quinta-feira, 2 de agosto de 2018

A Prisão Civil dos Avós Idosos Na Execução de Alimentos


A prisão civil dos avós idosos na execução de alimentos é um problema relativamente novo enfrentado no universo jurídico. Isso porque decorre de uma alteração no perfil da família brasileira, antes fortemente patriarcal, com a figura paterna como provedora da família, a moderna concepção de família no Brasil contempla famílias monoparentais (apenas um dos pais e seus filhos), famílias formadas por tios e sobrinhos, avós e netos, e outras configurações.

Nesse novo contexto, inclusive tendo em conta o aumento da expectativa de vida da população brasileira, é comum ver o idoso como pilar e sustento da família. Pois, quando o idoso não continua ativo no mercado de trabalho formal ou informalmente, frequentemente é aposentado ou titular de benefícios da seguridade social o que o torna economicamente importante na família.

Como resolver o problema da utilização de um meio coercitivo extremo como a prisão civil, quando o exequido devedor de alimentos é o idoso, possuidor de proteção especial garantida por lei, muitas vezes em conjunturas periclitantes em termos econômicos, físicos e ou mentais?


A prisão civil dos avós idosos nas execuções de alimentos inúmeras vezes vem imbuída dessa questão, o avô sem condições de manter a si próprio termina nos tribunais como parte inadimplente em processos de execução, sem meios de prover alimentos aos netos, recai sobre ele a prisão civil, como forma de coagi-lo a cumprir com uma obrigação que se tornou muito onerosa.


Ocorre que o idoso, além de não estar em uma conjuntura que permita adimplir sua obrigação com os netos, pois, isso poderia por em risco o seu mínimo existencial, muitas vezes também necessita de cuidados especiais sobre sua saúde, como alimentação adequada, procedimentos médicos frequentes, entre outras particularidades.


Conhecendo a realidade do sistema prisional brasileiro, é possível afirmar que esses cuidados seriam facilmente negligenciados, pois, as carceragens estão apinhadas de presos nas mais diversas condições. O próprio ambiente da cadeia pública é suficiente para por em risco a vida de um indivíduo com saúde debilitada, como é comum ver os idosos.

Assim também entendeu o Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Humberto Gomes de Barros, na relatoria do Habeas Corpus nº. 35.171 – TJRS:

"No caso destes autos, não há laudo médico comprovando que o tratamento médico necessário não pode se ministrado no local do cumprimento da prisão civil. No entanto, o bom senso e a notoriedade da situação em que se encontram os estabelecimentos prisionais do País, mostra que um senhor de mais de 70 anos de idade e acometido por doenças graves, necessita de cuidados especiais, que são impossíveis de serem prestados em estabelecimentos prisionais comuns. (HC 35.171/TJRS. Acórdão STJ 486529. DJ 23/08/2004)."

Diante dessa conjuntura e da proteção que o ordenamento jurídico logrou lançar sobre os idosos, também é nítida a violação aos direitos fundamentais, à vida e ao envelhecimento com dignidade, ignorando o próprio princípio da dignidade da pessoa humana e a vedação constitucional às condenações cruéis, degradantes e à morte.

Os casos são inúmeros em que a obrigação alimentar suplanta a possibilidade do idoso e, por isso, há o inadimplemento e a consequente prisão. Sobre o assunto, segue o comentário da pesquisadora Fernanda Paula Diniz: 
"É sabido que hoje, no Brasil, grande parte dos idosos recebe aposentadorias baixíssimas e possui uma série de gastos, como, por exemplo, para medicamentos e, muitas vezes, o sustento de sua própria família. Assim, cabe aos magistrados verificar, no caso concreto, a existência da possibilidade do idoso para fornecimento de alimentos. O que se tem visto é que muitas vezes são estipuladas parcelas de alimentos incompatíveis com a subsistência desses idosos, que, não poucas vezes, são até presos pelo descumprimento do encargo. (DINIZ, 2011, p. 147)"
    
Porém, uma vez que a obrigação tenha sido arbitrada sem a consideração desses fatos, caberá ao magistrado lidar com o problema da prisão civil do idoso. São poucas as decisões que reconhecem a ilegalidade da prisão civil dos avós idosos, essas são em sua maioria alicerçadas no fato de que a obrigação alimentar dos avós para com os netos não pode ter um caráter de substituição dos pais ante seus filhos. Como exemplo, a ementa de decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça que concedeu a ordem em favor do paciente idoso:
"HABEAS CORPUS. PRISÃO CIVIL. DEVEDOR DE ALIMENTOS. MAIOR DE 75 ANOS E ACOMETIDO DE MOLÉSTIAS GRAVES. APLICAÇÃO EXCEPCIONAL DE NORMAS DA LEI DE EXECUÇÃO PENAL. - É legal a prisão civil de devedor de alimentos, em ação de execução contra si proposta, quando se visa ao recebimento das últimas três parcelas vencidas à data do mandado de citação, mais as que vencerem no curso do processo. Precedentes. - Em regra, não se aplicam as normas da Lei de Execuções Penais à prisão civil, vez que possuem fundamentos e natureza jurídica diversos. - Em homenagem às circunstâncias do caso concreto, é possível a concessão de prisão domiciliar ao devedor de pensão alimentícia. (HC nº. 44580/SP – 2005/0090952-0. Acórdão 567151-STJ. DJ 12/09/2005)."

Nota-se que esse tipo de coerção é ineficiente quando o idoso coagido não tem lastro financeiro para o sustento dos netos, desse modo, a inadimplência será recorrente, bem como as execuções, a possibilidade de prisão e até mesmo o risco ao mínimo necessário às duas partes: avós e netos. Cabe aqui citar novamente parte do relatório do Habeas Corpus nº. 35.171 – TJRS, pelo Ministro do STJ, Humberto Gomes de Barros:

"Aponta como autoridade coatora o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, que no julgamento de agravo de instrumento, manteve sentença que indeferiu pedido para que cumprisse a prisão em regime domiciliar. O Tribunal afirmou que não se aplica à prisão civil as normas da Lei de Execução Penal, em especial no que tange à prisão domiciliar, por possuírem natureza jurídica diversa. A impetrante sustenta que: a) o paciente encontra-se com 73 anos de idade; b) é portador de vários problemas de saúde (hipertensão, diabete,...); c) em razão da diabete surgiram outras complicações, como cegueira e surdez; d) o paciente requer cuidados especiais, e dentro do sistema carcerário é difícil a aplicação diária de insulina; e) o paciente preenche dois dos requisitos para o cumprimento da pena em regime domiciliar: tem mais de 70 anos e acometido de doença grave; f) o paciente não é criminoso, e apenas deixou de pagar a pensão alimentícia a sua ex-mulher, porque percebe R$ 600,00 (seiscentos reais) de aposentadoria do INSS e o valor da pensão é alto. (HC 35.171/TJRS. Acórdão STJ 486529. DJ 23/08/2004)."

É expressão de justiça a prisão do idoso nessas situações? A resposta depende da avaliação cuidadosa do caso concreto que exige a aplicação da razoabilidade e proporcionalidade não só na fixação dos alimentos, mas, no curso da própria execução.

Os julgadores precisam ponderar a aplicação da medida restritiva de direitos como a prisão civil à luz dos princípios constitucionais como a dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais como o direito à vida. Não se pode esquecer que, além do princípio do melhor interesse da criança, há também o melhor interesse do idoso, suas necessidades básicas, o idoso é tão sujeito de direito quanto e deve forçosamente ter seus direitos respeitados.

Existe nos Tribunais de Justiça brasileiros a tendência de tornar flexível o regime em que a prisão civil é cumprida, por uma aplicação análoga da Lei de Execuções Penais, que admite o chamado regime domiciliar nas prisões civis de pessoas idosas em situações especiais.

 O Superior Tribunal de Justiça fundamentou essa aplicação análoga da Lei de Execuções Penais no valor à vida do idoso, no direito ao envelhecimento, à felicidade, à dignidade.

Em regra, não é admissível que a prisão civil seja tratada da mesma forma que a prisão de caráter punitivo e pedagógico disciplinada pela Lei de Execuções Penais.

Porém, tendo em vista a estrutura do ordenamento jurídico brasileiro que se orienta pela Constituição Federal de 1988, considerando que o Poder Judiciário não possui a função precípua de legislar, mas, é hábil para construir o Direito como uma fonte deste, é plenamente entendível que se empreste o regime domiciliar à prisão civil diante de casos excepcionais como acontece com frequência na prisão civil dos idosos.

Apesar disso, a tese aqui defendida que a prisão civil do idoso nas execuções de alimentos sequer deve ser ordenada, nem mesmo admitida em lei. Atualmente, já tramita no Senado Federal o Projeto de Lei nº. 151 de 2012 que visa "impedir a prisão do idoso devedor de pensão alimentícia".
            
A justificativa do PL nº. 151/2012 resume a ideia aqui defendida e merece ser citada:

"Este projeto tem por objetivo impedir a prisão do idoso devedor de alimentos. Por causa da inadimplência do filho, o avô idoso acaba sendo preso para o pagamento de alimentos ao neto. A verdade é que muitos idosos são presos civilmente por causa da irresponsabilidade alheia. Não é certo que pessoas de saúde frágil, com grandes gastos com medicamentos, médicos e hospitais, sejam submetidas a esse tipo de humilhação, ainda mais nesta fase da vida. Conquanto seja legítimo o direito do menor de cobrar alimentos dos seus ascendentes (pais e avós), essa obrigação civil não deve chegar ao ponto de constranger o idoso com a ameaça de prisão. (PAIM, 2012)"
           
Recentemente, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o Habeas Corpus Nº 416.886 - SP (2017/0240131-0), decorrente de prisão civil decretada em ação de alimentos proposta pelos netos em desfavor dos avós, decidiu que a execução de alimentos prestados pelos avós não deveria seguir o mesmo rito estabelecido para os pais das crianças:

"CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. HABEAS CORPUS. PRISÃO CIVIL POR ALIMENTOS. OBRIGAÇÃO ALIMENTAR AVOENGA. CARÁTER COMPLEMENTAR E SUBSIDIÁRIO DA PRESTAÇÃO. EXISTÊNCIA DE MEIOS EXECUTIVOS E TÉCNICAS COERCITIVAS MAIS ADEQUADAS. INDICAÇÃO DE BEM IMÓVEL À PENHORA. OBSERVÂNCIA AOS PRINCÍPIOS DA MENOR ONEROSIDADE E DA MÁXIMA UTILIDADE DA EXECUÇÃO. DESNECESSIDADE DA MEDIDA COATIVA EXTREMA NA HIPÓTESE. 1- O propósito do habeas corpus é definir se deve ser mantida a ordem de prisão civil dos avós, em virtude de dívida de natureza alimentar por eles contraída e que diz respeito às obrigações de custeio de mensalidades escolares e cursos extracurriculares dos netos. 2- A prestação de alimentos pelos avós possui natureza complementar e subsidiária, devendo ser fixada, em regra, apenas quando os genitores estiverem impossibilitados de prestá-los de forma suficiente. Precedentes. 3- O fato de os avós assumirem espontaneamente o custeio da educação dos menores não significa que a execução na hipótese de inadimplemento deverá, obrigatoriamente, seguir o mesmo rito e as mesmas técnicas coercitivas que seriam observadas para a cobrança de dívida alimentar devida pelos pais, que são os responsáveis originários pelos alimentos necessários aos menores. 4- Havendo meios executivos mais adequados e igualmente eficazes para a satisfação da dívida alimentar dos avós, é admissível a conversão da execução para o rito da penhora e da expropriação, que, a um só tempo, respeita os princípios da menor onerosidade e da máxima utilidade da execução, sobretudo diante dos riscos causados pelo encarceramento de pessoas idosas que, além disso, previamente indicaram bem imóvel à penhora para a satisfação da dívida. 5- Ordem concedida, confirmando-se a liminar anteriormente deferida. HABEAS CORPUS Nº 416.886 - SP (2017/0240131-0)"

No caso em comento, os avós espontaneamente resolveram custear as mensalidades escolares e dos cursos extracurriculares dos netos em 2009, no entanto, em 2014 deixaram de pagar.

A Ministra Nancy Andrighi, relatora do processo, sustentou que "Sopesando-se os prejuízos sofridos pelos menores e os prejuízos que seriam causados aos pacientes se porventura for mantido o decreto prisional e, consequentemente, o encarceramento do casal de idosos, conclui-se que a solução mais adequada à espécie é autorizar, tal qual havia sido deliberado em primeiro grau de jurisdição, a conversão da execução para o rito da penhora e da expropriação, o que, a um só tempo, homenageia o princípio da menor onerosidade da execução e também o princípio da máxima utilidade da execução".

Citou ainda precedentes no sentido da complementariedade e da subsidiariedade dos alimentos prestados pelos avós: "A despeito disso, não se pode olvidar que, na esteira da sólida jurisprudência desta Corte, a responsabilidade pela prestação de alimentos pelos avós possui, essencialmente, as características da complementariedade e da subsidiariedade, de modo que, para estender a obrigação alimentar aos ascendentes mais próximos, deve-se partir da constatação de que os genitores estão absolutamente impossibilitados de prestá-los de forma suficiente. Nesse sentido: REsp 1.211.314/SP, 3ª Turma, DJe 22/09/2011, REsp 1.415.753/MS, 3ª Turma, DJe 27/11/2015 e REsp 1.249.133/SC, 4ª Turma, DJe 02/08/2016".
            
O voto da relatora foi seguido com unanimidade pela 3ª Turma que concedeu o Habeas Corpus ao casal de idosos, ressaltando ainda que a ordem concedida afasta apenas prisão civil, mantendo a possibilidade de outros meios para que a execução atinja sua finalidade e os valores devidos a título de pensão alimentícia sejam adimplidos pelos idosos.
           
Dessa forma, verifica-se que a jurisprudência segue para o caminho de considerar as peculiaridades do idoso devedor de alimentos, afastando a possibilidade de prisão civil.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


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INSTITUTO Brasileiro de Geografia e Estatística. Guia do CENSO 2010 para Jornalistas. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/presidenc 
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PAIM, Paulo. Projeto de Lei Nº 3.561: dispõe sobre o Estatuto do Idoso e dá outras providências. Câmara dos Deputados. Disponível em: www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposic 
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REDE Interagencial de Informação para a Saúde - RIPASA. Indicadores básicos para a saúde no Brasil: conceitos e aplicações. 2. ed. Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde, 2008. Disponível em: http:// portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/ind_basicos_2_edicao.pdf. Acesso em 01/08/2018;e

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POR MARIANA COSTA


-Advogada, inscrita na OAB/DF nº 41.871;
-Especialista em Direito Processual Civil
-Atuante nas áreas de Família, Sucessões, Direito da Mulher, Criança e Adolescente, Direito Homoafetivo,e
-Mediadora Familiar.

Nota do Editor:
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2 comentários:

  1. Caríssima, é um paradoxo lastimável promover a coerção de uma avó devido a falta de provimento que na realidade primária não é sua; ver gente que roubou bilhões em prisão domiciliar e negar a uma pessoa humilde por crime de terceiros?

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  2. Parabéns pela matéria. Preocupante essa obrigação atribuída a quem já cumpriu seu dever para com os filhos e com isso aumenta a desobrigacão de muitos pais irresponsáveis.

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