segunda-feira, 5 de junho de 2023

Há simbiose entre a vida líquida e o neoliberalismo?


 Autor: Haroldo da Silva (*)


Vive-se tempos complexos. Tudo muda, ao tempo todo. Se os produtos têm em si uma elevada taxa de obsolescência, as relações humanas também têm. As inovações, no sentido schumpeteriano, são transformadoras, mas deixam um rastro de destruição por onde passam. Atualmente, a inteligência artificial (IA) tem sido usada para aumentar a produtividade das empresas e das pessoas, com muito sucesso. Contudo, empregos e empresas estão ameaçados. Nenhum de nós tem certeza de que suas habilidades não podem ser superadas – com ganhos efetivos – por IA.

Esse cenário tem implicações profundas na economia, em particular, e nas relações sociais, como um todo. Nesse sentido, o objetivo desse artigo é trazer à luz reflexões sobre conceitos que permeiam a vida das pessoas, mas que são pouco explorados para além dos muros da academia. No limite, a finalidade desse trabalho é fazer surgir a curiosidade das leitoras (es) para que elas (es) se – caso fiquem curiosas (os) – possam buscar mais informações. Nesse sentido, leituras complementares podem ser observadas nas referências. Com esse intento, duas seções e as considerações foram construídas.

Conceitos e Provocações


A simbiose é uma interação biológica de longo prazo. Nessa relação, os organismos têm benefícios mútuos, em sua versão denominada mutualismo. Se um dos organismos é beneficiado e o outro não é prejudicado, embora não obtenha ganhos, denomina-se o comensalismo. Contudo, no parasitismo, apenas um se beneficia, às custas do outro. Essas relações podem ganhar elevados graus de complexidade. Contudo, qual a relação da biologia e das ciências sociais, como a economia? Niklas Luhmann, por exemplo, recorreu ao conceito de autopoiésis, de inspiração na biologia, para formular a sua teoria geral dos sistemas e que pode ser bastante útil para compreender a dinâmica da representação de interesses comuns e dissonantes, ao mesmo tempo.

Nessa perspectiva, os sistemas se produzem, reproduzem, reparam, adaptam, sem perder sua identidade. Assim é o capitalismo em sua versão neoliberal. Em breves palavras, o neoliberalismo é uma corrente do pensamento econômico [e político], com características reacionárias, que defende a supremacia do livre mercado, frente a qualquer intervenção [econômica, sobretudo] por parte do Estado. É também uma questão ideológica bem formulada, sofisticada e repleta de adeptos, cuja disseminação deu-se desde a década de 1980 e forjou o pensamento dominante na política econômica mundial.

Essa visão de mundo em constante construção, cuja principal característica é a efemeridade de tudo, vale recorrer ao conceito de liquidez. Preliminarmente, vale refletir sobre a própria originalidade do conceito de liquidez, que permeia a maior parte da obra de Bauman. Tales de Mileto (625-547 a.C.) teria identificado o elemento água em sua doutrina como o princípio de todas as coisas. Essa teoria fora capaz de ter influenciado a conceituação da "liquidez" dos dias atuais? É provável.

Sem adentrar nessa seara, dadas as limitações objetivas de escopo em um trabalho de graduação de curso, há um potencial enorme para transformações [e disputas] nessa nova sociedade que Bauman chama de "sociedade líquido-moderna". Instabilidade é a resultante. Perturbador, Bauman definiu a Vida Líquida contemporânea:
Em suma: a vida líquida é uma vida precária, vivida em condições de incerteza constante. [...] A vida líquida é uma sucessão de reinícios, e precisamente por isso é que os finais rápidos e indolores, sem os quais reiniciar seria inimaginável, tendem a ser os momentos mais desafiadores e as dores de cabeça mais inquietantes. Entre as artes da vida líquido moderna e as habilidades necessárias para praticá-las, livrar-se das coisas tem prioridade sobre adquiri-las. (Grifos nossos).

Hoje, qualquer um pode ser denunciado como um "criminoso do pensamento", ao teclar, postar ou mesmo curtir uma publicação nas redes sociais. A IA está por toda a parte. Fenômenos complexos, normalmente, não têm explicação simples, que dirá soluções singelas. Impossível resumir. Sintetizar ou qualquer outro termo que se use, serviria apenas para discorrer sobre um emaranhado de acontecimentos – no caso de Bauman, por ele organizados – em curso ou mesmo em gestação que, fundidos, formam o que o autor nomeou de Vida Líquida.

Transdisciplinaridade e os Fenômenos Sociais

Parece sociologia, direito, mas é economia, como são os dois primeiros ramos das ciências sociais, umbilicalmente ligados. Dito de outro modo, na atualidade, a complexidade das relações sociais exige visões múltiplas, um olhar holístico, para a real compreensão dos fenômenos. Diante desse prisma, a análise resultante da obra de referência trouxe alguns vetores que, sobrepostos, dão a dimensão do que é a Vida Líquida. Sem a intenção de apresentar qualquer escala hierárquica entre esses elementos, tampouco esgotá-los, eles foram dispostos na seguinte forma:

1. Consumo desenfreado – para alimentar e conservar viva a promessa de satisfação, é indispensável que o desejo se mantenha irrealizado. Nessa sociedade, toda e qualquer tentativa de autorrealização (busca existencial), aspiração de dignidade, de autoestima e de felicidade, enfim, "exige a mediação do mercado". Pragmaticamente, os atos de consumo devem durar apenas até se concretizarem, nada mais do que isso. O desejo realizado cria outro desejo, imediatamente;

2. Economia – nesse modelo, há a produção de "indesejados", aqueles alijados da vida para consumo. Ganhos momentâneos levam às "baixas colaterais" [danos colaterais também] e as dimensões sociais desses eventos sequer terão importância em relação aos cálculos de custo-benefício;

3. Efemeridade/Obsolescência – os departamentos de marketing e essa própria “arte” tem por finalidade impedir a limitação das opções e a realização dos desejos, criando outros novos imediatamente, ao passo que o anterior tenha sido atendido. Importante limpar a gaveta com os "antigos – de um minuto atrás", de forma a permitir que o “terreno” fique propício para novas [e urgentes] incursões ao shopping. De acordo com o filósofo, recentemente morto, sequer o próprio conhecimento passa incólume, in verbis: "Em outras palavras, o impetuoso crescimento do novo conhecimento e o não menos rápido envelhecimento do conhecimento prévio se combinam para produzir ignorância humana em grande escala e para reabastecer continuamente, talvez até ampliar, o estoque disponível";

4. Individualidade – na Vida Líquida esse não é um elemento disponível a todos. Parcela significativa dos membros dessa sociedade, na prática, não tem livre escolha. A individualidade é desejo, não realidade, fundamentalmente para a maioria da população. Esses homens e mulheres estão em desvantagem, pois há uma disputa em curso e nessa "corrida" não há intervalo. Os mais abastados conseguem, por outro lado, a sua "singularidade". Muitos querem ser celebridade, que Bauman, com tautologia proposital, define como alguém que é conhecido por sua característica de ser bem conhecido. Isto é, ensimesmado. Em realidade, a individualidade nos dias atuais – para quem consegue exercê-la – está mais relacionada ao solipsismo do que individualidade, de fato;

5. Indústria do medo – preocupação (e fonte de lucros) dos planejadores urbanos, a insegurança alimenta o medo. Receio da “gordura”, que apavora a maioria dos americanos [e também os brasileiros mais recentemente], levados pelas forças ávidas por lucrar com o anseio de mitigar o temor. Eis aqui que surgem oportunidades até mesmo para os advogados que, sôfregos, buscam travar batalhas judiciais com a indústria, por exemplo, do fumo e do fast-food; e

6. Lixo – nessa forma de organização social, a remoção do lixo é fato relevante. O bem-estar e os sinais exteriores de triunfo social dos seus membros estão correlacionados à rapidez com que se abarrota o depósito de detritos e a remoção passou a ser a métrica de real eficiência.

Considerações

Cara leitora (or), você se identificou com alguma dessas situações acima? Provavelmente! Em suma, para Bauman: a Vida Líquida construída para ser, em verdade, instável, faz com que se constitua, cada vez mais comum, o fato de que seus membros [os inseridos] considerem-se "em casa" em muitos lugares, mas em nenhum deles especificamente. Vive-se numa incessante marcha adiante.

Nesse ambiente, como dito anteriormente, a "taxa de obsolescência" de pessoas, coisas e conceitos é propositadamente acelerada e o lixo reflete o sucesso ou o insucesso do grupo [ou do indivíduo perante o grupo.]A busca incansável pela exclusividade faz com que as empresas discutam a produção do lote de "uma" peça, antagonicamente, num processo de fabricação em massa, de forma a manter a economia funcionando, mesmo que brutalmente, ineficaz, do ponto de vista da produtividade. Numa verdadeira destruição não criadora [a não ser de rejeitos e de rejeitados], o desperdício e a injustiça [e porque não dizer a própria Insegurança Jurídica] ganham dimensões planetárias.

A vida líquida é fruto e, ao mesmo tempo, combustível para o neoliberalismo. A velocidade com que tudo se transforma coloca, cada vez mais, peso sobre o indivíduo que passa a ser o único responsável pelo seu sucesso, ou insucesso. Nessa toada, mesmo sociedades ricas têm experimentado o aumento brutal das desigualdades sociais. O que dizer dos países periféricos, como o Brasil?

Finalmente, fica aqui uma sugestão para aquelas (es) que tiveram a paciência de chegar até aqui. Que tal assistir alguns filmes que mostrem essa correlação entre a vida liquida e o neoliberalismo. Não vou sugerir filme, mas um diretor que, aos seus 86 anos, como poucos, compreendeu essa simbiose: Ken Loach. Suas duas últimas obras são ótimas para derrubar a mitologia do sucesso do self-made man.

Referências

RODRIGUES, Léo Peixoto; RODRIGUES, Fabrício Monteiro Neves. A sociologia de Niklas Luhmann. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017; e

BAUMAN, Zygmunt. Vida líquida. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 2007.


*HAROLDO DA SILVA











- Graduação em Economia  pela UNIB (1999);

-Mestre em Desenvolvimento Econômico pela UFPR (2002);

-Doutorando em Ciências Políticas (PUC-SP); e

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