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Os temas 1068, 1087 além da ADPF 779, todos decididos pelo Supremo Tribunal Federal, suscitam discussões acirradas sobre a concretização da garantia processual constitucional do Tribunal do Júri previsto pela Constituição de 1988. O Supremo Tribunal Federal tem optado por restringir as garantias constitucionais processuais da plenitude da defesa e principalmente da soberania dos veredictos, sequer aplicando a garantia da presunção de inocência ao acusado de crimes dolosos contra a vida sob o argumento principal de prevalência da soberania dos veredictos.
A leitura desse movimento jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal exige que conheçamos a história processual constitucional do Tribunal do Júri pela perspectiva de sucessivos textos constitucionais (ou das Cartas outorgadas que se pretenderam constitucionais). Compreender essa longa transformação em cotejo com os regimes políticos do Brasil, joga luz em parte desse movimento jurisprudencial que se enxerga como modernizador do Tribunal do Júri brasileiro.
Ao prever em seu art. 152 que "os Jurados pronunciam sobre o facto, e os Juizes applicam a Lei", a Carta brasileira de 1824 estabelece a semente constitucional da soberania dos veredictos, pois estabelece clara separação de funções entre juízes togados (profissionais) e jurados (sorteados para casos determinados).
O julgamento por jurados, segundo o texto de 1824, não é visto como garantia constitucional, pois sua previsão está localizada no Título "o Poder Judicial"; neste sentido, o art. 151 prevê os jurados apenas como parte da organização do Poder Judiciário da época: "O Poder Judicial é independente, e será composto de Juizes, e Jurados, os quaes terão logar assim no Civel, como no Crime nos casos, e pelo modo, que os Codigos determinarem."
Sendo proclamada a República, a Constituição de 1891 estabelece o Tribunal do Júri como garantia constitucional, porquanto prevista em sua "Declaração de Direitos", no art. 72, § 31: "É mantida a instituição do jury."
A previsão constitucional de "manutenção" pretendia utilizar o Tribunal do Júri monárquico como "piso" do republicano. Neste sentido, ao sustentar que o habeas corpus republicano da Constituição de 1891 não poderia ser menor do que o monárquico, Rui Barbosa confronta os respectivos textos jurídicos republicanos e imperiais e utiliza, como analogia, justamente a regulação em torno da instituição do júri:
Se a Constituição de 1891 pretendesse
manter no Brasil o habeas corpus com
os mesmos limites dessa garantia durante o Império, a Constituição de 1891
teria procedido em relação ao habeas
corpus como procedeu relativamente à instituição do júri. A respeito do
júri, diz formalmente o texto constitucional: ‘É mantida a instituição do
júri.’ O alcance dessa proposição é transparente. Quando se mantém uma
instituição mantém-se o que existe, mantém-se o que se acha estabelecido,
mantém-se o que se encontra, consolida-se o que estava. É por isto, Sr.
Presidente, que, defendendo a instituição do júri, já contra a legislação de
alguns Estados, já contra certas leis republicanas, eu as considerei sempre
como inconstitucionais, porque, à vista dos termos com que se exprime a nossa
declaração constitucional de direito, entendia e entendo não ser lícito ao
legislador ordinário submeter o júri a qualquer alteração que o modifique
substancialmente, que altere suas feições antigas, que mude a sua natureza
definida pelo texto da legislação imperial.[1]
Continua existindo a referência, ainda que remota, ao Tribunal do Júri monárquico e sua clara separação entre as funções de juízes togados (profissionais) e jurados, se considerarmos a interpretação de Rui Barbosa e que persistiu vigente o Código de Processo Criminal de 1832 e, no âmbito federal, o Decreto nº 848/1890 e a Lei nº 221/1894.
Por outro lado, sensível ao ambiente político extremista dos anos 1930 – e à grande antipatia às conquistas liberais, sob o peso da Escola Positiva Penal no Brasil –, o Tribunal do Júri deixa de ser garantia constitucional. O julgamento por jurados é deslocado do setor de "Declaração de Direitos" para as "Disposições Preliminares" no Capítulo IV "Do Poder Judiciário": o Tribunal do Júri volta a ser mero instrumento de julgamento na composição do Poder Judiciário.
Sobrevém o golpe de 1937 e o Estado Novo, e o próprio texto da Carta de 1937 representa muito bem a asfixia total do regime político. Comentando sobre o habeas corpus na Carta de 1937, Tornaghi ressalta o perene "estado de emergência" então em vigor:
Com o golpe de 1937 foi
outorgada nova Constituição, a qual, embora
incluindo o habeas corpus entre
as garantias individuais (art. 122, n. 16) permitia ao ‘Presidente da
República’ (eufemismo com o qual o ditador disfarçava sua descarada usurpação)
decretar o ‘estado de emergência’ (art. 166) e excluía da apreciação do Poder
Judiciário os atos praticados em virtude (sic) do referido estado. Para completar o quadro
sombrio e tétrico, o art. 186 declarava em todo o País o estado de emergência![2]
Neste contexto
político autoritário, a previsão do Tribunal do Júri foi totalmente suprimida
do texto que se pretendia "constitucional". A grande questão que surge é: o
Tribunal do Júri continua em vigor?
Na verdade, os adversários do Tribunal do Júri aumentaram muito no início dos anos 1930, e usavam a Itália como exemplo por ter eliminado a instituição, misturando juízes profissionais com jurados para o julgamento de mérito. No Brasil, o principal defensor da permanência do Tribunal do Júri, apesar de sua retirada do texto da Carta de 1937, chama-se Magarinos Torres.[3] E não sem muita luta o governo reconheceu o Tribunal do Júri por meio do Decreto-Lei n.º 167 de 05 de janeiro de 1938. Sob a Ditadura Vargas, portanto, foi reconhecido como procedimento penal especial previsto em lei ordinária esparsa ou, talvez de modo mais otimista, mera "garantia" legal.
Porém, em regime político tão autoritariamente severo, o reconhecimento da existência do júri também teve seu preço. O art. 96 do aludido Decreto-lei admite que juízes togados pudessem reformar diretamente a decisão dos jurados: "Se, apreciando livremente as provas produzidas, quer no sumário de culpa, quer no plenário de julgamento, o Tribunal de Apelação se convencer de que a decisão do juri nenhum apôio encontra nos autos, dará provimento à apelação, para aplicar a pena justa, ou absolver o réu, conforme o caso." Do ponto de vista do texto legal, portanto, é obliterada aquela clara separação entre as funções de juízes profissionais e de jurados: aqueles podem reformar diretamente decisões populares, substituindo os jurados em grau de apelação. A soberania popular desaparece.
Após a II Guerra Mundial e a derrota do Eixo, o país é redemocratizado e o art. 141, § 28 da Constituição de 1946 – refletindo essa mudança – recebe, quanto ao júri, redação que herda os textos de 1891 e de 1934 e amplia sua proteção constitucional. Vamos ao referido § 28: "É mantida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, contanto que seja sempre ímpar o número dos seus membros e garantido o sigilo das votações, a plenitude da defesa do réu e a soberania dos veredictos. Será obrigatoriamente da sua competência o julgamento dos crimes dolosos contra a vida."É a primeira vez que surgem os termos sigilo das votações, plenitude da defesa (passando a ideia de maior abrangência que a "ampla defesa") e soberania dos veredictos; 3 pilares fundamentais do Tribunal do Júri e que passam a ser garantias constitucionais processuais, integrando o Direito Constitucional Processual brasileiro (o que vale dizer a Constituição tutelando a garantia processual do Tribunal do Júri). Também é a primeira vez que a Constituição prevê um piso de competência para o Tribunal do Júri, e com o objetivo evidente de evitar que o legislador ordinário o esvaziasse em algum momento de descontentamento com o Júri.
No entanto, mais importante é que o Tribunal do Júri volta a integrar a "Declaração de direitos" localizada no Título IV, no capítulo II "Dos Direitos e das Garantias Individuais". que, em 1988, servirá para consolidar o Tribunal do Júri do regime democrático.
Com o golpe militar de 1964, a Carta outorgada de 1967 mantém o Tribunal do Júri tentando manter o texto que se pretende constitucional dentro de aparente normalidade; assim dispõe o art. 150, § 18: "São mantidas a instituição e a soberania do júri, que terá competência no julgamento dos crimes dolosos contra a vida".
Aparente normalidade, porque embora o regime de 1964 tenha mantido o Tribunal do Júri no Título II "Da Declaração de Direitos" e capítulo IV "Dos Direitos e Garantias Individiuais", diminui o raio de proteção constitucional ao Tribunal do Júri; mantendo no Direito Constitucional Processual brasileiro apenas a soberania dos veredictos e o piso mínimo de competência: sigilo de votações e plenitude da defesa são eliminados do texto da Carta de 1967.
A Emenda Constitucional nº 01/69, que surge em momento político de grande fechamento e violência do regime, unifica os Atos Institucionais incluindo o de nº 05/68, e exclui a soberania dos veredictos do Direito Constitucional Processual brasileiro enquanto peça fundamental do Tribunal do Júri, restando apenas o piso mínimo de competência, conforme art. 153, § 18: "É mantida a instituição do júri, que terá competência no julgamento dos crimes dolosos contra a vida."
Depois de mais de 20 anos do regime iniciado em 1964, sobrevém o processo de redemocratização que deságua na Constituição de 1988. Seu texto, no que concerne ao Tribunal do Júri, condensa as previsões constitucionais de 1824, 1891, 1934 e 1946, conforme art. 5º, inciso XXXVIII, alíneas "a" a "d": "(...) XXXVIII - é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados: a) a plenitude de defesa; b) o sigilo das votações; c) a soberania dos veredictos; d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida; (...)"
A redemocratização, como já acontecera antes, aumenta o campo do Direito Constitucional Processual também em relação ao Tribunal do Júri, pois além de mantê-lo na declaração "Dos Direitos e Garantias Fundamentais", posicionada no Título II da Constituição, recebe em seu texto, como garantias constitucionais processuais, a plenitude da defesa, a soberania dos veredictos, e o sigilo das votações.
Verificando a tendência histórica inegável aqui projetada, devemos analisar o conteúdo daquelas decisões do Supremo Tribunal Federal e sua argumentação para identificarmos o que é sustentável à luz da Constituição de 1988, e o que é mero retrocesso autoritário sob a falsa forma de argumentos "democráticos" e de "humanização" do processo penal.
REFERÊNCIAS
[1] BARBOSA, Rui. Intervenção no Estado do Rio – I (sessão em 20 de janeiro de 1915). In: Obras completas de Rui Barbosa. Discursos Parlamentares. V. XLII, Tomo II. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde (Casa de Rui Barbosa), 1981, p. 92;
[2] TORNAGHI, Hélio. Curso de processo penal. Vol. 2. 4ª edição. São Paulo: Saraiva, 1987, p. 404;
[3] Cf.: SILVA, Evandro Lins e. Arca dos guardados: vultos e momentos no caminho das caminhos da vida. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995, p. 163/168.
DANIEL GUIMARÃES ZVEIBIL
-Mestrado pela USP (2006);
-Doutorado pela USP (2017);
-Possui trabalhos em processo constitucional,
-Professor de pós-graduação e
-Defensor público do Estado.
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