domingo, 26 de março de 2017

Uma história sem final (feliz)




O ser humano é gregário. Isso significa que ele tem a necessidade de se relacionar. Muitas pesquisas já comprovaram que pessoas que têm uma rede social de apoio têm melhor qualidade de vida, sentem-se melhor e correm menos riscos de terem doenças como a depressão, por exemplo (Minayo, 2000).

Outra necessidade dos seres humanos é a de explicar, definir, categorizar e organizar as coisas que acontecem com eles mesmos e a sua volta. Isso acontece para que a vida e o mundo tenham sentido. Uma das melhores coisas que essa necessidade trouxe foi a ciência, mas antes disso, (e em muitos casos até hoje e apesar da ciência), os acontecimentos eram explicados com o objetivo de organizar as sociedades de modo a proteger os interesses das classes dominantes e preservar o poder de seus líderes (Horkheimer, 1989).

Um exemplo disso é como homens e mulheres são vistos historicamente. Os antepassados pré-históricos do ser humano, mais precisamente o homem de neandertal adorava as mulheres por causa da capacidade de gerar filhos. No entanto, na Antiguidade, quando descobriu-se que o homem também participa do processo de procriação, o status da mulher começou a cair enquanto o do homem só aumentava. A mulher sempre foi vista de modo ambivalente enquanto o homem era cada vez mais afirmado como superior. Mas foi com o surgimento do cristianismo que a mulher amargou seus piores momentos, pois por causa do pecado original cometido por Eva, as mulheres passam a serem culpadas por todos os males da humanidade. Suas fraquezas são acentuadas e ela passa a ser vista ao mesmo tempo como santa e pecadora. Sempre sob o julgo do pai ou do marido, podia ser espancada para ser corrigida; quando era estuprada, era acusada de ter permitido, de gostar disso ou de não ter sido bem cuidada pelo homem responsável por ela (Lins, 2012).

A função da história é conhecer o passado para entender o presente. Assim como o que acontece no passado de uma pessoa influencia o que ela é no presente, a história da civilização humana deixa marcas nas sociedades atuais e ajuda a explicar muitas das coisas que são vividas hoje. Os relacionamentos abusivos e o fato de ele ocorrer principalmente com mulheres é uma dessas marcas (Alvim & Souza, 2005).

Existem vários tipos de relacionamentos (românticos, familiares, de trabalho, de amizade...) e várias formas de se relacionar, que podem ser mais ou menos saudáveis. Para que uma relação, independente de qual tipo for, traga aos envolvidos os benefícios mencionados no início do texto, é preciso que haja reciprocidade, respeito, confiança, honestidade; os envolvidos devem se sentir confortáveis, que ganham coisas, que a relação traz soluções, agrega (Marques, 2005).

A história de dominação do homem sobre a mulher gerou neles a crença de que elas são suas propriedades, que devem se submeter a eles e satisfazer todas as suas vontades. Por outro lado, o homem também é muito pressionado a reprimir seus sentimentos e a ter um desempenho firme para provar sua virilidade, o que gera intensos sentimentos de insegurança e ansiedade. Enquanto isso, as mulheres seguem acreditando que devem se submeter a tudo, que estão incompletas se não tiverem um homem ao lado. Eis o cenário ideal para o surgimento de um relacionamento abusivo (Alves & Diniz, 2005).

Em tal relação não há reciprocidade e sim servidão; não há respeito, só culpa e punição; em vez de confiança, medo; diferente de honestidade, manipulação. Ambos os envolvidos se sentem ansiosos: ele por dominar, ela porque será dominada; ambos perdem coisas, ela autoestima e ele a dignidade. E isso pode ocorrer de forma explícita, por meio de agressões físicas; ou de modos mais ou menos sutis, tais como: controlar o que vestir, horários, onde e com quem está, bem como desvalorizar as conquistas da mulher, não apoiar os projetos dela, desencorajá-las, citar seus defeitos, pedir que mude coisas na aparência ou no modo de se comportar (Alvim & Souza, 2005).

O casal vai se isolando em uma teia de dor e sofrimento. Ela porque, no fundo, tem vergonha de sua situação e não quer ouvir conselhos ou ser julgada, e ele porque assim é mais fácil dominar e, ao mesmo tempo, manter para os outros uma boa imagem. Com o passar do tempo nessa situação, a mulher, cada vez mais enfraquecida, culpa-se pelas atitudes do parceiro, tem a esperança de que ele mude e teme deixa-lo, pois isso é melhor do que estar sozinha e acredita que ninguém a vai querer. Já o homem está cada vez mais sedento por controle, pois assim compensa seus sentimentos de inferioridade (geralmente, esse tipo de agressor também sofreu abuso na infância), tem cada vez menos consciência dos seus atos, vai sentindo cada vez menos culpa pelo que faz, e, por consequência, controla cada vez menos seus atos, que vão se tornando cada vez piores (Alvim & Souza, 2005).

Sair disso é um processo individual, que varia de mulher para mulher, (dependendo de quão comprometida ela está emocionalmente e de fatores externos como depender financeiramente do parceiro). Esses fatores individuais podem facilitar ou complicar ainda mais a finalização desse tipo de relação, mas no geral esse processo começa pelo fim de duas coisas: da negação, que implica aceitar que há algo errado na relação, e da esperança de que a pessoa mude. Impedir que isso aconteça implica em mais história: alguns passos já foram dados nesse sentido pelo movimento feminista e pela criação da Lei Maria da Penha, mas muito ainda precisa ser feito, e vai levar tempo até, quem sabe um dia, essa história ter um final feliz (Marques, 2005).

Essa é uma luta que não deve ser somente das mulheres, pois os homens também vão ganhar muito, já que vão poder se libertar dos pesados estereótipos impostos a eles, que hoje ainda representam o masculino. Devemos isso a nós mesmos e aos homens e mulheres que virão.

Referências:

ALVES, S.L.B.; DINIZ, N.M.F. 2005. "Eu digo não, ela diz sim": a violência conjugal no discurso masculino. Revista Brasileira de Enfermagem, 58:387-392;



ALVIM, S.F.; SOUZA, L. 2005. Violência conjugal em uma perspectiva relacional: homens e mulheres agredidos/agressores. Psicologia: Teoria e Prática, 7:171-206;

HORKHEIMER, M. Filosofia e teoria crítica. São Paulo, Nova Cultural, 1989. (Coleção Os Pensadores);

Lins, Regina Navarro. O Livro do Amor, vol. 1: da pré-história à renascença. Rio de Janeiro; Best Seller, 2012;

MARQUES, Tania Mendonça. Violência conjugal : estudo sobre a permanência da mulher em relacionamentos abusivos. 2005. 303 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Humanas) - Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2005; e

Maria Cecília Minayo (Ciência & Saúde Coletiva, 5(1) :7-18. 2000)

POR RENATA PEREIRA











-Psicóloga formada pela Universidade Prebsteriana Mackenzie;
-Especialista em Terapia Comportamental Cognitiva pelo Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP;e
Atende adolescentes e adultos em psicoterapia individual e em grupo.
CONTATOS:
Email: renatapereira548@gmail.com
Twitter:@Repereira548

NOTA DO EDITOR :

Todos os artigos publicados no O Blog do Werneck são de inteira responsabilidade de seus autores.

Nenhum comentário:

Postar um comentário