segunda-feira, 26 de março de 2018

O Sentido da Perda




 Bia veio morar conosco trazida por Fabiana, em 2009. Ainda estávamos nos organizando na casa nova quando veio o telefonema: Mãe, tem uma labrador linda no canil de uma conhecida que está para doação. Preta, vacinada, vermifugada, só tem um problema, o nome dela é Bia... Ao contrário do que minha filha esperava, o detalhe decidiu a questão: Traz a xará! 

E ela veio, com 4 anos e muito medo de estar entrando em outra roubada. Afinal, já era a terceira doação em tão pouco tempo...Escaldada e carente, demorou uma semana para interagir comigo – soube depois que na última casa havia ficado um mês pelos cantos. 

Tivemos uma conversa séria, olho no olho. Prometi a ela que jamais seria abandonada novamente, que seus dias de matriz presa confinada estavam encerrados, e que a partir daquele momento era curtir a aposentadoria. 

Providenciamos a castração, uma bela coleira vermelha, para combinar com o pelo preto, e ganhei a cadela mais doce, desajeitada, apaixonada, manipuladora, determinada e gulosa que poderia ter desejado. Pior para quem a doou. 

Foram nove anos de muitas pisadas no pé, rabanadas desvairadas, olhares de amor desvanecidos, carreiras desabaladas atrás de pássaros e uma ou outra galinha desavisada, e muito companheirismo. Só não consegui ensiná-la a subir escadas, então nunca pudemos dormir juntas, mas ela roncava tão alto que era quase como se estivesse ali do lado... 

De repente o que estava ótimo começou a desandar. Alguns sinais avisaram que minha ‘ursinha’ não estava tão bem quanto os seus 35 kg indicavam. Decidi antecipar em cinco meses seus exames anuais.

O que parecia ser um mal-estar passageiro revelou-se falência renal grave, em estado terminal, e me obrigou a lidar em 3 dias com questões profundas, como vida e morte; tanatologia – de que maneira morrer – e tomar decisões que jamais saberei se foram as melhores. No fim da vida, minha labrador bagunceira e carinhosa deixou como último presente a lembrança de que morrer faz parte do caminho. 

Bia foi embora na Quarta-Feira de Cinzas, com 13 anos. Fiel à minha promessa, não a abandonei, e agradeci até o último minuto por aquele dia distante em que ela me escolheu para dividir a jornada. 

Eu poderia escrever sobre a intervenção federal no Rio de Janeiro, claro. Só que as únicas – poucas – certezas que tenho sobre o assunto se limitam a achar que alguma coisa tinha que ser feita e que a intervenção, por si só, não vai resolver a crise de segurança em minha cidade natal. E por não poder falar sobre tantas e tão profundas perdas – de vidas, de liberdade, de viver seguro na cidade que se escolheu para viver, entre outras – prefiro a minha. O sentido da perda mora no coração de quem ficou. 

POR BEATRIZ RAMOS












- Cronista; e

Publicitária 
Trabalha com mídias sociais 

NOTA DO EDITOR :

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