quinta-feira, 29 de outubro de 2020

A Deserdação no Direito Brasileiro


 

Autor:Sergio Luiz Pereira Leite(*)



Em artigos anteriormente publicados, fizemos algumas anotações sobre o testamento e as formas, apreciamos o codicilo, o legado, a sucessão por representação e, agora, teceremos algumas considerações sobre a deserdação. Não que este estudo tenha a ousada pretensão de exaurir matéria tão densa, muito longe disso. Mas nas linhas abaixo, uma síntese desse instituto pode apresentar seus contornos mais relevantes.

Pois bem, o direito substantivo civil, ainda no livro que aborda a sucessão, contêm artigos que regem os aspectos sobre a deserdação (artigos 1.961 até 1.965). Mas o que é e como se dá a deserdação? 

Inicialmente, é bom que se conceitue o que é a deserdação. E a deserdação pode ser definida como a disposição testamentária pela qual o testador exclui da sua sucessão um ou alguns herdeiros necessários. 

Por herdeiro necessário devemos entender aqueles indivíduos que estão elencados nos artigos 1.845 até 1.850, ou seja, os descendentes, os ascendentes e o cônjuge, sendo que este último não constava da legislação anterior (Código Civil de 1916). Dessa maneira, estes são os herdeiros que podem ser deserdados. 

A eles, herdeiros necessários, é sempre reservada a metade dos bens do testador, uma vez que este pode dispor, da maneira que quiser, a outra metade, porquanto a obrigatoriedade de reserva tem clara e profunda função social e protetiva da família (artigo 1.789). 

Sobre essa metade, a dos herdeiros necessários, não pode o testador gravar as cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade ou incomunicabilidade. Para que isto ocorra, a justa causa precisa ser declarada, novidade introduzida pela nova legislação civil de 2003. 

E esta declaração, se assegura o direito ao testador, pode também lhe criar algum desconforto, pois ele será obrigado a mencionar a razão da causa de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade. Na legislação revogada esses gravames eram de livre disposição do testador, sem que existisse a justa causa para tanto. 

Um exemplo dessa situação nos é dado por Mauro Antonini*, quando diz, nos seus comentários ao artigo 1.848 do Código Civil, que o testador haverá de declinar os motivos para a imposição dos gravames. São suas estas palavras: 
"...para alcançar essa solução intermediária, o atual Código Civil, assegura o direito ao testador, mas lhe impõe considerável constrangimento para exercê-lo, pois terá de declarar, por exemplo, ser a justa causa para a incomunicabilidade o fato de o genro ser um aproveitador, indicando fatos concretos que justifiquem a pecha...". 
Naturalmente essa declaração pode ser questionada em Juízo, quando da abertura da sucessão, pelo herdeiro excluído, caso se sinta prejudicado. Mas para melhor dimensionar o alcance dessas disposições legais, quanto aos colaterais, é preciso que façamos a conjugação dos artigos acima mencionados com o artigo 1.847, segundo o qual, para os excluir da sucessão, basta que o testador disponha do patrimônio sem os contemplar. 

Mas somente em casos excepcionais e expressos permite a lei que o autor da herança prive seus herdeiros necessários não só da porção disponível como até mesmo da legítima, deserdando-os por meio de testamento, que é a única forma admitida. 

E quais seriam esses casos? A resposta novamente encontra sua essência na conjugação entre 1.814 (excluídos da Sucessão) e 1962 e seguintes da lei substantiva civil. Dessa forma temos que: 

"Artigo 1.814 – São excluídos da sucessão os herdeiros ou legatários: 

I – Que houverem sido autores, coautores ou partícipe de homicídio doloso, ou tentativa deste, contra a pessoa de cuja sucessão se tratar seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente; 

II- Que houverem acusado caluniosamente em juízo o autor da herança ou incorrerem em crime contra a sua honra, ou de seu cônjuge ou companheiro; 

III-que, por violência ou meios fraudulentos, inibirem ou obstarem o autor da herança de dispor livremente de seus bens por ato de última vontade. "

É muito importante observar que deserdação não se confunde com indignidade, embora ambas tenham a mesma finalidade, qual seja, excluir da sucessão quem praticou atos condenáveis contra o de cujus. 

Ambos os institutos têm o mesmo fundamento — a vontade do de cujus —, com a diferença que, para a indignidade, o fundamento é vontade presumida, enquanto a deserdação só pode fundar-se na vontade expressa do testador. 

Em realidade, há semelhanças e traços comuns entre os dois institutos. O art. 1.961 do Código Civil dispõe que: 
"Os herdeiros necessários podem ser privados de sua legítima, ou deserdados, em todos os casos em que podem ser excluídos da sucessão". 
Os artigos 1.962 e 1.963 acrescentam outras causas delituosas de deserdação, quer de descendente quer de ascendente. 

Não obstante as semelhanças apontadas, indignação e deserdação não se confundem. Têm pontos de coincidência nos efeitos, mas diferem na sua estrutura, como nos ensina Carlos Roberto Gonçalves*. Distinguem-se basicamente: 

a) pela sua causa eficiente. A indignidade decorre da lei, que prevê a pena somente nos casos do art. 1.814 do Código Civil. Na deserdação, é o autor da herança quem pune o responsável, em testamento, nos casos previstos no aludido dispositivo, bem como nos constantes do art. 1.96;

b) pelo seu campo de atuação. O Código Civil de 2002 continua a tratar a deserdação como um instituto da sucessão testamentária. Assim, pode-se afirmar que a indignidade é instituto da sucessão legítima, malgrado possa alcançar também o legatário, enquanto a deserdação só pode ocorrer na sucessão testamentária, pois depende de testamento, com expressa declaração de causa (art. 1.964). Aquela pode atingir todos os sucessores, legítimos e testamentários, inclusive legatários, enquanto esta é utilizada pelo testador para afastar de sua sucessão os herdeiros necessários (descendentes, ascendentes e cônjuge), também chamados reservatários ou legitimários, aos quais a lei assegura o direito à legítima. Somente a deserdação pode privá-los desse direito. 

Malgrado a deserdação continue a ser tratada, formalmente, como instituto da sucessão testamentária, poderia fazer parte da sucessão legítima, se considerada a sua substância, uma vez que a sua consequência consiste em privar da quota necessária os herdeiros obrigatórios ou legitimários.

Anote-se que, se o testamento for nulo, e por isso a deserdação não se efetivar, poderão os interessados pleitear a exclusão do sucessor por indignidade, se a causa invocada pelo testador for causa também de indignidade. 

c) pelo modo de sua efetivação. A exclusão por indignidade é postulada por terceiros interessados em ação própria e obtida mediante sentença judicial (Código Civil, artigo 1.815). A deserdação, todavia, como foi dito, se dá por testamento, com expressa declaração da causa (artigo 1.964). 

Retroagem os efeitos até a data da abertura da sucessão. E o herdeiro é considerado como se tivesse morrido antes do testador. Mas não se afastam seus herdeiros da sucessão, porque a deserdação tem caráter personalíssimo, não atingindo terceiros. Os descendentes do excluído substituem-no, ou ficam no seu lugar por direito de representação. 

Malgrado os que pensam o contrário, fazendo construções em cima da inexistência de dispositivos que tratam da deserdação de igual conteúdo aos que regulam a indignidade, repugna pensar que pode o castigo atingir pessoas diversas dos que infringiram a lei, ou descendentes delas, que são herdeiros, e nada tiveram com os atos de improbidade ao testador. 

Estes, em essência, os apontamentos que faço sobre esse tema. 

BIBLIOGRAFIA 

  •  ANTONINI Mauro – Código Civil Comentado – editora Manole – 1ª edição; 
  •  STOLZE GAGLIANO Pablo e PAMPLONA FILHO Rodolfo – Novo Curso de Direito Civil 19ª Edição- Editora Saraiva;
  •  GONÇALVES Carlos Roberto – Direito Civil Brasileiro – 15ª edição – 2017 – Saraiva;
  • RIZZARDO Arnaldo – Direito das Sucessões – 9ª edição – GEN;
  •  AZEVEDO Álvaro Villaça de – Curso de Direito Civil – 4ª edição – Saraiva;
  • TARTUCE Flávio ­– Coleção de Direito Civil – 14ª edição – 2017 – GEN;
  • CHAVES DE FARIA CRISTIANO e ROSENVALD Nelson – Curso de Direito Civil – 15ª edição – JusPodium;
  •  MORAES MELLO Cleyson - DIREITO CIVIL – 2ª edição – 2017 – Freitas Bastos Editora;
  • · SILVA PEREIRA Caio Mário da – Instituições de Direito Civil – 24ª edição – 2017 – Forense 
*SERGIO LUIZ PEREIRA LEITE














-Advogado militante nas áreas cível e criminal na Comarca de Tietê, Estado de São Paulo.

 Nota do Editor:

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