segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

O Delírio de Pierre Ricardo


 Autor: Genildo Fonseca (*)

Este caso ocorreu em 1969, um ano bem conturbado, cheio de contradições, marcado pela repressão violenta,  censura, tortura,  emboscadas, desaparecimentos, exílios, mortes e uma  nova Carta Constitucional que mantinha o AI 5.

O surgimento de grupos militantes da esquerda atuando na clandestinidade.

O milagre econômico com grande desigualdade social e expressivo aumento da dívida externa.

 A Música

Os Beatles sobem ao palco pela última vez e Neil Armstrong dá o "grande salto da humanidade" ao pisar na Lua, como Comandante da Apolo XI.

Jovens descontentes com os padrões culturais da época lutam por liberdade e paz.

O Festival de Woodstock, o Tropicalismo e o Cinema Novo simbolizam ruptura e uma revolução estética no final daquela década.

As músicas mais tocadas eram: "As Curvas da Estrada de Santos", "Aquele Abraço", "Hoje", "Aquarius" e "País Tropical"

Estava no quarto ano da Faculdade e morava no " Ninho das Águias", como era conhecida a " Casa do Estudante", na Avenida São João, 2044.

Tranquei matrícula, retornei em 71 e tive o prazer de me formar com a Turma de 72.

Foi neste contexto que comecei a trabalhar profissionalmente com Toninho Pensamento, o Antônio Marcos que viria a ser um ídolo dos anos 70.

Éramos vizinhos em São Miguel, fizemos o ginasial juntos, moramos na Baixada do Glicério numa quitinete com mais três amigos e fomos despejados por falta de pagamento.

Então ele passou a ocupar também a Casa do Estudante, fazendo uma oportuna companhia para os boêmios ali residentes.

Cantor romântico, bom compositor, tinha acabado de gravar em seu primeiro compacto simples pela RCA as músicas "Perdi Você" e "A estória de alguém que amou uma flor". Participava do programa Sílvio Santos: " Os Galãs cantam e dançam".

Ao mesmo tempo, seu irmão Mário Marcos substitui o Gilberto no Grupo Vocal " Os Caçulas", formado por Yara, Verinha e Alvinho, que tinham feito sucesso com a música " A Chuva que Cai" no ano anterior e agora recebiam Marinho para o lançamento do LP "Pra Você".

O Sonho

O aparecimento de novos astros no cenário da música brasileira atraiu a atenção de Pierre Ricardo: jovem brasileiro, formado em jornalismo que viajou aos Estados Unidos para completar o curso de roteirista de cinema.

Voltava ao Brasil com a missão de descobrir novos talentos para a produção de um filme sobre a música na América Latina.

Muito emocionante receber naquele momento de ascensão da carreira de Antônio Marcos e dos Caçulas um convite desta magnitude.

Vários encontros tivemos com o elegante e discreto cineasta.

Falava pouco, de forma pausada, às vezes se esquecia de algumas palavras, provavelmente por morar há muito tempo fora do Brasil.

Também não nos atrevíamos a arriscar nosso fraco inglês com ele.

Apesar do pouco dinheiro, nunca deixamos que ele pagasse a conta mesmo em jantares que eram caros pra gente.

Lembro que uma vez fomos ao Bar Brahma.

Quando ele se dispôs a ir até São Miguel conhecer a família, D Eunice, a mãe do Toninho, preparou uma deliciosa comida mineira.

Na sequência, ele fez questão que escolhêssemos as melhores grifes da Cidade para seleção dos figurinos.

O Minelli na Rua 24 de maio ficou com as roupas masculinas e teve que recortar ternos para o Marinho e Alvinho, adolescentes com medidas fora do padrão.

Yara e Verinha tiveram um atendimento muito especial na Loja Vogue da Paulista.

Fecharam as portas por dois dias para a prova das roupas que seriam usadas em 2 estações do ano

Ele também se encontrou com outro galã, Djalma Lúcio.

Pierre já tinha um roteiro pronto e o filme começaria com uma flor trazida na aurora pelas águas do mar.

A mão de um mulher recolhe a flor e começa a música " A estória de alguém que amou uma flor".

Passamos com ele no City Bank pra ver o câmbio, acertamos com o Despachante Celestino a emissão dos passaportes e passamos no Aeroporto de Congonhas, onde ele foi chamado pelo alto-falante pra providenciar as vacinas.

Entrevistas pra rádios, TV e publicação na Revista Intervalo destacavam a notícia internacional

Foram 2 meses de preparação.

Como demorava o contrato, eu e Eduardo, empresário dos Caçulas, começamos a nos preocupar e olhar com mais rigor os passos do Pierre.

Minha namorada Marilu, também achava que tinha alguma coisa fora da ordem.

O sonho acabou

Numa tarde chuvosa e cinzenta, resolvemos acompanhar o nosso personagem até sua casa na Vila Mariana.

Próximos de sua casa, ele desceu do táxi que estava à nossa frente e procurou fugir

Corremos atrás dele, descemos por um corredor, entramos pelos fundos na feroz perseguição ao agora delinquente.

Nossa credibilidade estava em jogo.

O desespero era  grande, tínhamos que saber a verdade.

O bairro estava sem luz.

Quando entramos na sala, Pierre abriu a última gaveta de uma cômoda.

Pensei que ele fosse sacar uma arma.

Pegou a vela e acendeu.

Aí aparece sua mãe e pergunta:

"O que houve, meu filho?"

Expliquei os problemas que ele causou e ela então explicou tudo:

"O Oriovaldo sempre foi apaixonado por cinema.

Sonhava morar em Los Angeles

Coleciona várias revistas americanas.

Quando serviu a Aeronáutica, sofreu um acidente e às vezes esquece das palavras".

Peguei a identidade dele, exigi que fosse comigo até o Minelli onde eu teria que justificar os fatos.

Fiquei com muita raiva e pena, um sentimento confuso de culpa e ansiedade.

Entendendo o desequilíbrio psicológico do Oriovaldo, o Pierre, fiz o relato da situação e pedi prazo pra resolver a pendência.

Esse foi o primeiro cano, um grande golpe, cercado de sonhos e romantismo na carreira artística.

Lembro da tristeza de todos, que não queriam acreditar na história real, o Delírio de Pierre Ricardo.

Apesar dos cuidados nos futuros negócios, surgiram outros Pierres com histórias e promessas que mostram nosso poder de atração e vulnerabilidade.

Trechos da música " A Chuva que cai" trazem  um pouco deste mundo em que vivemos:

" Nesse mundo cheio

De dinheiro e ambição

Tenho andado procurando uma ilusão

Num lugar que é bem tristonho

Percebi que a esperança é um sonho"

*GENILDO FONSECA












-Advogado graduado pela Faculdade de Direito da USP(1972) e produtor musical;

- Diretor da Circuito Musical

-Empresário artístico de Toquinho

Nota do Editor:

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