segunda-feira, 22 de outubro de 2018

Dona Maria e o Peixe


Dia de verão, sol forte, as ruas calmas com crianças brincando na Cidade Ocian, em Praia Grande. Elas tinham de fazer valer cada dia de férias da escola e brincavam com a pressa de quem não pode esperar por nada. O cenário era esse.

Da. Maria, depois de preparar e tomar o café com o pão frito na margarina, saiu da pequena casa caiada de branco, com portão de madeira e caminhava pela rua cheia de casinhas iguais, com seu passinho lento, tremido, mas garrido de sabedoria.

Sim, porque os anos vividos com seu Clodoaldo e com os filhos, agora criados, trouxeram o vagar no caminhar, mas junto veio a sabedoria da idade. A idade que tira a firmeza das pernas mas empresta a garra de continuar no caminho, sempre e sempre.

O tempo de hoje traz a visita rara dos filhos distantes, e a pequena, mas envolvente convivência com os três netos.

Ontem Da. Maria foi cedo ao banco da avenida da praia para não pegar fila. Ela fora sacar a mesada do governo. A pensão que seu Clodoaldo deixara com sua morte ficava cada ano menor, mas ainda dava para fazer o almoço de todo dia.

Tinha de comprar tudo do mais barato, e o barato, para Da. Maria, ficava longe. O supermercado grande e moderno, ali do lado de casa, não era para ela. 

Para ela, o almoço de todo dia ficava mais longe, na feira, e no fim da feira, na barraca do seu João, quando as batatas ficavam mais baratas, mesmo sendo aquelas com um olhão que só vendo. A cenoura, já era a mais machucada, mas dava uma sopa igual.

Carne, peixe? Só quando as crianças vinham com a filha e o genro, da capital, para visitar ela. Era quando Da. Maria se dava o direito e o prazer de um gasto maior lá no mercado do centro, e comprava um peixe ou um lombo.

As crianças adoravam mais as batatas fritas do que o lombo, mas a filha ficava mesmo feliz com o tempero do interior de Minas que só a mãe sabia fazer. Dessa vez ia comprar peixe. As crianças vinham para o fim de semana.

Enquanto caminhava, o riso das crianças na rua a fez lembrar de outros tempos.

Tempos em que seu Clodoaldo, o marido já ido, ia na praia logo cedo, quando o pessoal ainda estava chegando para armar as cadeiras e as esteiras para lagartear no sol. Era quando chegavam os pescadores que vinham do alto mar em suas pranchas, com as redes cheias da pesca da madrugada. 

Nas poucas vezes em que acompanhou Clodoaldo, ela viu encher de gente em volta das pranchas. As crianças curiosas em ver os peixes, os siris, ainda vivinhos da silva, pulando e se mexendo no fundo da prancha, no meio da rede. Algumas riam de contentamento, outras queriam pegar os bichos, outras, ainda, gritavam de medo ou de nojo. Mas era uma multidão que vinha ver e comprar os peixes.

Da praia dava para ver os pescadores enquanto ainda estavam distantes. Uns fiapinhos de gente estampados contra o azul do céu e do mar. Ficavam balançando sem parar, ora aparecendo, ora sumindo no meio das ondas. Vinham em pé em cima daquelas pranchas com não mais de um metro de largura, e menos de três de comprido. Sem quilha, sem remo, sem vela, sem nada, a não ser uma longa vara que usavam para se equilibrar até a prancha pegar o rumo ou chegar na firmeza da praia. Equilíbrio era o equipamento que tinham. Equilíbrio, a vara, a rede e as ondas. Era tudo o que tinham nesse mundão.

Quando chegavam na praia, já iam separando, em cima da prancha mesmo, com cuidado, o produto da pesca. Separavam os grandes dos pequenos, as sardinhas das garoupas, as corvinas das tainhas e jogando todos ali na frente do pessoal de maiô, que entre “ohhss” e “ahsss” diziam querer comprar um ou outro, perguntando o preço.

Eram baratos e frescos, e faziam uma refeição pra lá de boa. Naquele tempo, o seu Clodoaldo voltava para casa com umas três ou quatro garoupas daquelas, ou corvinas, ou cavalinhas, que davam para a família inteira passar bem, por mais do que a semana.

Com o tempo foi-se o seu Clodoaldo, que a idade e o diabetes levaram depois de muito esforço. 

Também as pranchas dos pescadores se foram. Aquelas longas pranchas de madeira, cobertas de alumínio, umas vermelhas, outras laranja ou verde se foram.

As pranchas, com a pesca, foram proibidas porque não tinham o selo de qualidade do governo, mostrando que são fiscalizados para não trazerem doenças. Da. Maria não lembra de ninguém ter ficado doente com os peixes do Clodoaldo e dos pescadores.

Da. Maria percebe que a mesada que recebeu ontem, mal deu para a garoupinha sem vergonha que vai dar só para o domingo, e sente saudades do seu Clodoaldo, das crianças e dos pescadores, que, afinal, ninguém sabe que fim levaram. 

POR ALCEU ALBREGARD JÚNIOR















-Advogado tributarista e imobiliário nas horas pagas e
-Escritor de Contos e Crônicas nas horas vagas e não pagas.
Nota do Editor:

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Um comentário:

  1. Uma belíssima crônica sobre as asperezas da vida de cada um de nós. PARABÉNS

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