domingo, 4 de outubro de 2020

A Culpa não é do Outro


 Autora: Renata Pereira(*)



Case-se com alguém com quem você goste de conversar”. Nesse texto o pensador francês  Simone Athayde enfatiza o diálogo e a cumplicidade como sendo os principais antídotos para os casais sobreviverem ao tempo. Mal sabia ele que conversa e cumplicidade também seriam antídotos poderosos contra uma pandemia.

 

A COVID-19 nos trancou em casa, e independente de se você mora sozinha ou não, se é solteiro ou casado, se tem ou não filhos, conversar é o que temos feito na maior parte do tempo. E quando o contato é por ligação, mensagem ou chamada de vídeo, pior ainda, pois a comunicação verbal é praticamente o único recurso: se não há mais o que dizer, a chamada é encerrada.

 

A comunicação verbal, seja ela falada ou escrita é o recurso que restou para paquerar, namorar, se divertir, estudar, trabalhar, fazer compras e resolver conflitos. Sem a liberdade para ir e vir, não temos mais como fugir do confronto com o que nos incomoda em nós mesmos ou nos outros. Antes era mais fácil não pensar nos problemas, era mais fácil dividir o mesmo teto, porque passávamos pouco tempo em casa.

 

Agora, o confinamento não nos aprisiona somente em nossas casas, mas em nós mesmos e em nossas relações, e fica muito difícil viver sem olhar para os problemas de frente, ao mesmo tempo em que temos de nos adaptar a mudanças na rotina, às incertezas do futuro e a vários medos como os de adoecer e perder quem amamos.

 

É como estar em uma panela de pressão, prestes a explodir, e a comunicação é uma faca de dois gumes, pois dependendo da forma como ocorrer, ela pode gerar explosões dolorosas ou um alívio poderoso.

 

Vivemos em uma cultura na qual somos ensinados a julgar, culpar e punir os outros. Somos levados a acreditar que as atitudes das pessoas são as causas de nossos sentimentos, sejam eles amor, medo, alegria, raiva, tristeza e muitos outros. Então, se você quer melhorar sua forma de se comunicar e conseguir uma relação de cumplicidade com as pessoas que estão com você, não só durante a pandemia, mas para o resto da vida, a coisa mais importante que você precisa aprender é que o que o outro faz não é a causa de nada. 

 

Se olharmos atentamente para nossas reações ao que uma pessoa faz ou diz, vamos perceber que reagimos com calma, alívio, alegria e prazer quando a atitude do outro atende a nossas necessidades. Porém, quando o que o outro faz não atende nossas necessidades, podemos sentir raiva, tristeza ou frustração.

 

Quando o outro atende a nossas necessidades e vice versa, a relação tende a ser bastante tranquila. O problema começa, obviamente, quando isso não acontece. Então, da próxima vez que sentir raiva, tristeza ou frustração, em vez de acusar, atacar, presumir os motivos do outro, virar a cara, retaliar, julgar, punir ou qualquer outro movimento desse tipo, que fazemos de forma automática porque foi o que aprendemos a fazer, apenas pare, não faça nada, só respire.

 

Enquanto respira, pergunte-se: "qual necessidade minha está gerando meu sentimento?". Por exemplo, quando a mulher fica com raiva ao ver que, mais uma vez, o marido não lavou a louça depois do jantar, o que está por trás dessa raiva pode ser uma necessidade de ser apoiada ou de ordem. Se não fosse isso, talvez ela não se importasse. Sem ter consciência disso, a mulher provavelmente chega para o marido e diz: "você só pode estar brincando com a minha cara!! Não está nem aí para mim... quantas vezes vou ter que falar para você lavar a louça??!!."

 

Uma fala assim, coloca quem ouve na defensiva imediatamente, e é uma questão de poucos segundos para a briga escalar. Ao contrário, se a mulher está consciente de suas necessidades e entende que são elas as causas de sua raiva, ela não vai julgar que ele não está nem aí nem pressupor que ele faz de propósito para provocá-la, e pode dizer algo como: "quando você não lava a louça depois do jantar, eu fico frustrada, pois estou precisando muito de seu apoio para manter a casa em ordem". Quando nos responsabilizamos pelo que sentimos e comunicamos isso ao outro, aumentamos nossas chances de termos nossas necessidades atendidas.

 

Por trás de todo comportamento existe uma necessidade querendo ser atendida, tanto de nossa parte quanto da parte do outro. O comportamento de mentir de um filho pode estar expressando a necessidade de se proteger do castigo extremo; uma desobediência pode ocorrer por uma necessidade de ser menos pressionado. Mas qual a nossa tendência? Logo achamos que a criança está disputando o poder com a gente e que precisa ser punida por isso.

 

Enquanto não abandonarmos a visão simplista de dividir o mundo entre bons e maus, certo e errado, amigos e inimigos, preto ou branco... estaremos sempre condenados a viver competindo, a machucar e a sermos machucados e a vivermos vidas pouco satisfatórias, pois nós mesmos não sabemos do que precisamos, quanto mais como pedir isso ao outro. Só gostamos de conversar com quem está a nosso lado quando aprendemos a falar e a ouvir.

 

REFERÊNCIAS:

 

ROSENBERG. Marshall B. Comunicação não-violenta: técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais I Marshall B. Rosenberg; [tradução Mário Vilela]. São Paulo: Ágora, 2006.


* RENATA PEREIRA

 













-Psicóloga formada pela Universidade Prebsteriana Mackenzie;


-Especialista em Terapia Comportamental Cognitiva pelo Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP;e
Atende adolescentes e adultos em psicoterapia individual e em grupo.
CONTATOS:
Email: renatapereira548@gmail.com
Twitter:@Repereira548

Nota do Editor:

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