domingo, 23 de julho de 2023

Uma loucura para chamar de minha


 Autor: Fábio Rezende(*)



"A loucura, objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente."

(Machado de Assis, em "O alienista", p. 32)


"Dizei, por Júpiter, que hora da vida não seria triste, difícil, feia, insípida, tediosa, sem o prazer, ou seja, sem um pouquinho de loucura?"

(Erasmo de Rotterdam, em "Elogio da Loucura", p. 21)


 1. RAZÃO E DESRAZÃO

         

A perspectiva da loucura dialoga com a noção de normalidade. É impossível dizer, minimamente, quem é "o louco" sem considerar quem é "normal".  Aqui, começa nosso problema: não em determinar o que seja a loucura, visto que cada época a descreveu com seus termos, mas para definirmos o que podemos chamar de normal. Em "O normal e o patológico" (CANGUILHEM, 1943), nos dá pistas da complexidade de demarcar o conceito e interroga: "seria o estado patológico apenas uma modificação quantitativa do estado normal?" (p. 09), o que nos abre a questão: os sintomas estão presentes em todos e variam em grau naqueles que são caracterizados como doentes?

A obra "História da loucura na Idade clássica" (FOUCAULT, 1961), é incontornável para se falar das concepções históricas, políticas e subjetivas da loucura e, portanto, da normalidade. É necessário lançar mão do método dialético para dizermos alguma coisa a respeito do que seja o louco em relação à norma de cada época. Assim, houve períodos em que o louco estava mais associado com a figura do sábio, do oráculo, daquele que vive entre dois mundos e transita entre realidades distintas, podendo ser consultado a respeito do passado e do futuro, por exemplo. Em outros momentos da história, o fenômeno foi visto como blasfêmia, na terminologia religiosa, sobretudo a cristã; transgressão, especialmente durante regimes totalitários; crime, quando das transformações do direito moderno; desvio ou doença, na lógica médica, tão marcada desde o século XIX.

Em 1509, como um prenúncio do que seria a Modernidade, com Erasmo de Rotterdam, na obra "Elogio da Loucura", temos uma espécie de apaziguamento e mesmo alguma apologia à loucura como uma necessidade adaptativa exigida por um mundo insano:
"...se... pudéssemos contemplar do alto os homens em sua interminável agitação, acreditaríamos ver um enxame de moscas e de mosquitos em combate recíproco, procurando ferir-se, instalar armadilhas, roubar-se uns aos outros, brincar, saltar, nascer, cair e morrer. É difícil acreditar que terremotos e tragedias pode provocar um animalzinho tão insignificante e destinado a tão breve vida. De fato, de quando em quando, uma onda de guerras e epidemias, mesmo não sendo das maiores, atinge e destrói milhares e milhares deles." (p. 70).

Paradigma dessa dificuldade em estabelecer a fronteira entre razão e desrazão é o caso do Dr. Simão Bacamarte, no texto "O alienista" (DE ASSIS, 1882). Simão, ao internar todos os habitantes de Itaguaí, diagnosticando cada um com algum transtorno, finda por estar sozinho ao lado de fora do manicômio, o que nos coloca a pergunta: eram loucos aqueles que foram internados ou o Dr. Simão Bacamarte, apenas?

Outra análise que se pode fazer do adoecimento psíquico é colocando-o não somente como um problema individual, mas estabelecendo uma relação entre sua forma e as relações sociais daquele que manifesta o sofrimento. Suspeita levantada em "Manicômios, prisões e conventos" (GOFFMAN, 1987):

"O último passo na carreira do pré-paciente pode incluir a compreensão – justificada ou não – de que foi abandonado pela sociedade e perdeu as relações com os que estavam mais próximos dele." (p. 125).

Em outro sentido, pode-se associar a distinção entre norma e desvio em termos de violência, como assinalado em "Psiquiatria e antipsiquiatria" (COOPER, 1989):

"Se se quer falar de violência em psiquiatria, a violência que brada, que se proclama em tão alta voz que raramente é ouvida, é a sutil, tortuosa violência perpetrada pelos outros, pelos ‘sadios’, contra os rotulados de loucos. Na medida em que a psiquiatria representa os interesses ou pretensos interesses dos sadios, podemos descobrir que, de fato, a violência em psiquiatria é preeminentemente a violência da psiquiatria." (p. 31).

 

2. UMA NOÇÃO DE SAÚDE MENTAL

 

Falar em saúde mental requer, antes de um saber, um "saber não saber"; um desaprender que ensina, na prática, que cada caso é um e que, ao mesmo tempo, um caso não é uma ilha isolada em si mesma, mas um efeito da cultura, da política e de uma época. Aqui o determinismo pode ser suspenso. As leis de causa e efeito não se aplicam em sua plenitude porque sempre está presente o imponderável da experiência, o elemento surpresa e mesmo o absurdo. Deste modo, é impossível, em termos de sofrimento psíquico, afirmar, como numa fórmula de Excel que, "se... então...". Apesar disso, de maneira geral, há indicativos de que fatores contribuem para o sofrimento psíquico: alimentação desordenada, fragilidade dos laços sociais, ausência de atividade física regular, consumo excessivo de substâncias psicoativas, sono de baixa qualidade, entre outros. A respeito de uma modalidade de sofrimento específica, a depressão, (KEHL, 2010), em "O tempo e o cão: uma atualidade das depressões", argumenta que "é razoável supor uma relação entre o aumento dos casos de depressão e a urgência que a vida social imprime à experiência subjetiva do tempo. (p. 116)". Demandas, prazos curtos, metas inatingíveis, padrões de desempenho, beleza e poder, tudo isso compõe o pano de fundo de um ambiente propício para o adoecimento, o que a pós-modernidade talvez ainda não tenha percebido ou, se percebeu, faz uso e lucra com isso. 

O "Manual diagnóstico de transtornos mentais" (DSM-5), constitui um avanço no campo psiquiátrico, mas deve-se considerar que ele funciona em "estrutura de checklist", como diz Nelson da Silva Jr ("Sintomas Sociais e Racionalidade Diagnóstica", CPFL, 2016), e não se ocupa com a etiologia, as causas dos quadros clínicos, apenas com a descrição de sintomas, de modo que, lê-lo acriticamente faz quase qualquer pessoa se identificar com algum sintoma. Eis uma questão importante: a identificação com um transtorno configura, em si, um sintoma difícil de ser debelado, na medida em que o sujeito passa a se localizar no mundo e falar de si a partir de sua "doença", o que o faz sofrer, mas paradoxalmente, lhe dá um lugar, lhe define minimamente e lhe aplaca a angústia, este afeto em estado bruto, que não mente e que não tem objeto. Assim, ao nomear o sofrimento a partir de um quadro clínico delimitado, temos a impressão de que a angústia se abranda, na medida em que deixamos a posição de não saber.

Em nossa época, o sofrimento ainda é encarado como um problema moral, ou seja, sobre aquele que sofre, de uma depressão ou ansiedade, por exemplo, há um fantasma a mais: de que a culpa é sua, de que fracassou ou fez algo errado e que aquilo é a "punição para seu crime" ou, pior, "o preço de seu pecado". Contribui para isso o imperativo do "sujeito de desempenho" denunciado em "Sociedade do cansaço" (HAN, 2017). Ultrapassamos a época do "sujeito da obediência" da "“sociedade disciplinar" defendido por Foucault (1975), em "Vigiar e punir", e vivemos o tempo do sujeito de desempenho, na medida em que passamos a ser os carrascos de nós mesmos, exigindo-nos cada vez mais performances e resultados enquanto metrificamos a vida e a empregamos como um meio para realizar certos objetivos e não como um "fim nela mesma" (KRENAK, 2020). Ora, isso faz com que a dor seja um problema à nossa produtividade, o que torna a medicalização um aditivo para que nos anestesiemos e continuemos no ritmo do mercado, fazendo e fazendo, produzindo e produzindo.

Nos diz Han (2021), em "Sociedade paliativa: a dor hoje":

"O sujeito de desempenho comete violência consigo próprio. Ele explora a si mesmo voluntariamente, até que ele desmorone. O servo tira o chicote da mão do senhor e chicoteia a si próprio para se tornar senhor, sim, para ser livre. O sujeito de desempenho está em guerra consigo mesmo." (p. 57-58).

Ailton Krenak (2019), em "Ideias para adiar o fim do mundo", nos diz, com sabedoria, contra um modo de vida dedicado ao consumo e à coisificação dos afetos e das pessoas, que devemos: 

"Gozar sem nenhum objetivo. Mamar sem medo, sem culpa, sem nenhum objetivo. Nós vivemos num mundo em que você tem de explicar por que é que está mamando. Ele se transformou numa fábrica de consumir inocência e deve ser potencializado cada vez mais para não deixar nenhum lugar habitado por ela." (p. 64-65).

A pessoa em sofrimento, então, carrega um peso adicional aos seus sintomas e se arrasta, temendo enlouquecer e não suportar. Precisa explicar, justificar sua queda de rendimento. Alguns buscam ajuda, mas a maioria das pessoas se fecha para não expor suas feridas, ato que não fica impune, porque "a coisa" começa a se retroalimentar e crescer. Todavia, a própria questão que o sujeito levanta ao dizer "estou enlouquecendo" já indica que não, porque a loucura não se indaga. Vale mencionar Lacan (1955), em "O seminário, livro 3: as psicoses", que nos tranquiliza neste ponto: "...não se torna louco quem quer." (p. 24). A loucura não tem como marca a indagação, mas é um discurso da ordem da certeza, de maneira que não saber de si mesma e não se colocar uma questão é próprio da loucura.

É possível, em algumas situações, encontrar correspondências orgânicas para nossos sintomas: na química do cérebro, na alta ou baixa produção de certos hormônios, na disfunção de algum neurotransmissor etc. No entanto, falta a estes marcadores biológicos – que não estão sempre presentes – um aspecto fundamental de nossa condição humana, a saber, a simbolização, pela linguagem, daquilo que nos causa dor. Um câncer tem um determinado curso, a tuberculose exige uma forma de cuidado e segue sua marcha própria. Assim também ocorre com o diabetes ou mesmo uma gripe. O que diferencia o sofrimento psíquico destes outros casos é o fato de que falarmos sobre a maneira como sofremos muda a forma de nosso sofrimento. Não se trata aqui de pensamento mágico, mas da constatação, como Lacan nos ajuda a compreender, de que o inconsciente tem estrutura de linguagem, e é por meio dele que o que chamamos de transtorno mental tem lugar e expressão, ou seja, pode ser afetado pela palavra (e pela escuta). O que fazemos em uma psicoterapia é falarmos e sermos escutados. Uma fala que esteja ocupada não exatamente em comunicar, em se fazer entender, mas em contornar com palavras o impronunciável de nossa experiência. A escuta que nos devolve, de maneira invertida, aquilo que dizemos para escutarmos o que foi dito e o que está mais além de nosso próprio dizer.  Historicizar e compartilhar nosso sofrimento, como nossos antepassados faziam em roda, em volta de uma fogueira, implica a transformação de uma vivência em experiência, para nos referirmos a Walter Benjamin, o que significa dizer que as vivências são impactos não elaborados, enquanto as experiências contam com a adição de nossas narrativas a respeito do que nos ocorreu ou fizemos. E para que seja possível tal transformação, é necessário um outro que nos escute e valide o que dizemos. 

Evidente que os psicofármacos constituem um enorme progresso científico e podem ser utilizados, mas o uso indiscriminado da medicalização pode ter um efeito adverso: ao silenciarmos a dor que denunciava que algo não ia bem, caímos no engodo de acreditar que resolvemos o problema, o que se prova falso com o tempo, quando "a conta chega" e se impõe sobre nossas forças. Dizia Freud que "as emoções não expressas nunca morrem, mas retornam sobre nós mais tarde, das piores formas". É o que constatamos na clínica. O silêncio prolongado ou mesmo a "falação" que, por tanto falar, nada diz, muitas vezes servem para o nosso adoecimento futuro. 

O cuidado em saúde mental não se restringe a intervenções tópicas, cerebrais, mas extrapola a noção de que os transtornos mentais sejam somente "mentais" e não guardem relação com nossa forma de vida, nossa história, sociedade e época. Cada vez mais, saúde mental requer que falemos sobre nutrição, exercícios físicos, boas relações, amor, trabalhos que façam sentido, psicoterapia, práticas meditativas, tempo para lazer e tempo para o descanso, tempo para o ócio, tempo para não fazer nada.

Sofremos como sofremos em virtude de nossa constituição como sujeitos de nosso desejo. Freud utiliza uma ilustração primorosa ao se referir ao adoecimento psíquico como a quebra de um cristal que se dá, não aleatoriamente, mas a partir de ranhuras invisíveis que informam sobre como ele se formou. Desta maneira, também nós nos quebramos nos pontos onde nos construímos. Diz Freud (1933), em "A dissecção da personalidade psíquica": 

"Se lançamos um cristal ao chão, ele se quebra, mas não arbitrariamente; ele se parte conforme suas linhas de separação, em fragmentos cuja delimitação, embora invisível, é predeterminada pela estrutura do cristal. Os doentes mentais são estruturas assim, fendidas e despedaçadas." (p. 194-195).

 

CONCLUSÃO

 

A cultura da individualidade desconsidera que somos constituídos em relação, romantiza e defende que seja possível bastar-se a si mesmo. Percebe-se, cada vez mais, que a reclusão em si mesmo – de certa maneira um tanto perigosa, porque, como dizia Nietzsche (1887), "quando se olha para o abismo, ele nos olha de volta" – essa reclusão ganha contornos de amor-próprio quando, provavelmente, se trata de uma atitude defensiva frente a eminente possibilidade de ser frustrado pela alteridade radical do outro. O diferente nos assombra. Daí que, frequentemente, busquemos a solidão (que é diferente da solitude, onde se pode obter prazer da própria companhia). Assim, na prática, nos encastelamos sobre nós mesmos e quando travamos contato com alguém, o fazemos somente a partir daquilo que concordamos e que dialoga com nossos ideais estéticos, éticos ou políticos, nos enclausurando, nas palavras de Byung-Chul Han, no "inferno do igual". No limite, não nos encontramos com os outros, mas conosco, projetados sobre os semelhantes.

Sofremos psiquicamente, na mais profunda intimidade, daquilo que diz como nossa forma de laço com os outros está. Em certo sentido, sofremos individualmente dos males de nossa civilização. 


Referências 



• ASSIS, Machado de. "O alienista". (Barueri, SP: Camelot, 2021);

• CANGUILHEM, Georges. "O normal e o patológico". (Rio de Janeiro: Editora Forense, 2022);

• COOPER, David. "Psiquiatria e antipsiquiatria". (São Paulo: Editora Perspectiva, 1989);

• American Psyquiatric Association (APA). "DSM-V: manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais". Trad. Cláudia Dornelles; 4°ed. Ver. (Porto Alegre, Artmed, 2013);

• FOUCAULT, Michel. "Vigiar e punir". (Petrópolis, RJ: Vozes, 2014);

• FREUD, Sigmund. "O mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos (1930-1936)". (São Paulo: Companhia das Letras, 2010);

• GOFFMAN, Erving. "Manicômios, prisões e conventos". (São Paulo: Editora Perspectiva, 1987);

• HAN, Byung-Chul. "Sociedade do cansaço". (Petrópolis, RJ: Vozes, 2017);

• HAN, Byung-Chul. "Sociedade paliativa: a dor hoje". (Petrópolis, RJ: Vozes, 2021);

• KEHL, Maria Rita. "O tempo e o cão: uma atualidade das depressões". (São Paulo: Boitempo, 2015);

• KRENAK, Ailton. "A vida não é útil". (São Paulo: Companhia das Letras, 2020);

• KRENAK, Ailton. "Ideias para adiar o fim do mundo". (São Paulo: Companhia das Letras, 2019);

• LACAN, Jacques. "O seminário, livro 3: as psicoses". (Rio de Janeiro: Zahar, 1988);

• NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. "Genealogia da moral: uma polêmica". (São Paulo: Companhia das Letras, 2009);

• ROTTERDAM, Erasmo de. "Elogio da Loucura". (São Paulo: Martin Claret, 2012) e

Sintomas Sociais e Racionalidade Diagnóstica | Nelson da Silva Jr. Disponível em https://youtu.be/2_AmRJOYpGI acesso em 15.07.2023.

*FÁBIO DIAS REZENDE



 








-Graduado em Psicologia pela  Faculdade: Faculdades Metropolitanas Unidas - FMU (2017);

- Pós-Graduado em Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma pelo Instituto Sedes  Sapientiae (2019) ;

Atendimento psicológico em Consultório Particular

Orientação psicanalítica

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Nota do Editor:

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