domingo, 2 de outubro de 2022

As Três Ilhas


 Autora: Renata de Masi(*)





Esse texto nasceu de uma analogia montada (criatividade clínica diária) em minha vivência como Psicanalista em que muitos pacientes se debatem com o inconformismo de suas famílias e amigos recusarem-se a fazer análise, por não haver conversas reflexivas, os sentimentos de incompatibilidade de mundo e a dor de ainda amar aquelas pessoas, o sumiço do campo de intimidade e o que se conhece uns dos outros vira "arma" para ataque, distorções das falas no mesmo momento que, para os pacientes, a questão é apenas que estes familiares e amigos não conhecem as consequências ruins de suas escolhas, escolhas por não refletirem.

Reflexões sobre o princípio de realidade e o princípio de prazer, reflexões sobre dependências emocionais, importância dos estudos ou partes importantes sobre política para além da problemática financeira. Reflexões sobre as quebras de alianças familiares com seus sintomas improdutivos. Críticas sobre crenças familiares para poder escolher novas.

Na busca para crescer emocionalmente e deixar de falar sobre o "creme dental apertado no meio" ou a problemática da "toalha molhada na cama" e entender o simbólico dessas coisas, a sensação é que se criam idiomas diferentes trazendo uma problemática de comunicação.

Enfim, acompanhando casos e mais casos que a analogia das Três Ilhas foi criada. Para efeito de compreensão das "ilhas", apresento as seguintes divisões:

  • Ilha dos Vendados – pessoas que tateiam a vida, vivem sem questionamentos, de maneira infantil, preconceituosas, colocando-se intolerantes frente a situações podendo tornar-se injustas, repetem sem desejar conteúdos inconscientes, têm medo de trabalhar traumas, fogem da responsabilização, são covardes para renunciar ganhos imediatos, mantem moral distorcida pela necessidade de sobrevivência, sua escala de valor é mediada pelos acontecimentos e não pela reflexão, têm confusões nas interpretações dos discursos, dependência emocional, ações estilhaçadas sem organização ou planejamento da vida, sentem-se facilmente invadidas e desperdiçam a inteligência;
  • Ilha dos Desvendados – pessoas que procuram ajuda de pensadores em diferentes áreas, entendendo que compartilhar conhecimento as fazem crescer, responsabilizam-se até mesmo do que vão fazer do que fizeram delas, sua justiça é estruturada no respeito aos direitos do outro, a construção das leis é dentro de uma moral revisitada, sua escala de valor inclui os afetos e procura a coerência nos seus discursos de mundo interno analisado; e
  • Ilha dos Fura-Olhos – pessoas com preocupação nos próprios ganhos, apresentam um campo narcísico exacerbado na tentativa de serem os primeiros, a lei é construída conforme seus interesses, seus conhecimentos são usados para servi-las egoisticamente, tentam enganar o outro em nome de seus desejos, seus valores são invertidos, não se responsabilizam pelas ações buscando sempre um culpado externo, os afetos ficam localizados somente nas pessoas que os representam, não há uma ponderação entre a dor delas e do outro e a inteligência é investida em benefício próprio em detrimento ao outro.
A partir do entendimento das "ilhas", é possível compreender facilmente os atritos, divergências, problemas de relacionamento e separações existentes a nossa volta, trazendo uma complexidade na intersecção entre elas. Quando há o encontro delas, mesmo nos pequenos convívios sociais, os desgastes ocorrem e temos o complicador da incompatibilidade nos levando a escolha entre ficarmos calados nos assuntos abordados ou investir libido nas discussões, na esperança de que alguns possam sentir o desejo de tirar as vendas, mas com isso, corremos o risco de "ataques". Independente da escolha que se faça, ficar calado ou discutir, os Desvendados podem ser considerados arrogantes pois, sabemos que há muita angústia na queda das vendas. E quando isso não acontece, nos questionamos do porquê as pessoas fazem escolhas que, ao nosso ver, são uma "grande furada".

Com um percurso educacional aliado à análise inicia-se, então, a decisão de criar coragem para conhecer a ilha dos Desvendados. Este percurso é uma forma de desvendar nossas questões inconscientes que atropelam o que eu gostaria de fazer. Afinal, existo onde não penso. Conhecer as renúncias, o preço a se pagar, suportar os ataques pela escolha de retirar a venda. Durante um tempo há uma briga interna em que se discute o motivo: enxergar é melhor do que "tatear" na vida? Até porque, a ilha dos Desvendados é uma ilha mais "vazia" e vive-se um luto na despedida.

Estar em uma ilha que não nos representa mais pode ser bem solitário. Assim, nos vemos compelidos a recomeçar a formação de novos grupos que nos representem na ilha dos Desvendados, o que demanda muito trabalho e paciência na conquista de intimidade e história.

Uma questão ainda mais entristecedora é o grande luto quando nos deparamos com amar alguém que pertence a ilha dos Fura-olhos. Durante um tempo do luto ficamos em negação; mais fácil pensar que eles pertencem a ilha dos Vendados e as coisas que quebraram foram por cegueira. A partir daí, começa uma briga interna do amor versus a justiça.

Percebe-se, então, que remar para a ilha dos Desvendados não é tarefa fácil; para chegar nela, será necessário atravessar "águas por vezes turbulentas". Demanda a construção da própria coragem para conhecê-la. Durante um tempo, colocamos e tiramos a venda, atravessando de um lado para outro das ilhas, tempo esse que requer muita energia. E fica a certeza de que não conseguimos mais retornar para a ilha de onde viemos. Ao fim do percurso de mudança definitiva para a ilha dos Desvendados, conquista-se segurança, independência, individualização, admiração do outro perante nós, entendimento sobre as fantasias e a realidade, compreensão de que correções não são invasões, um verdadeiro encontro de si com responsabilização própria pois, compreende-se que tudo sempre se tratou de nós mesmos e a forte autocobrança do percurso de maturidade.

*RENATA DE MASI
















-Psicóloga e Psicanalista com atendimento a crianças e adultos em consultório particular em Santo André/SP;
-Psicóloga graduada na UniABC (2011);
-Pós em Psicopedagogia pela UniABC(2012);
-Supervisora clínica;
-Coordenadora do Espaço Rêverie
-Coordenadora do ILPC ABC
E-mail: reverieespaco@yahoo.com
Tel/WhatsApp: (11) 9.8487.6907

Nota do Editor:

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