sexta-feira, 19 de julho de 2019

Luto pelos Vivos

Autor: Rafael Canto(*)
    

A tristeza pela perda é inevitável quando se tem fortes sentimentos por alguém que se vai. Ao longo dos últimos 3 anos  eu perdi minha mãe e um dos meus melhores amigos, a quem considerava um irmão(mais que os meus próprios, que se fizeram irrelevantes e indiferentes à minha pessoa com o passar do tempo), e foi devastador para mim, alterando radicalmente características que imaginava serem inerentes e imutáveis em minha natureza, tornando-me amargo e desiludido, sofrendo de uma eterna sensação de solidão e desespero, que não eram traços que possuía na minha juventude. 

Realmente me abalou imensamente e literalmente transformou a minha vida em um inferno interno e externo, de natureza arredia, rebelde, fui incapaz de suportar por algum tempo o simples fato de existir; logo acordar era um tormento.

Sim, o simples ato de despertar pela manhã e saber que estava vivo mostrou-se insuportável; um inferno pessoal regado pelo desgosto respirar. De que a despeito de todos os problemas que tive com meus irmãos ao longo dos anos, fossem amenizados com a perda de nossa mãe... Não foram. 

Apenas justificou o afastamento aos olhos deles e amarguei ainda mais este efeito colateral da perda. 

Traumas passados conhecidos apenas por um par de pessoas ainda alastravam meu espírito quando isso tudo ocorreu e por muitas vezes desejei que tudo houvesse aflorado de uma só vez, por que talvez eu tivesse sido capaz de aguentar o tranco e absorver essas porradas da vida e levantar, sacudir a poeira, dar a volta por cima e todos os eufemismos possíveis que gentilmente/impacientemente/raivosamente, recebi das pessoas próximas enquanto eu esfarelava por dentro e os cavaleiros do apocalipse faziam excursões em cada canto da minha vida. 

Conscientemente ou não, afastei quase todos que estavam perto e isso foi antes dos falecimentos, pois o carro estava na metade da ladeira, a toda velocidade, embora eu não fizesse ideia. 

Descrevo mais as sensações, pois os problemas hoje são irrelevantes ao presente e ao que a minha mente se tornou. Traições, mentiras, indiferença, abandono, egoísmo, agressões. É como lutar para respirar, querer viver e não saber como. Eu descrevo como tentar pegar mercúrio com as mãos nuas. 

Demorei alguns meses para me entender com meu pai. Passávamos pela mesma dor, pelo mesmo luto e como somos parecidos por dentro e eu sendo uma fotocópia externa mais nova dele, acabamos nos atacando no nosso momento de maior dor nos meses subsequentes e logo isso não ajudou. 

Fiquei um tempo solto no mundo, errando e sendo miserável em outros lugares que não fossem o bairro em que passei a maior parte da minha vida, cada vez mais pensando que eu era um erro no mundo, a causa de todos os problemas, afinal, senão os outros, sou eu o problema? Por meses achei que sim e descobri que novas confianças recém depositadas revelaram ser mais um novo erro numa coleção de tamanho invejável. 

Voltei para a casa dos meus pais para morrer. Senti isso. Eu ansiava e desejava, até arquitetava. Durante meses me odiei. A única coisa que eu pensava era que não daria esse desgosto a meu pai, ou essa alegria aos meus irmãos. Então eu esperei. Aguardei e pensei, comecei a reparar nos amigos e contatos que tinha, nas pessoas que ainda se importavam de forma genuína, e ainda assim tive três grandes abandonos e traições nesse período, que apertaram mais ainda o nó da corda que envolvia meu espírito e coração, mas o processo de cura interna já havia começado. 

A morte vem para todos, um dia, eu vou morrer, não sei quando e nem como, e não me importo de verdade; nunca tive medo da morte pois meus maiores medos eram a solidão e o abandono, e já me acostumei com esses medos aprendendo a conviver diariamente com eles.

Conversando com um Professor de teologia sem necessariamente abordar religião, ouvi uma frase de filosofia bem básica(segundo ele): Enquanto estamos vivos, ser é complicado, nós simplesmente estamos. Ninguém é de fato totalmente alguma coisa. As pessoas não foram/são boas ou ruins. Apenas estavam diferentes, com vibes diferentes, desalinhadas com o meu estar quando passei por elas na vida. Não sou filósofo, então me perdoem essa adaptação rudimentar de meus pensamentos, mas é o que me ajuda no momento, me concentrando nas pessoas presentes, sem de fato internalizar tudo e exorcizar tantos problemas do passado enquanto vivo um dia de cada vez. 

Apesar de estar menos pior e avançando aos poucos, ainda estou de luto. Enlutado por todas as pessoas que apesar de mortas para mim, caminham pelo mundo vivendo suas próprias vidas. 

Expresso isso não por raiva, rancor ou desgosto. Não sou a raposa desdenhando as uvas. Me encontro no estado que quando olho uma foto da minha mãe ou de meu amigo não tem a menor diferença emocional das pessoas que se foram da minha vida e desconheço o juízo de isso ser positivo ou negativo, essas pessoas se extinguiram da minha percepção de existência, apenas para deixar as lembranças boas ou ruins do passado, me deixando de luto pelos vivos. E hoje, só luto pelos vivos.

*RAFAEL CANTO

-Fotógrafo e escritor;

-Estudou biblioteconomia na UNIRIO









Nota do Editor:

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