sábado, 30 de janeiro de 2021

Cursinhos populares uma forma de erradicar a desigualdade social


 

Autora: Verine Veiga(*)

O presente artigo tem como objetivo central discutir as origens dos Cursinhos Populares em todo o Brasil e também discutir o regime meritocrático dos vestibulares em nosso país.

O surgimento do movimento dos denominados "pré-vestibulares populares" está associado à desigualdade de acesso ao ensino superior brasileiro, particularmente aos pobres e afro-descendentes. A luta pela democratização do acesso ao ensino superior abre um debate sobre o próprio sistema de ensino, pois sua progressiva universalização ainda contrasta com a qualidade do ensino ofertado à juventude brasileira.

A Conferência Mundial sobre o Ensino Superior, realizada em Paris em outubro de 1998, reuniu a comunidade acadêmica para debater sobre os rumos da educação superior e o papel da universidade no contexto societário. Desse encontro, por meio da Declaração de Paris, uma ampla agenda de questões foi levantada e, do ponto de vista formal, reafirmou-se, entre outras coisas, o compromisso com o conhecimento como patrimônio social e com a educação pública. 

Além disso, foi definido no Acordo de Santiago, durante a I Cumbre – Reunião de Reitores de Universidades Públicas Ibero-Americanas, em agosto de 1999, o conceito de universidade pública: 
"O público é o que pertence a todo povo. A universidade pública é a que pertence à cidadania e está a serviço do bem comum" (PANIZZI, 2002, p. 13). 
A partir dessa reunião, seguiram-se diversos outros encontros e outros protocolos de intenções acerca do papel estratégico do ensino superior público, ratificando a educação como um direito. 

Nesse sentido, vale lembrar que o Brasil é signatário de diversos protocolos que procuram fortalecer a universidade pública, democratizando o acesso e a permanência dos estudantes. Contudo, mesmo diante de alguns avanços importantes em sua democratização, como uma maior oferta de vagas e de cursos noturnos e da política de ações afirmativas (PEREIRA, 2008), o ensino superior público brasileiro é ainda muito elitista e extremamente excludente. 

A conquista por uma vaga numa instituição de ensino superior (IES) pública – federal ou estadual – fica praticamente inalcançável para aqueles que não tiveram acesso aos recursos educacionais, familiares, afetivos e emocionais suficientes para vencer a disputa. Dessa forma, devido ao contexto socioeconômico que oprime boa parte da população, ao sucateamento da escola pública que atua decisivamente para a diminuição da qualidade do ensino ofertado e à necessidade permanente de qualificação que o mercado de trabalho exige, configura-se um descompasso entre a excelência das IES públicas e a sua disponibilidade de estar aberta àqueles que mais precisam de seu serviço. 

Assim, na prática, ainda é preciso que se percorra um grande caminho entre as intenções expressas pela própria comunidade acadêmica, que já está incluída no ensino superior, contidas na Declaração de Paris, e a realidade de exclusão de pobres, negros e índios dos bancos universitários. Para de fato pertencer “a todo o povo”, a universidade precisa ser repensada e criar mecanismos de inclusão desses segmentos historicamente excluídos de seu ambiente. Sabemos que, paradoxalmente, como patrimônio público e estatal, as universidades públicas são mantidas inclusive pelos trabalhadores e desempregados que a elas não têm acesso. 

A INVENÇÃO DOS CURSINHOS POPULARES: 

Os cursinhos populares surgem efetivamente a partir do final da década de 1970, contudo, é na década de 1990 que a experiência do pré-vestibular para negros e carentes (PVNC), no Rio de Janeiro, vai servir de parâmetro para o grande surgimento dessas iniciativas na atualidade. 

A pluralidade e a informalidade, aliadas ao idealismo de alguns estudantes universitários, são algumas das características marcantes dos cursinhos, o que os tornam laboratórios de experiências pedagógicas que ainda carecem de um melhor entendimento acerca das possibilidades e limites que encerram. Em seu estudo sobre os cursinhos, Castro (2005) aponta quatro fases da gênese dos cursinhos populares no Brasil: 

1) na década de 1950, por meio da junção dos cursinhos da Faculdade Politécnica da USP e do Centro Acadêmico Armando Sales de Oliveira, da USP de São Carlos; 

2) durante a ditadura militar (1964-1985), com algumas experiências advindas de movimentos da teologia da libertação ("esquerda católica"); 

3) décadas de 1980 e 1990, onde os cursinhos surgem a partir dos chamados "novos movimentos sociais", principalmente dentro de universidades públicas e/ou com apoio de administrações progressistas; 

4) década de 1990 em diante, onde os cursinhos se vinculam a diversos movimentos comunitários, sendo um “encontro” com as práticas de educação popular presentes nas fases anteriores. 

Dessa forma, o trabalho desenvolvido pelos cursinhos populares acontece por meio de um "duplo movimento", onde a preparação para as provas do vestibular acontece junto com discussões críticas sobre a realidade social e, até mesmo, sobre o próprio processo seletivo do vestibular. Em vista disso, Monteiro ratifica o desafio dos cursinhos populares da seguinte forma: 

A proposta metodológica, ideológica e filosófica é de não apenas repassar os conteúdos programáticos do segundo grau, mas ampliar a discussão de uma proposta de transformação da sociedade [...]. Nesse sentido a educação para a cidadania é, também, um desafio e objetivo político dos "prés". (MONTEIRO,1996,p. 58). 

Com base nesses pontos, podemos ver que os cursinhos são manifestações organizadas que se orientam para um determinado fim, sendo constituídos por pessoas das mais diferentes concepções políticas e pedagógicas, portanto, com alto grau de pluralidade em seu corpo docente e de colaboradores, uma pluralidade política que, segundo Santos (2005, p. 4), é composta de "duas vertentes, a daqueles que politizam sua inserção e a daqueles que negam a dimensão política de sua atuação, se imbricam na cotidianidade dos cursos, disputando cada momento de construção das iniciativas". 

Os organizadores e participantes dos cursinhos, via de regra, são estudantes universitários que, conscientes de seu papel na universidade/sociedade, buscam organizar cursinhos que deem conta de interferir na demanda dos segmentos populares excluídos do acesso ao ensino superior. Contudo, existe uma grande pluralidade de visões dentro do cursinho e nem todos os seus colaboradores são conscientes e politizados, inclusive muitos estudantes começam a dar aulas nos cursinhos com objetivos que fogem da democratização do acesso ao ensino superior ou da militância por um mundo menos desigual e injusto. [

Nesse ponto, se destacam os professores que visam apenas experiência em sala de aula e aqueles que, mesmo sendo apenas uma ajuda de custo, realizam o trabalho, diante da falta de outras oportunidades, com o objetivo de auferir algum retorno em termos de dinheiro ou até de vale-transporte. A partir da constatação de uma realidade objetiva de que pobres, negros, indígenas e estudantes de escolas públicas em geral apresentam muitas dificuldades para passar pelo vestibular e chegar à universidade, principalmente nas IES públicas, grupos de pessoas que geralmente viveram essas dificuldades, mas que, mesmo assim conseguiram entrar na universidade, se organizam e montam um espaço destinado para a revisão dos conteúdos das provas do vestibular. Os mais diversos locais são usados para a "sala de aula" do cursinho popular: salão paroquial, associação de moradores, escolas públicas ou privadas e, até mesmo, um espaço em alguma residência. 

Assim, há um claro componente de ativismo nessas tentativas de preparação ao vestibular, sendo isso importante para a mobilização das pessoas, uma vez que o espaço de um cursinho é uma reunião de sonhos e necessidades que congrega pessoas com trajetórias similares e que, de alguma forma, não se acomodam diante da estrutura social que as oprime. Por isso, Sanger (2003) defende que os cursinhos populares são espaços de socialização e de troca de experiências que em muito ultrapassam a mera preparação ao vestibular, mexendo na própria autoestima das pessoas. 
Como uma das maiores dificuldades no sistema ensino-aprendizagem é a baixa auto-estima e o sentimento de inferioridade que muitos candidatos apresentam, ao deparar com provas que exigem um grau muito maior de reflexão e conhecimento, a atuação desses cursinhos na preparação de uma consciência crítica é muito mais útil do que a "simples" apresentação de conteúdos (SANGER, 2003, p. 98).
O trabalho desenvolvido pelos cursinhos populares, por meio da socialização oriunda das relações horizontais de reciprocidade, pode influenciar positivamente as noções psicológicas das pessoas envolvidas nos projetos. Um dos fatores que faz parte do sucesso em qualquer atividade humana é autoestima, a consciência de que é possível fazermos algo que trará benefícios não só particulares (para a própria pessoa em nível microssistêmico), mas coletivos (para o conjunto da sociedade em nível macrossistêmico).

Algumas pesquisas foram realizadas sobre a relação da autoestima do estudante com o seu desempenho no vestibular (GOES, 1991; BARROSO, 1976), mostrando que entre os fatores que influenciam os resultados. 

O trabalho desenvolvido pelos cursinhos populares, por meio da socialização oriunda das relações horizontais de reciprocidade, pode influenciar positivamente as noções psicológicas das pessoas envolvidas nos projetos. Um dos fatores que faz parte do sucesso em qualquer atividade humana é autoestima, a consciência de que é possível fazermos algo que trará benefícios não só particulares (para a própria pessoa em nível microssistêmico), mas coletivos (para o conjunto da sociedade em nível macrossistêmico). 

Algumas pesquisas foram realizadas sobre a relação da autoestima do estudante com o seu desempenho no vestibular (GOES, 1991; BARROSO, 1976), mostrando que entre os fatores que influenciam os resultados dos estudantes a condição socioeconômica assume relevância. 

CONSIDERAÇÕES FINAIS: 

A tentativa de se compreender o papel desempenhado pelos projetos de cursinhos populares, em São Paulo, na democratização do acesso ao ensino superior é uma tarefa que brota da inserção concreta dessas experiências. Por trás desse movimento está o contexto societário mais amplo, no qual o capitalismo hegemônico redefine papéis e impõe novos desafios. 

Os cursinhos populares se colocam como uma resposta à sociedade assimétrica que cobra de forma igual de seus membros (bastante desiguais) a sua inserção nas estruturas sociais. Tentando romper com o caráter utilitário do ensino, mas não desprezando esta face, os cursinhos populares, via de regra, não apenas reproduzem os conteúdos que são cobrados no vestibular, mas tentam dialogar com a existência dos sujeitos a partir de suas vivências. 

Nesse sentido, disciplinas como Cultura e Cidadania explicitam essa proposta calcada em princípios de educação popular. Mas quem faz o que e para quem? Esta é uma indagação necessária para não cairmos em ativismos cheios de boa vontade, mas ingênuos em seus atos cotidianos. É preciso termos clareza de alguns princípios e saber que esses espaços alternativos não possuem em si capacidade de mudança estrutural, visto que trabalham já com um segmento que conseguiu, pelo menos, chegar ao final do ensino médio. Talvez, o maior mérito dos cursinhos populares esteja no fato de chamarem a atenção para o processo meritocrático e injusto do vestibular que, conforme a análise empreendida, exclui importante contingente de pessoas que, de uma forma ou de outra, chegou ao final do ensino médio e tem o direito de prosseguir com seus estudos. 

Assim, a presença de pessoas de baixa renda nos cursinhos populares já cobre de êxitos parciais estas experiências, pois estão indo de encontro à lógica excludente preponderante. Relatos de professores e coordenadores de cursinhos populares apontam que, em média, um aluno de cursinho popular leva dois anos para conseguir a aprovação e entrar na universidade pública. Mas será que não entrar na universidade é sinônimo de fracasso de um aluno que teve passagem em cursinhos populares? 

Se a resposta for positiva, não será que estamos caindo na mesma lógica (individualista, concorrencial e meritocrática) que tentamos romper e que gera a própria necessidade de cursinhos populares? 

Por fim, os desafios são grandes, mas a luta cotidiana dos movimentos sociais e de intelectuais engajados já começa a fazer, talvez, um novo modelo de ensino, onde o processo de implementação de ações afirmativas nas universidades públicas, as leis que tratam do ensino da história afro-brasileira na formação de professores e na educação básica e a obrigatoriedade do ensino de Sociologia e Filosofia no ensino médio estão a indicar novos tempos no cenário educativo nacional. Junto a isso, o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) ainda precisa ser melhor analisado, por mais que a sua implementação como acesso ao ensino superior por si só já seja um indicativo da necessidade de uma reinvenção/desnaturalização (PEREIRA, 2008) do vestibular. 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARROSO, C. L. M. O vestibular e a autoestima do jovem. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 16, mar. 1976;

CASTRO, C. A. Cursinhos alternativos e populares: movimentos territoriais de luta pelo acesso ao ensino público superior no Brasil. Dissertação (Mestrado em Geografia) - Universidade Estadual Paulista. Presidente Prudente - SP, 2005; 

GOES, M. C. R. Ansiedade: uma avaliação quantitativa de seus efeitos negativos sobre o desempenho no vestibular. Psicologia - teoria e pesquisa, Brasília, v. 7, n. 2, maio/ago. 1991; 

LEIPNITZ, L.; PEREIRA, T. I. A prática pedagógica no cursinho popular da Ongep: aproximações com a pedagogia de Paulo Freire. In: MELLO, M. (Org.). Paulo Freire e a educação popular: reafirmando o compromisso com a emancipação das classes populares. Porto Alegre: Ippoa/Atempa, 2008;

MONTEIRO, S. C. F. Pré-vestibular para negros e carentes – buscando o inédito-viável. Revista de Orientação Educacional, v. 3, n. 23, set. 1996;

MOSQUERA, J. J. M. Reações do adolescente em face do vestibular e sua auto-estima. Educação e Realidade, n. 1, fev. 1976;

PALUDO, C. Educação popular em busca de alternativas: uma leitura desde o campo democrático e popular. Porto Alegre: Tomo Editorial/Camp, 2001; 

PANIZZI, W. M. (Org.). Universidade: um lugar fora do poder. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2002;

PEREIRA, T. I. O sistema de ingresso na UFRGS numa perspectiva histórica da formação da universidade brasileira. In: TETTAMANZY, A. L. L.; BERGAMASCHI, M. A.; SANTOS, N. I. S.; ARENHALDT, R.; CARDOSO, S. (Org.). Por uma política de ações afirmativas: problematizações do programa Conexões de Saberes/UFRGS. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2008; 

PEREIRA T.I -Pré-vestibulares populares em Porto Alegre: na fronteira entre o público e o privado. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2007;

PEZZI, A. C. Cursinhos – um rito de passagem. In: ANDRADE, R. M. T.; FONSECA, E. F. (Org.). Aprovados! Cursinho pré-vestibular e população negra. São Paulo: Selo Negro Edições, 2002; e

SANGER, D. S. Para além do ingresso na universidade – radiografando os cursos prévestibulares para negros em Porto Alegre. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2003.

*VERINE STOCHI VEIGA














Formada em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e mestra em História da Ciência pela mesma Universidade;

 -Conhecimento em pacote Office, digitação de textos, digitalização de imagens e pesquisa na internet. 
-Idiomas: conhecimento de Inglês e espanhol em nível intermediário.


Nota do Editor:

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