segunda-feira, 23 de abril de 2018

Amélia



I


Amélia levantou da cama para ir ao banheiro com todo cuidado. Mustafá, seu marido, acordava de mau humor e seria melhor se ele dormisse um pouco mais. 

O esforço para não fazer qualquer barulho foi em vão e logo os gritos preencheram a casa: 

Mas que barulho é esse? Estou atrasado! Onde estão as minhas meias? Eu não encontro nada nesta casa. Tenho que me aprontar e ir correndo para o trabalho. Inferno de vida! 

Amélia nunca considerara aquele lugar a "sua" casa. Lá não era um lar, era um imóvel habitado por duas almas que nunca deveriam ter se encontrado. Ela o conheceu no aniversário de uma prima e o matrimônio veio logo em seguida. Era uma união infeliz.

Por que Deus deixa isso acontecer? Será porque em meio à atribulação é que se encontra a verdadeira Fé? Quem vai saber. 

Mustafá com uma camisa mal abotoada sentou-se na mesa da cozinha e tomou resmungando um café preto que Amélia coou na hora. Comeu um biscoito de maisena, entronou a xícara e saiu apressado sem se despedir enquanto Amélia olhava para o chão. Ele nunca acordou de bom humor, mas com o tempo tudo piorou.

Quando aquele homem colocou o pé para fora de casa uma nuvem negra densa e espessa o acompanhou. Amélia suspirou aliviada, olhou o relógio na parede e viu que era 7:30 da manhã. Ela abriu as janelas da casa e uma brisa fresca e serena soprou os seus cabelos. Daqui a pouco eu começo o almoço, ela pensou sorrindo. 

A felicidade só depende de mim, isso ela disse em voz alta para si mesma enquanto caminhava pela casa. 

II 

O segredo da boa comida está na qualidade dos alimentos. 

O dono da banca de verduras abanou a cabeça concordando com as palavras de Amélia. Ela era a alegria daquele mercado. Conhecia todos os vendedores, sabia escolher as melhores frutas e verduras. Os labirintos daquele mercado eram percorridos sem a necessidade de um fio de lã.

Bom dia seu Agenor. 

Bom dia Dona Amélia. O que vai ser hoje? 

Vou fazer galinhada. Preciso de açafrão. 

Risos, cumprimentos e boa conversa fizeram com que a manhã passasse depressa. Sacola cheia era hora de se concentrar no melhor momento do seu dia: a preparação do almoço. 

Amélia chegou na casa, pegou a chave que estava escondida embaixo do tapete, olhou atentamente para os lados, abriu rapidamente a porta e foi direto para a cozinha. Em pouco tempo a água já estava fervendo na panela. Os alimentos foram todos preparados com o maior capricho e cuidado. A cebola bem picadinha. A receita e o modo de preparo era um segredo de família: 

1. Refogue a cebola no óleo. 

2. Pique o alho e refogue junto. 

3. Processe o paio junto do bacon e adicione na panela. 

4. Pique a pimenta e adicione junto o orégano fresco ou seco. 

5. Adicione o frango e refogue bem, adicionando o açafrão em pó e em seguida o tomate em tiras na panela.

6. Adicione o arroz e refogue. 

7. Coloque o açafrão. 

8. Adicione água ou caldo e tampe até que esteja cozido. 

A cozinha da Amélia era uma linha de montagem dos mais deliciosos pratos e quitutes. O ser humano tem a vontade de ser bom em algo. Amélia descobrira que o seu melhor era cozinhar. "Cozinhar é um ato de amor" era uma frase que ela admirava bastante. 

Às 11:30 da manhã o aroma da comida era capaz de encantar o mais frugal dos homens. 

Para Amélia cozinhar era mesmo um prazer. 

Ao meio dia a mesa estava posta. Amélia aguardava ansiosa a hora marcada para iniciar o almoço, a melhor hora do dia. 

III 
O homem chegou correndo e sentou à mesa, abriu as panelas, sentiu o cheiro e se derramou em elogios. A comida é capaz de transformar qualquer ambiente. 

Não existe comida melhor do que a sua. 

A vida de Amélia mudava na hora do almoço. Era uma outra mulher. Ela sabia que era ótima. Quando cozinhava era ela contra ela mesma. Era uma superação. Não importava a opinião dos outros. 

Galinhada, vinagrete, uma farofa de torresmo. As coisas mais simples são as melhores. 

Amélia descobriu o poder da simplicidade e que as dificuldades seriam contornadas, pois cabia somente a ela a decisão de ser feliz. Com a vida que tinha. Com as opções que ela tinha. 

O banquete (simples, mas um banquete) levou os dois a se esquecerem do horário.

Tenho que voltar correndo para o trabalho. 

Amélia também tinha que voltar às suas obrigações cotidianas. 

Eles se despediram. 

A melhor hora do dia é a hora do almoço. Essa era a única certeza da vida de Amélia. 

IV 

A noite trouxe a escuridão e o mau humor de Mustafá de volta. 

Ele acordava de mau humor, já sabemos, e à noite ele estava ainda pior. 

Porque é que não tem janta nesta casa? 

Ele era filho único e sempre fora mimado. Qualquer comida feita na hora do almoço não servia para ele comer na janta. Era um mau marido. Nunca a apoiou em nada. Trabalho, estudo, amizades, tudo foi tolhido. Um misto de ciúme e inveja movia Mustafá. Ele nunca quis que a esposa fosse feliz. 

Amélia sabia disso e convivia com isso calada. Seu único prazer era cozinhar o almoço. Em casa, porém, para a raiva de Mustafá, o café da manhã e o jantar não passavam de lanches. Era uma birra de mulher, essa coisa que os homens nunca vão entender como começa e muito menos como termina. 

Mustafá esbravejava pela cozinha procurando algo para saciar a fome enquanto Amélia rezava o terço escondida pelos cantos. 

Logo os dois estariam dormindo e ela estaria sonhando com uma vida que poderia ter sido diferente. 

Não tenho uma vida perfeita, mas ela é boa e é isso o que importa. 

V
 
Naquela manhã a cidade amanheceu sem energia. Tudo estava um breu. Mustafá teve que tomar um banho gelado, o que tornou o seu conhecido mau humor matinal totalmente insuportável.

Eu não gosto de ficar no escuro! 

Cada minuto daquela manhã parecia uma hora. O tempo passa devagar quando estamos ao lado de uma pessoa enjoada. O café da manhã como sempre foi frugal: café preto e bolacha de maizena. Amélia acendeu uma vela para iluminar a cozinha. Mustafá levou a xícara até a boca enquanto os seus olhos negros miravam o infinito. Ela reparou que o semblante daquele homem de fortes traços árabes ficava sombrio com aquela pouca iluminação. 

Esse seu marido é bipolar Amélia, uma vizinha não se cansava de repetir. 

Eu acho que ele é um entojo o tempo todo, outra amiga comentava. 

Amélia mantinha a sua boca fechada e nunca falava nada sobre os seus sentimentos. Ela era discreta. Tinha poucas amigas. Seus familiares todos moravam em outra cidade. Ela nunca se envolvia em fofocas. 

Você nunca conta nada para gente. Suas amigas reclamavam sobre a falta de confiança recíproca. Amélia fugia sempre dessas inquirições. 

Gente eu tenho que ir porque eu preciso fazer o almoço. 

O cardápio daquele dia seria uma especialidade de Amélia: lasanha. Ah, a lasanha da Amélia! Assim estava anotado em seu livro de receitas: 

Modo de preparo

1. Preaqueça o forno médio (180ºC). 

2. Esquente o azeite e refogue a cebola por 5 minutos. Junte a carne e refogue até a carne cozinhar por igual. Se tiver muita gordura na panela, escorra um pouco. Depois, junte o molho de tomate e deixe apurar no fogo baixo por uns 10 minutos. Tempere a gosto. 

3. Monte a lasanha fazendo camadas de molho, massa, presunto e mussarela, Termine com uma de molho. Cubra com o queijo ralado e cubra com papel alumínio. 

4. Leve ao forno por meia hora. Retire o papel alumínio e deixe no forno por mais 10 minutos.

Mesa posta, com o casal sentado à mesa, às 12:30 em ponto o almoço foi servido. 

Meu Deus, isso está delicioso demais. 

A mágica acontecia novamente. Ninguém seria mesmo capaz de resistir àquela lasanha.

O almoço transcorreu normalmente, com elogios e sorrisos. O sabor da comida faz mesmo milagres.

O tempo passou rápido e os dois quase não perceberam que tinham que voltar aos seus afazeres. Pelo menos por enquanto as coisas estavam sob controle e era assim que tinha que continuar. 

VI 

Chovia à noite e Mustafá chegou ensopado em casa. Ele entrou na casa e molhou todo o caminho até o quarto. 

Pelo menos você poderia ter tirado os sapatos lá fora. 

Mustafá ficou uma onça com as palavras de Amélia. 

Não gostou? Passe o pano no chão e enxugue tudo. 

Aquela discussão foi suficiente para que cada um fosse para um canto da casa. Amélia pegou o seu terço e foi rezar. Mustafá foi procurar algo para matar a sua fome. Nessas noites tristes Amélia só pensava no almoço do dia seguinte. 

Amanhã vou preparar picanha com molho de mostarda. 

Ela amava cozinhar. Ela sabia que era muito boa nisso. Ela faria grande sucesso na TV. Suas amigas a incentivavam a participar dessas competições de cozinheiros. 

Você vai ganhar e vai ser famosa Amélia.

Amélia apenas ria. Era um sonho bonito. Mas por quê tinha que ser apenas um sonho? Por quê não podia ser uma realidade? Amélia não conseguiria sair daquela cidade.

Essa gente daqui não consegue entender nada. 

Amélia viu que a sua imaginação estava solta e precisava ser controlada. Ela tinha que se concentrar no almoço do outro dia. Afinal de contas era o dia de preparar a sua picanha especial. 

VII 

Pela manhã o homem da Companhia de Energia Elétrica chegou para cortar a luz daquela casa. 

Amélia você não pagou a conta de energia? 

Você pegou a conta e falou que ia pagar. Não coloque a. culpe em mim. Eu ainda avisei que você ia esquecer.

Foi um pandemônio, as manhãs, que já não eram boas, nesse dia estava infernal. Por sorte um amigo de trabalho de Mustafá tinha combinado de buscar ele em casa para irem juntos ao escritório e conseguiu acalmar um pouco os ânimos. 

Tamanha foi a confusão e Mustafá disse tantos impropérios para Amélia que o funcionário da Companhia Elétrica não teve coragem de cortar a energia. 

Vambora Mustafá. Deixa a sua mulher em paz. Vamos para o trabalho. A gente toma um café no caminho. 

Amélia ficou humilhada naquela casa. Que culpa ela tinha se o marido era desorganizado? 

Não! Ele não iria estragar o dia da picanha especial. 

Mustafá e o seu amigo pararam em uma padaria para tomar um café e conversar um pouco, uma forma de aliviar os ânimos antes do trabalho. 

Mustafá você pega muito pesado com Amélia. Uma hora ela vai deixar você. 

Olha, Amélia não sabe me perdoar. Depois do nosso casamento eu tive um caso com uma prima dela. Ela descobriu e mudou completamente. Ela se afastou de toda a família e culpa a mim. Ela não foi embora dessa cidade eu não sei por quê. Toda manhã eu saio de casa pensando que não vou encontrá-la à noite. Isso me deixa apreensivo e nervoso. Olha, esse meu nervosismo na verdade é causado pelo medo de nunca mais a ver. 

Mas Mustafá, você tem certeza que não está perdoado? 

Meu amigo eu tenho certeza que ela não me perdoou. 

Como você pode estar tão certo? 

Tenho certeza disso porque ela nunca mais cozinhou para mim! 

VIII 

Amélia chegou na casa com todos os ingredientes para preparar a insuperável picanha com molho de mostarda. Ela pegou a chave que estava escondida debaixo do tapete, olhou atentamente para os lados, abriu rapidamente a porta e foi direto para a cozinha. Deixou os ingredientes sobre a pia e abriu o seu livro de receitas, mesmo conhecendo-o de cor, para preparar com perfeição a picanha com molho de mostarda. A folha amarelada do livro estava escrita à mão: 

Modo de Preparo 

1. Coloque em uma vasilha os dois potes de mostarda, o molho de alho, o azeite e o sal grosso. 

2. Misture bem com um garfo, para que todos os ingredientes se tornem um molho só. 

3. Salpique um pouco de orégano no molho e misture mais um pouco. 

4. A picanha já deverá estar cortada em bifes e sem tempero. 

5. Pegue os bifes de picanha e lambuze no molho, até que o bife fique amarelo dos dois lados. 

6. Quando o bife estiver totalmente coberto pelo molho, retire-o da vasilha, e coloque-o diretamente na grelha da churrasqueira para assar. 

7. Repita a operação bife a bife, ou seja, lambuze os dois lados e coloque na grelha para assar. 

O homem chegou mais cedo desta vez para o almoço. Eles se beijaram com carinho. Ele ajudou Amélia no preparo. A refeição foi espetacular. Eles se conheceram no mercado e se encontravam no almoço. 

Amélia precisava cozinhar e amar para viver. 

E ela estava mais viva do que nunca.

POR LUCIANO ALMEIDA DE OLIVEIRA











- Marido, Pai,Advogado, Escritor 

Nota do Editor:

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