Autor: Mateus Vitor dos Santos(*)
Introdução
A harmonização facial, prática estética que busca remodelar e "equilibrar" as proporções do rosto, tem ganhado ampla popularidade nos últimos anos. As redes sociais despontam na ampla divulgação de uma estética hegemônica, que é reforçada pela utilização de filtros, por exemplo. No entanto, os motivos que levam os indivíduos a recorrer a tais procedimentos envolvem não apenas questões estéticas, mas também processos psíquicos profundos. Neste sentido, a psicanálise oferece uma possibilidade de leitura sobre tal fenômeno, ao explorar as motivações inconscientes, os desejos e as angústias que podem estar na base desta busca por um "rosto ideal". Este artigo pretende relacionar os conceitos psicanalíticos de narcisismo, ideal do eu e inveja, conforme apresentados por Freud, Klein e Figueiredo, para propor uma análise da harmonização facial como um fenômeno psíquico e social.
A Busca pelo Ideal de Beleza e o Narcisismo Freudiano
Freud (1914), em sua obra, discutiu amplamente o conceito de narcisismo, especialmente no texto "Introdução ao Narcisismo". Concebendo o narcisismo como um investimento de libido no próprio Eu[1], ou seja, um caminho auto referenciado da energia psíquica, não como abordado popularmente. Tendo como base o narcisismo como recurso viabilizante do desenvolvimento do Eu, não podemos desconsiderar algumas manifestações narcísicas, onde pode-se demonstrar uma tendência ao ensimesmar-se e não conseguir fazer uma separação entre o Outro e o Eu.
Paradoxalmente, o desenvolvimento do Eu exige, de fato, um afastamento do narcisismo primário. Ao decorrer de sua trajetória, o indivíduo busca esta sensação de plenitude inicial, uma espécie de "ideal de Eu", e obtém a satisfação oriunda da realização deste ideal (seja de modo direto – por ele mesmo –, ou indireto – através de identificações com o outro). Por um lado, se o Eu se torna empobrecido em decorrência dos investimentos nesses objetos externos, por outro, o Eu também se enriquece ao ser realizado por seu ideal. (ALMEIDA; SANTOS, 2020, p. 341).
Importante mencionar que o que chamamos de narcisismo primário, trata-se do período inicial da vida, após o nascimento, onde representamos tudo para os nossos pais. Nas palavras de Freud (1914): His majesty, the baby (Vossa majestade, o bebê).
Na harmonização facial, nota-se uma busca pela perfeição e pelo ideal estético que se aproximam do narcisismo primário, no que tange baixas fronteiras entre o Eu e o Outro, tornando então tudo sobre si. Onde a imagem do Eu é idealizada e projetada como objeto de amor, que busca não só a imagem do Outro para si, como também a validação social para com a própria imagem.
Freud (1914) argumenta que o narcisismo oferece o espaço onde o ideal do Eu pode se desenvolver. A harmonização facial pode ser compreendida, nesse sentido, como uma tentativa de alcançar esse Ideal do Eu, o qual representa o desejo de se tornar um objeto amado e admirado pelos outros. Essa busca incessante pelo ideal estético acaba por reforçar o investimento narcísico, que em um contexto contemporâneo é amplificado pela mídia e pelas redes sociais, onde imagens perfeitas são constantemente exaltadas.
Identificação e Inveja na Perspectiva Kleiniana
Melanie Klein, em sua teoria, aprofunda a ideia de que a relação com o objeto é marcada por ambivalências, e que a inveja pode ser um fator relevante na formação da identidade e na busca pelo ideal de beleza. Em Inveja e Gratidão (1957), Klein propõe que a inveja é uma emoção primária que surge quando o sujeito sente-se privado de algo desejável que outro possui. Na harmonização facial, essa inveja pode ser direcionada a características físicas consideradas atraentes em outras pessoas, despertando o desejo de ter tais qualidades.
Klein (1957) observa que a inveja se origina como uma resposta à percepção do bom objeto no outro, e na harmonização facial, o sujeito pode tentar incorporar fisicamente essas características, numa tentativa inconsciente de "tomar" o que é visto como belo ou admirável no outro. Esse movimento reforça a relação ambivalente entre amor e ódio, onde o desejo de possuir as qualidades alheias surge acompanhado de ressentimento e uma necessidade de se diferenciar.
O Eu na Era da Imagem: Contribuições de Luis Claudio Figueiredo
Luis Claudio Figueiredo, psicanalista brasileiro, aborda as transformações do Eu no contexto contemporâneo e os efeitos da sociedade da imagem sobre a subjetividade. Em sua obra Identidade e Modernidade (1991), ele observa que o eu é constantemente reformulado em função de um imaginário social que dita padrões e valores, o que se intensifica com o avanço das mídias digitais. Para Figueiredo, a exposição ao ideal de beleza midiático intensifica a vulnerabilidade do sujeito frente à sua própria imagem.
Como coloca Figueiredo (1991), a identidade moderna está exposta a uma multiplicidade de imagens que impõem ao sujeito um permanente processo de comparação e ajuste, e portanto, ajusta-se o que não está considerado adequado. A harmonização facial pode ser vista como uma resposta a essa pressão constante para se alinhar aos padrões estéticos dominantes, buscando uma identidade visual que corresponda à perfeição.
Considerações Finais
A harmonização facial, quando analisada sob a ótica psicanalítica, revela-se como um fenômeno complexo que vai além do desejo superficial de embelezamento. É, na verdade, uma busca pelo ideal do eu que envolve processos de narcisismo, inveja e adaptação constante às normas impostas pela sociedade. Ao explorar esses aspectos, Freud, Klein e Figueiredo oferecem insights valiosos sobre a dinâmica inconsciente que rege a demanda por um ideal estético, propondo que, por trás da busca pela face perfeita, há uma intricada rede de desejos e temores inconscientes, que se entrelaçam na construção de um Ideal de Eu contemporâneo, com a produção de fragilidades do Eu, afastando assim o caminho de fortalecimento de um Eu mais autêntico e livre.
Bibliografia
ALMEIDA, Alexandre Patrício de; SANTOS, Mateus Vitor dos. Educação como mecanismo de superação das relações de opressão atravessadas pela fragilidade do Ego. Dialogia, São Paulo, n. 34, p. 337-350, jan./abr. 2020. Disponível em: https://doi.org/10.5585/Dialogia.N34.16008;
Freud, S. (1914). Introdução ao narcisismo. In Obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago;
Klein, M. (1957). Inveja e gratidão e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago; e
Figueiredo, L. C. (1991). Identidade e modernidade: um estudo sobre a constituição do eu na contemporaneidade. São Paulo: Escuta.
Referência
[1] O termo "Eu"aqui empregado refere-se ao termo "Ego" em latim, mencionado em obras psicanalíticas. Embora as obras originais de Sigmund Freud sejam escritas em alemão (com a utilização do termo "Ich"
*MATEUS VITOR DOS SANTOS
Psicólogo e Psicanalista;
Graduado em Psicologia pela Universidade Paulista - UNIP (2020);
Pós-graduado em Psicanálise pela Faculdade Venda Nova do Imigrante - FAVENI (2021);
Pós graduado em Cuidados Integrativos pela Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP (2022);
Professor e Supervisor Clínico na Universidade Ibirapuera;
Atende em consultório particular adultos e adolescentes de modo online
E-mail: psimateusvitor@gmail.com
Celular : 12 9 8237-7146
Nota do Editor:
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