segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Joaquim Raiz


Autor: Elismar Santos(*)

Pode ser que alguém ainda se lembre de Joaquim Raiz. Mas, certamente, se ainda existirem, estes serão poucos. E, mais certo ainda, se lembrarão bem vagamente do pobre homem. Se ainda me recordo claramente dele, é porque estávamos sempre juntos. Éramos unha e carne, verdadeiros amigos, quase como se fôssemos a mesma pessoa.

A verdade é que eu era a única proteção de Joaquim. Ele, assim como as outras pessoas, não me via e nem me ouvia; mas ele, e disso tenho certeza, era o único que podia sentir a minha presença sempre ao seu lado. Por isso, desabafava sempre comigo. Falava sobre suas dores, seus sentimentos, sua eterna falta de esperança. A mim, como o fardo de todo bom ouvinte, cabia somente a função de escutá-lo e deixar que se libertasse de todas as suas lamentações.

Outros amigos não tinha. O pobre homem morava num minúsculo rancho de pau à pique, ao lado de um riacho, distante uns dois quilômetros de uma pequena cidade. Assim como seu rancho, Joaquim era bastante simples; nunca havia frequentado a escola, nunca tinha saído daquele torrão, nunca tinha namorado, nunca tinha sentido falta de nada disso.

O homenzinho comia peixes, frutos e raízes; daí o seu apelido. Ninguém sabia ao certo se Joaquim era o seu nome, mas, em falta de um qualquer, acharam por bem colocar este, em homenagem ao avô do Nosso Senhor. Os pais morreram cedo. O velho caiu no rio e se afogou; a mãe enlouqueceu e pulou atrás. O menino ficou sozinho no mundo. Vieram buscá-lo, mas ele negou-se a sair. Disse que os pais voltariam para buscá-lo. Tentaram de tudo e, não havendo jeito, resolveram, por bem, deixá-lo solitário naquele canto, visitando-o de quando em vez.

As visitas eram frequentes; mas foram rareando, até que ninguém mais o viesse visitar. Não lhe traziam mais a feira do mês, nem as roupas velhas que as velhas senhoras lhe arrecadavam. Ele não sentira falta de nada disso. Preferia ficar à beira do rio, trepando nas árvores, comendo raízes, olhando as estrelas. Não; ele não era um menino feliz e, por fim, tornara-se um homem mais triste ainda.

Joaquim não falava muitas coisas conexas e, talvez por isso, eu sempre tivesse que me desdobrar para entender o que dizia. Falava sobre as estrelas, que um dia, quando todos estivessem dormindo, cairia no riacho e o levaria para junto dos pais; sobre as histórias que a mãe tinha contado na noite anterior, contando como era bonito e feliz na nova casa. E ele ria sozinho, ria alto, até que caísse uma lágrima dos seus olhos.

Ele já estava velho e nem mesmo sabia a sua idade. Eu já me apagara aos pés da sua cama coberta de palhas secas, enquanto ele tossia bastante. Um pouco de brasas ainda crepitava no pequeno fogão à lenha. De repente, uma estrela caiu rapidamente do céu, como se cortasse a escuridão, e caiu no riacho. Joaquim sorriu um riso brando, limpou a garganta, olhou carinhosamente para mim e saiu fechando a porta do velho rancho. Eu estava bastante cansado. Virei para o lado e adormeci novamente.

*ELISMAR SANTOS

-Professor de Língua Portuguesa;
-Poeta, Escritor e Locutor;
-Mora em São João da Lagoa, Norte de Minas Gerais; 
-Possui quatro livros publicados: Sanharó (Romance), Mutação (Poesia), A Pá Lavra (Poesia e O Poeta e Suas Lavras (Poesia). 
Seus textos podem ser lidos também em www.elismarsantoss.blogspot.com


Nota do Editor:

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