Soubemos da estória do Adão e
da Eva (um casal outrora feliz, e
diga-se desde já: nada bíblico, senão essas coincidências
que estão aí, por esse mundo a fora).
Soubemos do que houvera se passado com aquele casal de amigos, pelo Anacleto em uma roda de mascarados previdentes à atroz Covid-19, diante de duas garrafas de Skol, numa providencial mesa externa do Boteco China Garden do sempre solícito Pynwan.
― Estão numa pior, disse meio abafado o Anacleto.  O Adão ronca. Muito.  A Eva 
fica sem sono e irritada.  O evento começa,
invariavelmente, às 3h da manhã.
O Anacleto buscou sorver,  via máscara,  um pouco de ar filtrado  ― Há mais...  A Eva também se irrita com o hábito do Adão de
não utilizar jogos americanos ou toalhas para comer.  A mesa está todinha arranhada.
 ― E quanto ao sexo?  ― questionou o Alves, depois
de um gole rápido.
― O sexo decaiu, pô, Alves!  Você quer o quê?  Nossos amigos tão com uns 75, 70 nas
costelas.  O sexo decaiu.  Mas eles já estavam preparados
para o evento.  Talvez
fosse até um alívio.  O
espaçamento entre as ocasiões eróticas despertou uma desconfiança no começo.
― Na certa tem um "outro" e tem
uma "outra",  metidos nesse balaio. Essas
coisa que o Freud explicaria com os pés nas costas  ―   o
Alves  buscou psicanalisar.
― ... E eu
acho melhor você apertar essa máscara preta nas suas fuças, e se
calar.  Mas que saco, Alves!... Deixa
o cara contar a história do casal de meia idade!  ― gritou o Juca,  batendo o punho fechado por entre os copos de
Skol. ― Vai, continua
Anacleto.
― Tá legal. O caso do Adão e da Eva não era coisa de fugir do leito matrimonial lá deles pra irrigar sofá de amantes. Era apenas o declínio da vontade de ambos que, curiosamente, atribuíam ao cônjuge. Não aguentavam mais, sequer, o som da voz dela e dele. Mesmo os gestos, por mais delicados que fossem, pareciam irritar. Aliás, o silêncio também irritava, tanto quanto a voz. As piadas dele, repetitivas, causavam uma raiva incontrolável da parte dela.
 Ela passava o dia ao celular e o olhar dele
fuzilava esse hábito.
O Anacleto desceu a máscara
decorada com o gavião da fiel corintiana, sorveu
um gole que parecia um perdido num deserto,  deu uma parada como quem
encara uma nova vida,  e
repôs sobre a cara o símbolo alvinegro de
uma das razões do seu existir.  E
continuou:
― Vocês se recordam melhor do
que eu.
 Nossos amigos,  o Adão e a Eva se casaram por amor, sim;  perdidamente apaixonados, até.  Nunca houve adultério.  Inexistiam vícios ou violência. ― O
Anacleto cerrou por frações de segundos o semblante,  antes de continuar. ―  Vocês se lembram quando o Adão disse aqui,  nesse mesmo lugarzinho do China:  "gente, tá havendo um desgaste do material".  ― É isso!  Nós podemos seguir com uma analogia.  De tanto rodar, mesmo
sem buracos ou acidentes, o "carro" lá deles, (como
os de nós),  por
tantos anos  de rodagem,  se desgastou;  começou a apresentar  barulhinhos iniciais, peças
corroídas e, por fim, pane
total!
―  É isso aí mesmo, Anacleto!  ― berrou o Mendonça,  batendo
palmas.  Para, em seguida,
mais serenamente,
complementar: ― Nossos amigos Adão e Eva irão se acertar.  Mandarão o carro lá deles (que está nas mesmas
condições dos nossos; a
gente não pode se esquecer disso!) ― para uma boa garibada na Oficina do Tião.
― É
bem assim, gente!...   Conscientes dos limites dos carros de meia
idade, seguiremos todos:  o
Adão e a Eva e nós, assim
como essa combalida humanidade vitalmente mascarada,  com o
mesmo ritmo e jeito, côncavos
para seus convexos.  Ou, menos
poeticamente:  
Uns chinelos meio velhos, para nossos pés com joanetes.
*LUIS LAGO  

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