terça-feira, 9 de abril de 2024

Análise constitucional da prisão especial e da sala de Estado Maior


 Autor: Daniel Zveibil(*)

Para além da Constituição formal, é importante considerarmos o bloco de constitucionalidade brasileiro para que a interpretação constitucional seja a mais cuidadosa possível. Sobre bloco de constitucionalidade, segundo Arturo Hoyos (HOYOS, Arturo. El bloque de constitucionalidad. In: MAC-GREGOR, Eduardo Ferrer (Coord.). Derecho Procesal Constitucional. Tomo III. Quinta Edición. México: Porruá, 2006, p. 2797/2803):

La expansión del control de constitucionalidad se ha producido porque son ahora más los elementos que utiliza la Corte Suprema de Justicia para emitir juicio sobre la constitucionalidad de las leyes. Ya no sólo torna la Constitución formal sino otros elementos que aqui estudiamos, como parámetro para el juicio de constitucionalidad. (...) La doctrina del bloque de constitucionalidad representa un caso exitoso de ‘transplante jurídico’ de una institución entre países cuyos sistemas jurídicos pertenecen a la familia romano-germánica. Aquella se origina en Francia, y luego ha sido recogida en otros países europeus como España, Italia y Austria. De allí há passado a Panamá.

O assunto em análise deve passar obrigatoriamente pela discussão sobre a qualidade de nossas unidades prisionais e, portanto, da eficácia de direitos e garantias fundamentais e legais da pessoa presa.

Nossa Constituição de 1988 possui dispositivos importantíssimos que incidem sobre a questão da qualidade de nossas unidades prisionais: incisos XLVII XLVIII, XLIX e L de seu art. 5º, formando uma rede de proteção para o tratamento humanizado de quem não consegue escapar da medida necessariamente excepcional da perda provisória da liberdade de ir e vir (a excepcionalidade advém dos seguintes dispositivos constitucionais: Constituição de 1988, art. 5º, incisos LIV, LVII, LXI, LXV e LXVI).

Igualmente, devemos ressaltar alguns dispositivos de princípios em tratados de direitos humanos aos quais o Brasil está vinculado:

 

 

Instrumento normativo

 

Dispositivos

 

 

Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948)

Art. 3º a 9º.

 

Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (1966)

Art. 6º, 7º, 9º e 10.

 

Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Reclusos (Resolução n.º 70/175 da Assembleia-Geral, adotada em 17 de dezembro de 2015)

Regras 2 e 11, 12, 13, 93, 109, 110, 112

 

Convenção Global contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (1984)

Art. 10, 11, 12

 

Declaração Americana de Direitos Humanos (1948)

Art. 1º, 2º, 17, 25

 

Convenção Interamericana de Direitos Humanos (1969)

Art. 3º, 4º, 5º, 7º, 11

 

Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura (1985)

Art. 5º, 6º, 7º

As regras e princípios de direitos humanos tabelados compõem ampla e detalhada rede de proteção às pessoas presas, reforçando, minudenciando e ampliando disposições de nossa Constituição de 1988. Chamamos a atenção para os seguintes mandamentos comuns pinçados de diversos instrumentos:


1)As regras mínimas para tratamento de reclusos devem ser aplicadas com imparcialidade, não devendo haver nenhuma discriminação em razão de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou outra, origem nacional ou social, patrimônio, nascimento ou outra condição;

2)O princípio da não discriminação exige de administrações prisionais que considerem as necessidades individuais dos reclusos, particularmente daqueles em situação de maior vulnerabilidade, e medidas para proteger e promover direitos dos reclusos portadores de deficiência não serão consideradas discriminatórias;

3)Deve haver separação de categorias de reclusos para evitar que alguns reclusos, pelo passado criminal ou personalidade, exerçam influência negativa sobre outros reclusos, e para facilitar a reinserção social;

4) A separação deve ser feita tendo em consideração sexo, idade, antecedentes criminais, razões da detenção: homens e mulheres devem ficar separados; presos preventivos devem ficar separados dos condenados; pessoas detidas por dívidas ou outros reclusos do foro cível devem ser mantidos separados dos presos cujo título da prisão seja criminal; os jovens devem permanecer separados dos adultos;

5)Pessoas consideradas inimputáveis, ou a quem, posteriormente, for diagnosticado uma deficiência mental, não devem permanecer detidas em prisões, devendo ser tomadas medidas para transferir para um estabelecimento para portadores de transtornos mentais o mais célere possível;

6)É desejável haver tratamento psiquiátrico depois da colocação em liberdade, e que uma assistência social pós-prisional de natureza psiquiátrica seja assegurada;

7)Uma série de regras devem ser respeitadas para a proteção da dignidade dos reclusos: celas individuais no descanso noturno, observando-se todas as exigências de higiene e saúde, especialmente condições climatéricas, cubicagem de ar disponível, iluminação, aquecimento, ventilação, instalações sanitárias adequadas para as necessidades serem efetuadas de modo limpo e decente, assim como instalações de banho e ducha devem ser suficientes para todos a uma temperatura adequada;

8)Ninguém deve ser arbitrariamente preso, detido ou exilado;

9)Toda pessoa tem o direito a ter sua personalidade jurídica reconhecida, não sendo prejudicado esse reconhecimento por privação de liberdade;

10)Todo ser humano tem o direito de que se respeite sua integridade física, psíquica e moral, não podendo ser submetido à tortura, nem a penas ou tratamento cruéis, desumanos ou degradantes, devendo ser tratado com humanidade e respeito à dignidade inerente à pessoa humana;

11)Nem a periculosidade do detido ou condenado, nem a insegurança do estabelecimento carcerário ou penitenciário podem justificar a tortura;

12)Os Estados Partes tomarão medidas para que, no treinamento de agentes de polícia e de outros funcionários públicos responsáveis pela custódia de pessoas privadas de liberdade provisória ou definitivamente, e nos interrogatórios, detenção ou prisões, ressalte-se de maneira especial a proibição do emprego da tortura; e

13)O regime penitenciário consistirá num tratamento cujo objetivo principal seja a reforma e a reabilitação moral dos prisioneiros. Os jovens considerados infratores deverão ser separados dos adultos e receber tratamento condizente com sua idade e condição jurídica.

Em sentido diametralmente oposto ao juridicamente positivado, sabemos que o Supremo Tribunal Federal, na ADPF 347, na fase da medida cautelar reconheceu a situação degradante do sistema prisional brasileiro, especialmente devido à superlotação e outras condições desumanas de custódia, havendo registrado formalmente a existência de violação massiva de direitos fundamentais devido a falhas estruturais.

Observando esse panorama, se não houver filtragem constitucional séria não faz o menor sentido os conceitos fechados de "prisão especial" (art. 295, § 1º do CPP) ou de "sala de Estado Maior" (prerrogativa das categorias profissionais do sistema de Justiça relacionadas expressamente nos art. 127 a 134 da Constituição Federal, ou seja: membros do Poder Judiciário [Lei Complementar n.º 35/1979, art. 33, III], membros do Ministério Público [Lei n.º 8.625/1993, art. 40, e Lei Complementar n.º 75/1993, art. 18, II, "e"], membros da Defensoria Pública [Lei Complementar n.º 80/1994, art. 44, 89 e 128, inciso III], profissionais da Advocacia Privada e Pública [Estatuto da Advocacia, Lei n.º 8.603/1994, art. 7º, V]).

Porque toda pessoa, sem exceção, merece tratamento humanizado e particularizado na consideração de suas necessidades quando presa, e as separações em categorias somente se justificam racionalmente sob as perspectivas de proteção da integridade física, psíquica e moral além da inevitável reinserção social do preso. Sendo assim, cada uma das previsões legais apontadas e respectivas à prisão especial e à sala de Estado Maior devem ser analisadas sobre a perspectiva da real necessidade – o que nos levaria a concluir que algumas dessas previsões devem ser revogadas, ampliando-se, contudo, a outras categorias de pessoas sequer imaginadas e mencionadas pela legislação.

A doutrina processual penal mais recente, por sinal, vem caminhando nesse sentido justificando a "prisão especial" e a "sala de Estado Maior". Nos anos 1980, Hélio Tornaghi (TORNAGHI, Hélio. Curso de Processo Penal. Vol. 2. 4ª edição. São Paulo: Saraiva, 1987, capítulo I, p. 12), por exemplo, faz menção à prisão especial como sendo um dos "corretivos para os males da prisão provisória":


Outra providência que atenua os males da prisão provisória consiste em recolher à prisão especial. O CPP (além de leis extravagantes), o art. 295, faz esta concessão a determinadas pessoas, não como privilégio, que seria inconstitucional e odioso, mas como prerrogativa.

Mais recentemente, após exposição pormenorizada sobre prisão especial e prisão em sala de Estado Maior, Guilherme Madeira Dezem também reflete sobre a perspectiva constitucional do tema (DEZEM, Guilherme Madeira. Curso de Processo Penal. 7ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021, item n. 13.2.7, p. 932):

 

Seja como for, prisão especial ou prisão em sala do Estado Maior, é importante notar que em alguns casos há fundadas razões que a justificam (como é o caso dos policiais civis dada a necessária segurança do presídio) e em outros casos não passam de puro privilégio sem qualquer justificativa. (...) No entanto, por razões de segurança e do bom desenvolvimento da atividade no presídio, poderá o magistrado determinar a colocação de pessoas em local distinto do comum, desde que o faça de maneira motivada, ouvido o Ministério Público. Assim, não se afigura razoável que o promotor, que antes acusava as pessoas e que seja condenado por crime, cumpra pena no mesmo local em que estão aqueles que acusou. Há evidente risco para sua vida, de forma que poderá o juiz neste caso determinar o cumprimento da pena em local distinto do comum, desde que dentro do mesmo presídio.

Esse cuidado da filtragem constitucional explica-se porque, no fundo, "prisão especial" e "sala de Estado Maior" – ainda que se justifiquem atual e concretamente para certos perfis de pessoas, e concordamos com essa perspectiva – advém de passado profundamente equivocado que vê, na verdade, necessidade premente de não permitir que específicos setores sociais, ao despencarem nas imundas, fétidas e superlotadas prisões brasileiras por ordem cautelar, não se misturem à pobreza, à negritude e aos demais vulneráveis invisíveis – a história toda, em nosso país, começa pela homenagem do antigo direito lusitano para proteção da nobreza (ORDENAÇÕES, e Leys do Reyno de Portugal confirmadas e eftabelecidas pelo Senhor Rey D. João IV. Mosteiro de S. Vicente de Fóra...: Lisboa, 1747, Livro 5, título 120, parágrafo inicial; PEREIRA E SOUSA, Joaquim José Caetano. Primeiras linhas sobre o procésso criminal. Segunda edição emendada e acrescentada. Simão Thaddeo Ferreira: Lisboa, 1800, § 74, p. 65, nota "01").

Daí o ideário de um "lugarzinho especial para quem é especial". Nesse sentido, vale recordar Eduardo Espínola Filho ao comentar o art. 300 do CPP, cuja redação determinava o seguinte: "Sempre que possível, as pessoas presas provisoriamente ficarão separadas das que já estiverem definitivamente condenadas." Em razão dessa prescrição legal, sustenta a legitimidade do art. 295 na perspectiva das classes privilegiadas "da Nação", as quais não poderiam se misturar à "ralé dos criminosos" (ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Código de Processo Penal brasileiro anotado. 6ª edição. V. III. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1980, comentário n. 594, p. 316/317).

Deste modo, antes de ser uma questão jurídica é igualmente uma questão moral (como diria Martin Luther King) uma questão moral inadiável acabarmos com a "prisão especial" e a "sala de Estado Maior", e isso visando o início de um projeto republicano que considere o todo sustentando como quatro pontos fundamentais:

1) a cessação imediata do processo de encarceramento em massa como forma de os donos do poder controlarem a periferia da sociedade;

2) investimento maciço em aparelhos de apoio e desenvolvimento social (educação, saúde, formação profissional etc.) principalmente nos setores mais vulneráveis da sociedade, a fim de reduzir desigualdades sociais;

3) investimentos reais que tornem nossas masmorras medievais em locais nos quais qualquer pessoa possa permanecer em condições minimamente dignas, conforme as disposições constitucionais e convencionais acima destacadas;

4) identificação de categorias que devem ser separadas a priori pela própria lei, desde que essa listagem seja construída com imparcialidade e sem contaminação da ideia abjeta (ainda que inconsciente) de que certos setores privilegiados não podem se misturar "à ralé de criminosos" (Regras Mínimas das Nações Unidas para Tratamento de Reclusos).

No fundo, as prisões brasileiras são o que são porque as classes dominantes não se enxergam nelas – mas, por cautela, é bom ter um "lugarzinho especial". Essa é a dolorosa verdade. A transformação de nossas prisões, portanto, também não deixa de simbolizar esse sentido republicano de que todos devem responder por eventuais crimes de que tenham sido autores ou partícipes, respeitados, evidentemente, os ditames do devido processo legal, em especial ampla defesa, contraditório, proibição de provas ilícitas, ter meios processuais efetivos para dar combate a ilegalidades etc.

A premissa republicana impõe que olhemos a questão da separação dos presos com mais fatos, postura mais imparcial (Regras Mínimas das Nações Unidas para Tratamento de Reclusos), e menos pela pressão de categorias que se destacam política e economicamente.


*DANIEL GUIMARÃES ZVEIBIL










-Graduado pela Iniversida Católica de São Paulo (2000);

-Mestrado pela USP (2006);
-Doutorado pela USP (2017);
 -Possui trabalhos em processo constitucional,
-Professor de pós-graduação e
-Defensor público do Estado.


Nota do Editor:

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