Compreender a história e o conteúdo básico da
presunção constitucional de inocência em nosso sistema constitucional é
premissa básica para analisar, criticamente, decisões de nossos tribunais que,
de modo repetido, desaplica indevidamente essa garantia processual constitucional
básica do processo penal, desenhada e aprovada pela Assembleia Nacional
Constituinte de 1987/1988.
Como se sabe, a presunção de inocência projeta sua eficácia em 3 sentidos específicos, conforme doutrina autorizada (por todos, LOPES JR., Aury. Prisões cautelares e "habeas corpus". 9ª edição. São Paulo: SarivaJur, 2024, cap. 1, item n. 1, p. 09/11): 1) norma de tratamento: ser tratado dentro e fora do processo como inocente, obstando antecipação de pena e publicidade abusiva sobre o acusado e o caso penal; 2) norma probatória: toda carga probatória é atribuída ao órgão de acusação, pois o acusado deve ser presumido inocente; 3) norma de julgamento: basicamente exige-se, neste sentido, a concretização do in dubio pro reo ou do favor rei, dizendo respeito à suficiência probatória.
O inciso LVII do art. 5º da Constituição Federal é expresso ao exigir a presunção de inocência até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória; (...)”. Em outras palavras, as 3 aludidas eficácias devem projetar efeitos concretos até que eventualmente sobrevenha decisão penal condenatória transitada em julgado.
Se é verdade que princípios não seguem a lógica de regras – a de tudo ou nada –, não quer dizer que o intérprete tenha liberdade para reescrever o texto da Constituição por meio de interpretação. Já existem restrições jurídicas ao princípio da presunção de inocência – entender este ponto é crucial –, e a mais significativa é provavelmente a admissão de prisão cautelar: o que é perfeitamente justificável quando presente, de fato, os requisitos típicos de cautelaridade penal.
Para que se perceba a duração da presunção de inocência para cada caso concreto penal brasileiro, é preciso atentar para o fato de que nosso constituinte originário fora detalhista na redação dessa garantia processual constitucional; foi além dos tratados internacionais de direitos humanos, exigindo expressamente o trânsito em julgado de sentença penal condenatória como condição de cessação dos efeitos plenos da presunção de inocência.
O constituinte originário de 1988 poderia ter seguido os padrões do Pacto de Direitos Civis e Políticos (PDCP, art. 14, n. 02: "Toda pessoa acusada de um delito terá direito a que se presuma sua inocência enquanto não for legalmente comprovada sua culpa."), ou da Convenção Interamericana de Direitos Humanos (CIDH, art. 8º, n. 02: "Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: (...)"Todavia, marcado pelos abusos recentes da então Ditadura Militar iniciada pelo golpe de 1964 e sob influxo dos movimentos negros, escolheu redação mais específica evitando margem para futuras distorções por parte de intérpretes oficiais dos Poderes e órgãos autônomos constituídos na República brasileira de 1988.
Por sinal, é importante ressaltarmos que a redação do inciso LVII do art. 5º de nossa Constituição é absolutamente idêntica desde o início da tramitação na Comissão de Sistematização (responsável por sistematizar as propostas das Subcomissões Temáticas da Constituinte de 1987/1988) em seu substitutivo 1, depois no substitutivo 2, bem como nos Projetos A, B, C e D, prevalecendo no texto final constitucional promulgado no Diário Oficial da União, conforme estudo que documenta amplamente as origens da Constituição de 1988 (LIMA, João Alberto de Oliveira; PASSOS, Edinelice; NICOLA, João Rafael. A gênese do texto da Constituição de 1988. V. 01. Brasília: Senado Federal, 2013, sequência 104, p. 81). Ou seja, a redação não é fruto do acaso, tendo ela passado por diversos escrutínios na formação da Constituição vigente.
Sendo assim, sempre que se analisar possível colisão entre a presunção de inocência prevista no inciso LVII do art. 5º de nossa Constituição e qualquer outra garantia processual constitucional (por exemplo, na jurisprudência do STF a inautêntica e suposta colisão com a soberania dos veredictos), é preciso ter em mente que o constituinte originário cercou zelosamente um ponto que ele considerava intangível ou intocável: o fator condicionante do trânsito em julgado de sentença penal condenatória para cessação dos efeitos da presunção de inocência.
Essa é a razão pela qual, a propósito, a prisão cautelar é admissível em nosso sistema constitucional: não é só porque os incisos LXI, LXV e LXVI do art. 5º da Constituição Federal admitem a prisão cautelar em seu conjunto, mas porque a prisão cautelar – se verdadeiramente cautelar – não colide com o fator condicionante de cessação da plena eficácia da presunção de inocência.
Se o constituinte originário tivesse aprovado a redação da Convenção Interamericana de Direitos Humanos – "Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa." (CIDH, art. 8º, n. 02) –, não há dúvida de que haveria campo para discussão sobre a eficácia da presunção de inocência poder, ou não, estar condicionada ao trânsito em julgado dependendo da regulamentação do legislador ordinário. Este, por outro lado, também a nosso ver teria de respeitar o piso interamericano do duplo grau de jurisdição em matéria penal imposto expressamente pela Convenção Interamericana de Direitos Humanos (CIDH, art. 8º, n. 02, "h": "Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: (...) direito de recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior.").
Se esse marco específico do trânsito em julgado de sentença condenatória penal é intocável por constar expressamente na Constituição, não é possível admitir colisão da garantia constitucional da presunção de inocência com a efetividade do processo penal, ou soberania dos veredictos etc., se o propósito é coibir a antecipação de pena antes do trânsito em julgado, por exemplo; tal conduta atravessa deliberadamente a linha vermelha riscada pelo constituinte originário em proteção ao que considera como condição vital de realização da presunção de inocência no Brasil. De novo: o constituinte originário poderia ter copiado textos genéricos do Pacto de Direitos Civis e Políticos, ou da Convenção Interamericana, ou mesmo de outras Constituições estrangeiras: mas não o fez.
Em síntese, se o constituinte originário vai além dos tratados de direitos humanos, prevendo a cláusula do trânsito em julgado de sentença condenatória penal como fator condicionante de cessação da eficácia plena da presunção de inocência, não há justificativa sustentável de tribunais para invocarem emoções e desejos momentâneos – lustrosamente fraseados em aparentes argumentos jurídicos – que restringem essa fundamental garantia processual constitucional em detrimento de sua iniludível redação.
*DANIEL GUIMARÃES ZVEIBIL
-Mestrado pela USP (2006);
-Doutorado pela USP (2017);
-Possui trabalhos em processo constitucional,
-Professor de pós-graduação e
-Defensor público do Estado.
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