sábado, 8 de outubro de 2022

O que ensinamos está próximo ou distante das necessidades do mercado?




 Autora: Maria Thereza Antunes (*)

A discussão sobre as melhores práticas metodológicas e de técnicas de ensino têm sido um tema recorrente no meio acadêmico, notadamente devido à influência da transformação digital que veio afetando todas as áreas da nossa sociedade, e mais efetivamente a área da educação, quando da pandemia.

Devemos continuar, sem dúvidas, com esse tema em pauta, procurando sempre acompanhar as mudanças tecnológicas e as demandas sociais e procurando por identificar a melhor forma de transmitir ao aluno o conhecimento.

Todavia, o que coloco em discussão nesse curto espaço é sobre o que estamos transmitindo em termos de conteúdo, pois, assim como a forma de transmissão é um componente importante no processo educacional, o conteúdo transmitindo também merece um olhar mais apurado para que esse processo seja exitoso.

Recentemente, em editorial da Revista de Contabilidade e Finanças, o Professor Reinaldo Guerreiro, da FEA - USP, que tive a honra de ser aluna e, posteriormente, colega de trabalho na FIPECAFI, com a clareza e o senso crítico que lhe são característicos, manifestou a sua preocupação, que compartilho, sobre a relevância para a sociedade das pesquisas que as universidade vêm desenvolvendo, especificamente na área das Ciências Contábeis.

A leitura desse editorial me estimulou a abordar o tema deste artigo, ampliando-o para a área de gestão - Administração e Contabilidade, cujas interfaces se dão, notadamente, pelo campo das finanças, avaliação de desempenho e da controladoria.

Assim, as questões que apresento são:

- O que os nossos alunos, futuros administradores e contadores, utilizam efetivamente dos conteúdos ministrados nas disciplinas que compõe a grade curricular de seus cursos de graduação em suas práticas profissionais diárias?

- Esses conteúdos estão em linha com as demandas das empresas?

- O que ensinamos em nossos cursos de graduação estão alinhados com as habilidades e conhecimentos requeridos para o bom desempenho da prática profissional?

Na literatura se verificam críticas recorrentes em relação ao distanciamento (gap) entre a academia e a prática profissional, críticas essas exaustivamente discutidas, tanto na literatura nacional como na internacional (Hopwood, 1983;Frezatti, 2005; Souza; Lisboa; Rocha, 2003; Avenier & Bartunek ,2010. Baldvinsdottir; Mitchell & Nørreklit, 2010; Tucker & Parker, 2014 ; Wood Jr. & Souza, 2019)

Interessante observar que Kieser e Leiner (2009), baseados em um relatório elaborado pela Fundação Ford em 1959, descreveram a educação em gestão como um conjunto de ensinamento de práticas comerciais sem uma sólida base científica. Ainda de acordo com esses autores, esse relatório provocou um movimento para inserir a ciência nas escolas de negócios e isso se desenvolveu com tal magnitude que, cerca de 30 anos depois, em outro relatório, Porter e McKibbin (1988) reclamavam que a educação fornecida pelas escolas de negócios era excessivamente especializada e não fornecia aos alunos a capacidade e os meios para solucionar os problemas complexos da prática profissional.

Desde então, esse distanciamento entre a academia e a prática profissional tornou-se uma preocupação relevante, que ainda perdura, para a ciência da gestão, conforme atesta a literatura já mencionada.

Importante ressaltar que a Contabilidade é, em sua essência, uma ciência voltada para a prática. Essa essência prática da Contabilidade já é evidenciada por Luca Pacioli ao iniciar a sua obra seminal Trattato de computi e delle scritture, com a seguinte frase: "Das coisas que são necessárias ao verdadeiro mercador e a ordem para saber escriturar um Razão com seu Diário em Veneza e também em qualquer outro lugar." (Pacioli, 1494/1911, p.3).

Essa construção do conhecimento contábil pelos práticos não se limita à contabilidade financeira, mas estende-se para contabilidade de custos, embrião da contabilidade gerencial (um dos elos com a Administração), que se desenvolveu a partir das demandas práticas, decorrentes da Revolução Industrial Inglesa, em meados do século XVIII. Essas demandas estavam relacionadas com a avaliação dos estoques de produtos em fase de fabricação, ao cálculo da depreciação dos ativos fixos das indústrias e, notadamente, a partir do início do Século XIX, com as necessidades práticas advindas da construção de estradas de ferro, então em franco desenvolvimento. Ainda no Século XIX, tem-se, também, o início da Administração Científica, marcada pelos estudos de Taylor, Fayol e Ford.

O tema que abordo aqui, ou seja o do distanciamento entre a academia e a prática, é conhecido na literatura por rigour relevance gap. Esse gap está relacionado à falta de alinhamento entre o conhecimento ensinado na academia e o conhecimento necessário para o exercício e aperfeiçoamento da prática profissional. Esse gap também se refere a pouca conexão entre a pesquisa acadêmica pautada no rigor científico e as necessidades dos profissionais da gestão, caracterizada por teorias e ferramentas aplicáveis na solução de problemas complexos que surgem no exercício da prática cotidiana.

Em termos de educação, Bennis e O’Toole (2008), por exemplo, observam que a grade curricular dos cursos de Administração é formada por disciplinas focadas no desenvolvimento de constructos e modelos abstratos baseados em cálculos estatísticos avançados, que têm pouca ou nenhuma aplicação prática, além de não se preocuparem em desenvolver em seus alunos as habilidades necessárias para o exercício profissional.

Essa visão é compartilhada por Coleman (2014) que, com base nos resultados empíricos de pesquisa realizada junto a administradores de fundos de investimentos, constatou que os modelos desenvolvidos pela Teoria das Finanças ensinada nas escolas de gestão, requerem cálculos avançados e estimativa de dados futuros, o que é incompatível com as exigências do exercício da prática profissional do dia a dia.

Embora já tenha decorrido um período de tempo considerável desde que esses estudos foram publicados, pode-se constatar, também por meio da literatura, que, embora alguma evolução tenha ocorrido, esse ainda é um problema a ser resolvido. (Sharma & Bansal, 2020; Costa, Machado & Câmara, 2022; Lukka & Wouters, 2022, Guerreiro, 2022).

Dentre as iniciativas que vêm sendo implementadas, com algum sucesso, na tentativa para reduzir esse distanciamento, merecem destaque o ensino dual no campo da educação e a abordagem do Engaged Scholarship (Van de Ven, 2010), no campo da pesquisa.

O modelo dual de educação é uma abordagem de ensino que integra a teoria e a prática relacionando o ensino em instituições de ensino superior com a formação prática em empresas (Oliveira & Souza, 2021). Nesse modelo, o aluno de graduação alterna períodos de aprendizagem na escola com períodos de aplicação prática dos conhecimentos adquiridos in situ, nas empresas parceiras.

Contudo, alguns autores, sustentam que esse problema do distanciamento entre a academia e a prática, principalmente no que se refere à pesquisa, é um problema que não tem solução e que procurar resolvê-lo é uma perda de tempo. Dentre esses, destacam-se Alfred Kieser e Lars Leiner. Em seus trabalhos (Kaiser & Leiner, 2009 e 2012), os autores, fundamentados na Teoria dos Sistemas Sociais de Luhmann (1995), argumentam que o sistema científico e o sistema da prática são sistemas fechados, autopoiéticos (autorreferenciados) e operam isolados um do outro.

O sistema científico gera teorias e metodologias que só são reconhecidas se estiverem baseadas em métodos cientificamente aprovados pela comunidade científica e constituem a autorreferência do sistema. Já as organizações, também são sistemas autopoiéticos e devem decidir o que observar no ambiente, como observá-lo e quais conclusões tirar de suas observações. Ao tomar decisões, os gestores referem-se a decisões anteriores, seu estilo de decisão geralmente não é reflexivo e suas ações são baseadas em modelos subjetivos que contêm princípios que refletem sua experiência. Eles não consideram a tomada de decisão intuitiva inferior à tomada de decisão racional científica. (Kaiser & Leiner, 2009).

Todavia, da mesma forma que Mascarenhas, Zambaldi & Moraes, (2011), aceitar tais argumentos não seria uma forma de limitar a nossa forma de fazer ciência e nossa atuação como educadores?

Não seria melhor seguirmos as ideias de Baldvinsdottir, Mitchell e Nørreklit (2010), compreendendo que o objetivo final da pesquisa é o de melhorar a vida, ao invés apenas de descrevê-la ou entendê-la e, da mesma forma, em linha com Oliveira e Souza, (2021), ir às empresas entender as suas necessidades para preparar nossos alunos com a prática fundamentada por teorias aplicáveis?

Isso posto...meus agradecimentos ao Professor Reinaldo Guerreiro, por me estimular a compartilhar com vocês, antecipadamente, a minha inquietação de pesquisa já em curso.

Retorno em breve contando os resultados.

Referências:

Avenier, M.J. & Parmentier C. A. (2012). The Dialogical Model: Developing Academic Knowledge for and from Practice. European Management Review. 9, 199 – 212;

Baldvinsdottir, G., Mitchell, F., & Nørreklit, H. (2010). Issues in the relationship between theory and practice in management accounting. Management Accounting Research, 21, 79 – 82;

Bennis, W. & O’Toole, J.(2005) How business schools lost their way. Harvard Business Review, 83(5), 96 – 115;

Costa, F. J. da, Machado, M. A. V., & Câmara, S. F. (2022). Por uma orientação ao impacto societal da pós-graduação em administração no Brasil. Cadernos EBAPE.BR.https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/cadernosebape/article/view/85549;

Frezatti, F. (2005). Management accounting profile of firms located in Brazil: a field study. Revista de Administração Contemporânea, 9(2), 147 – p 165;

Guerreiro, R. (2022) Algumas reflexões sobre a relevância da pesquisa contábil para a sociedade. Revista de Contabilidade & Finanças. FEA/USP, São Paulo, v. 33, n. 90, e9040;

Hopwood, A. G.(1983) On trying to study accounting in the contexts in which it operates. Accounting. Organizations and Society,(2-3), 287 – 305;

Kieser, A. & Leiner, L. (2009). Why the Rigour–Relevance Gap in management research is unbridgeable. Journal of Management Studies. 46(3), 516 – 533;

___________________(2012). Collaborate with practitioners: but beware of collaborative research. Journal of Management Inquiry. 21(1) 14 – 28;

Lukka, K. & Wouters, M. (2022). Towards interventionist research with theoretical ambition. Management Accounting Research,55, 1 – 15;

Oliveira, L. C. & Souza, A. A. (2021). As possíveis contribuições do modelo dual de educação para o ensino superior de contabilidade. Revista Valore, Volta Redonda, 6 (Edição especial), 41 – 61;

Pacioli, L. (1494 / 1911) Trattato de computi e delle scritture. In: Opere Antiche de Rigioneria (1911). Milano: Monitore del ragionier;

Porter, L. and McKibbin, L. (1988). Management Education and Development: Drift or Thrust Into the 21st Century? New York: McGraw-Hil;

Sharma, G., & Bansal, P. (2020). Cocreating rigorous and relevant knowledge. Academy of Management Journal, 63(2), 386 – 410;

Souza, M. A. ; Lisboa, L. P. & Rocha, W. (2003). Práticas de contabilidade gerencial adotadas por subsidiárias brasileiras de empresas multinacionais. Revista Contabilidade e Finanças, 32, 40 – 57;

Tucker, B. & Parker, L. (2019) The question of research relevance: a university management perspective. Accounting, Auditing and Accountability Journal, 33(6),1247 – 1275;

Van de Ven, A. H. (2010). Engaged Scholarship – A guide for organizational and social research. New York: Oxford University Press; e

Wood Jr., T., & Souza, R. J. (2019). Os caminhos da pesquisa científica em administração em busca da relevância perdida. Organizações & Sociedade, 26(90), 535 – 555.

*MARIA THEREZA POMPA ANTUNES

























Graduação em Administração pela PUC/RJ (1984), com Especialização em Finanças pelo IAG/PUC/RJ (1985), e em Ciências Contábeis pela FEA/USP (2002);

Mestre (1999) e Doutora (2004) em Ciências Contábeis pela FEA/USP, com 23 anos de experiência na área da educação atuando como docente, pesquisadora e gestora;

Pesquisadora líder de projetos de pesquisa com fomento do CNPq e da CAPES, tendo participado de diversos congressos científicos nacionais e internacionais;

Autora de livros e artigos científicos publicados em periódicos indexados, nacionais e internacionais;

Membro de Conselho Editorial de periódicos nacionais e internacionais;

Parecerista e Palestrante com experiência internacional;. Membro da Comissão Científico e Acadêmico do Conselho Regional de Contabilidade de São Paulo (CRC/SP); e

Sócia gerente da Findings Consultoria Ltda, especializada em gestão educacional e perícia contábil.

E-mail: teantunes@uol.com.br

WhatsApp: (11)-98338-4343

Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/6278852648499064


Nota do Editor:

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2 comentários:

  1. amei o artigo, parabéns Prof!

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  2. Bom dia a todos! O Artigo trata de tema de relevância social. Acrescento que essas inquietações e constatações devem ser contempladas a partir do Ensino Médio concomitante já ao Técnico. Profa Marina Franco

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