=noticia/santos-planeja-construir-mais-unidades-habitacionais-em-areas-federais>. Acesso em: 05 mar. 2024.
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INEXISTÊNCIA. USUCAPIÃO. MODO DE AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA DA PROPRIEDADE. TERRENO
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Acesso em: 08 mar. 2024.
* LUIZ FERNANDO AFONSO RODRIGUES
-Advogado graduado pela UNIMES (1993):
-Mestre em Direito Civil pela PUC (2006); e
-Professor Universitário na Universidade Santa Cecilia (Unisanta), na Escola Superior de Administração, Marketing e Comunicação (Esamc) e Universidade Paulista (Unip)
*RACHEL FREITAS BEZERRA
- Quintanista em Direito pela Universidade Santa Cecília (Unisanta)
Nota do Editor:
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