terça-feira, 27 de outubro de 2020

A "Rede", a “Nuvem", o Controle da Informação pela Lei


 Autor: Batuira  Rogério Meneghesso Lino(*)

Países do mundo inteiro estão normatizando o uso das informações de bancos de dados pelas empresas que os acessam. O regime de normas jurídicas, tal como o conhecemos, será suficiente a garantir nossa liberdade ? Ou estamos nos entregando, de modo voluntário, conscientemente ou inconscientemente, a um novo (e talvez definitivo) Leviatã ?   

"A informação é a fonte do poder" (autor desconhecido)

"Nada de grandioso entra na vida dos mortais sem uma maldição" (Sófocles, 497 ou 495 a.C)

".... o Progresso e a Ruína são duas faces da mesma medalha; ambas resultam da superstição, não da fé” (Hanna Arendt, “Origens do Totalitarismo", Cia. das Letras, 2012 – 15ª reimpressão, 2020 – p.12)

 

Nos primeiros dias de aula na faculdade de Direito aprendemos, grosseiramente falando, que o direito (e, consequentemente, a lei, norma jurídica) é uma criação humana destinada a regular e organizar a vida em sociedade, sem o que os homens viveriam na barbárie sendo impossível a convivência social.

No dizer de Durkhein: "a sociedade sem o direito não subsistiria, seria anárquica, teria o seu fim. O direito é a grande coluna que sustenta a sociedade. Criado pelo homem, para corrigir sua imperfeição, o direito apresenta um grande esforço para adaptar o mundo exterior às suas necessidades de vida." ([1])

Aprendemos, também, que a Lei caminha sempre a reboque das mudanças de comportamento social e cultural da humanidade, de modo que acaba sempre por regular, com algum atraso, as relações sociais que demandem a intervenção do Direito para "pacificá-las".

Do final da primeira metade do último século a nossos dias, porém, uma enorme transformação ocorreu em razão da criação de máquinas destinadas a executar cálculos rapidamente ("computador eletromecânico") as quais evoluíram para os computadores analógicos e depois para os digitais ([2]).

Essas máquinas têm a capacidade de processar milhões de dados em um picossegundo (equivalente a um trilionésimo de segundo), analisando-os, comparando-os,  selecionando-os e agrupando-os, tendo elas sido conectadas entre si, criando-se então a "rede mundial de computadores" conhecida pelo prefixo WWW (World Wide Web), popularmente chamada de "Rede".

A elas vieram juntar-se as máquinas de uso doméstico e pessoal que são a interface de comunicação humana com esse banco de dados armazenado em supercomputadores e cujas informações estão ao alcance do dedo de qualquer cidadão, valendo acrescentar que a velocidade de processamento de dados e informações possibilitou a criação de aplicativos de comunicação virtual entre pessoas, independente da distância que as separe dentro do planeta.

E tudo, aparentemente, "de graça" já que a conta é paga pelos anunciantes dos sítios de Internet. Esses anunciantes, por sua vez, têm acesso aos dados pessoais dos usuários que os fornecem consciente ou inconscientemente, pois um simples "clique" no botão "ACEITO", que aparece em sítios das mais diferentes empresas (de notícias à venda de produtos), autoriza a utilização dos dados pessoais do usuário, além de permitir a instalação de "cookies" que são pequenos arquivos que se instalam em seu computador, tablet ou celular, através dos quais o respectivo comportamento passa a ser monitorado. Isto sem mencionar situações mais prosaicas, tais como a das informações pessoais que se fornece, por exemplo, na Drogaria e no comércio em geral, para fazer o famigerado "cadastro", sem o qual a pessoa "não existe".

A "Rede" foi criada há 30 anos (1990) ganhando dimensão planetária nos últimos 10 anos graças, principalmente, à proliferação dos smart phones, que parecem ter-se tornado um apêndice do corpo humano da quase absoluta maioria das pessoas, mundo afora, especialmente em razão da criação das "redes sociais", que fascinam de crianças a adultos.

Essas mudanças tecnológicas e de comportamento humano resultaram em profundas alterações sociais, que vão desde os hábitos de consumo, às relações pessoais, inclusive amorosas, até a discussão política, tendo se disseminado na "Rede" as "fake news" sobre assuntos os mais diversos que vão desde questões de saúde às de política mundial, havendo aplicativos capazes de forjar discursos de pessoas, colocando em sua boca, coisas que jamais disseram.

Pois bem, com toda a velocidade dessas mudanças, a distância entre a realidade social e a Lei aumentou exponencialmente, visto que o legislador não consegue acompanhá-las e só muito recentemente passou-se a regular o uso das informações coletadas pela "Rede", visando proteger a individualidade e a liberdade das pessoas.

No Brasil, a Lei 12.965 de 23/04/2014 criou o "marco civil da Internet" e mais recentemente a Lei 13.709/2018, com redação alterada pela Lei 13.853/2019, a chamada "Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD)" destinam-se a regular o uso e compartilhamento de dados obtidos via Internet.

A LGPD tem dispositivos já em vigor e outros que só terão vigência a partir de agosto de 2021. Muito genericamente falando, essa norma legal traça os limites de utilização de dados pessoais que caem na "Rede", estabelecendo regras de compliance para as empresas detentoras dos dados (operadoras e controladoras) e fixando pesadas multas a quem divulgue dados irregularmente, por exemplo, sem a prévia autorização escrita ou inequívoca  de seu titular além dos demais casos estabelecidos no artigo 7º, seus incisos e parágrafos da LGPD.

O "vazamento" de dados acarreta a responsabilidade civil do operador e do controlador dos dados além de ser punível administrativamente, sendo a culpa tratada quase objetivamente, embora com presunção juris tantum (ou seja, presunção que admite prova em contrário), observadas as exceções estabelecidas no artigo 43, I a III, cujos incisos I e II estabelecem o ônus de provar negativamente ("prova diabólica"), além do que o artigo 42, § 2º, admite a inversão do ônus da prova o que, quase sempre, resulta na necessidade de produção de prova negativa, também ([3]).

E aí chegamos ao dilema do distanciamento entre a realidade e a norma que pretende discipliná-la: como antes referido, a velocidade do avanço da tecnologia jamais foi tão rápido como nos dias que correm. A situação só encontra parâmetro na ficção científica a qual, aliás, está sendo ultrapassada rapidamente pela realidade.

Como controlar a utilização de dados quando um simples relógio eletrônico de pulso, consegue monitorar seus batimentos cardíacos (fazendo eletrocardiograma instantâneo), a saturação de seu oxigênio no sangue,  sua movimentação e localização e suas preferências musicais, transmitindo tudo para seu celular via "nuvem"? Como controlar essa utilização quando os computadores e demais aparelhos eletrônicos estão cada vez mais conectados na mesma "nuvem", armazenando seus dados com sua autorização expressa ou tácita, esta pela ânsia de estar "update" com os aplicativos e as “redes sociais”, que só são acessíveis mediante a escolha da opção "aceito", cujas condições contratuais ninguém se dá ao trabalho de ler e nem interessa ?

A conexão na "nuvem" está se ampliando de tal forma que os servidores privados, seja o harddisk instalado em seu micro doméstico, seja o harddisk instalado nos servidores do seu local de trabalho, estão ficando totalmente obsoletos.

Quem controla a "nuvem"? Onde ela está fisicamente?

Essas são questões básicas, irrespondíveis. A "Rede" (nome bastante sugestivo, aliás), captura informações a todo instante, quando circulam pela "nuvem", independente da vontade de quem quer que seja, e do mais rigoroso cuidado que os "operadores" e "controladores" possam exercer sobre o sigilo de dados que manuseiam.

E não estou tratando aqui de "hackers", mas do próprio sistema de transmissão e processamento de dados na "nuvem", que hoje abrange, inclusive, serviços de comunicação telefônica.

A "Rede", através da "nuvem", tem o controle cada dia mais absoluto sobre as pessoas. É o novo Leviatã [4]. Porém, não um soberano de carne e osso, como pensado por Hobbes, mas um ser sem rosto, sem identidade, incorpóreo, que controla a tudo e a todos que se submetem à servidão voluntária ([5]) de um modo jamais imaginado por De La Boétie (1530 – 1563) e, talvez, somente por alguns escritores de ficção científica, da segunda metade do século XX.

Essa, a meu ver, á a realidade social que nenhuma lei será capaz de regular. Os conceitos de liberdade individual e de controle social através do império da Lei estão fadados, em curtíssimo prazo, a desaparecer, com quebra de todo o arcabouço construído a partir da Revolução Francesa, num "admirável mundo novo" que quem viver verá.

P.S.: 

A respeito dos supercomputadores, a quem se interessar, recomendo a leitura de dois contos, curtíssimos, de ficção científica: "A Resposta" (disponível in https://www.blogs.unicamp.br/100nexos/2007/09/30/resposta-de-frederic-brown-1954/) e os  "9 bilhões de nomes de Deus" 

(disponível inhttps://nuhtaradahab.wordpress.com/2008/01/04/arthur-c-clarke-conto-os-nove-bilhoes-de-nomes-de-deus/) e, principalmente, o documentário em cartaz na Netflix, "O Dilema das Redes".

REFERÊNCIAS

[1] DURKHEIM, Émile, As regras do método sociológico, São Paulo, Cia. Ed. Nacional, 1960, citado por Wanessa Mota Freitas Fortes, no artigo “Sociedade, direito e controle social”, in Revista Âmbito Jurídico

https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-82/sociedade-direito-e-controle-social/#:~:text=3.- ,Instrumentos%20de%20controle%20social,e%2C%20obviamente%2C%20o%20Direito.

"Art. 42. O controlador ou o operador que, em razão do exercício de atividade de tratamento de dados pessoais, causar a outrem dano patrimonial, moral, individual ou coletivo, em violação à legislação de proteção de dados pessoais, é obrigado a repará-lo.

§ 1º A fim de assegurar a efetiva indenização ao titular dos dados:

I - o operador responde solidariamente pelos danos causados pelo tratamento quando descumprir as obrigações da legislação de proteção de dados ou quando não tiver seguido as instruções lícitas do controlador, hipótese em que o operador equipara-se ao controlador, salvo nos casos de exclusão previstos no art. 43 desta Lei;

II - os controladores que estiverem diretamente envolvidos no tratamento do qual decorreram danos ao titular dos dados respondem solidariamente, salvo nos casos de exclusão previstos no art. 43 desta Lei.

§ 2º O juiz, no processo civil, poderá inverter o ônus da prova a favor do titular dos dados quando, a seu juízo, for verossímil a alegação, houver hipossuficiência para fins de produção de prova ou quando a produção de prova pelo titular resultar-lhe excessivamente onerosa.

§ 3º As ações de reparação por danos coletivos que tenham por objeto a responsabilização nos termos do caput deste artigo podem ser exercidas coletivamente em juízo, observado o disposto na legislação pertinente.

§ 4º Aquele que reparar o dano ao titular tem direito de regresso contra os demais responsáveis, na medida de sua participação no evento danoso."

"Art. 43. Os agentes de tratamento só não serão responsabilizados quando provarem:

I - que não realizaram o tratamento de dados pessoais que lhes é atribuído;

II - que, embora tenham realizado o tratamento de dados pessoais que lhes é atribuído, não houve violação à legislação de proteção de dados; ou

III - que o dano é decorrente de culpa exclusiva do titular dos dados ou de terceiro."

 [4] Hobbes, Thomas -  Leviatã também diz respeito a obra do cientista político e jusnaturalista Thomas Hobbes (Malmesbury, 5 de abril de 1588 — Hardwick Hall, 4 de dezembro de 1679). Em sua obra, Hobbes afirmava que a "guerra de todos contra todos" (Bellum omnium contra omnes) que caracteriza o então "estado de natureza" só poderia ser superada por um governo central e autoritário. O governo central seria uma espécie de monstro - o Leviatã - que concentraria todo o poder em torno de si, e ordenando todas as decisões da sociedade (https://pt.wikipedia.org/wiki/Leviat%C3%A3)

 [5] Em sua obra Discurso sobre a Servidão Voluntária, La Boétie analisa a relação de subordinação existente entre o soberano e seus súditos num governo tirânico. Nesse sentido, o autor enxerga a disparidade entre a unicidade da figura do tirano e o número de súditos, os quais possuindo a mesma quantidade de poder que o déspota e, consequentemente, tendo seu direito natural à liberdade cerceada. O poder do tirano, por sua vez, aumenta progressivamente à medida que seus servos sustentam a sua condição subserviente. Conforme afirma La Boétie, há três espécies de tiranos: o primeiro acede ao poder por meio do voto, o segundo pelas armas e o terceiro pela sucessão.

 *BATUIRA ROGÉRIO MENEGHESSO LINO









-Advogado em São Paulo;

-Graduado em 1972 pela USP;

-Atuando na área de consultivo e contencioso cível;

-É sócio do escritório Lino, Beraldi e Belluzzo Advogados. 


Nota do Editor:
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