quarta-feira, 24 de agosto de 2022

O mero aborrecimento


 Autor: Juliano Lavina (*)

 

O mero aborrecimento é uma teoria que defende que nos casos de mero incômodo não existe dano moral - em apertada síntese é isso que interessa. Contudo, mero aborrecimento para quem? O leitor logo se identifica com o tema porque em um dado momento da sua vida, já passou por uma situação que no final o Judiciário considerou mero aborrecimento. Tomo como exemplo o não cumprimento dos contratos, que na sua grande maioria são considerados meros incômodos para o Judiciário, e tão absurda quanto esta tese é a sua utilização para afastar o dano imaterial, datissima vênia. Particularmente esse é o maior tapa na cara e inversão de valores que o Judiciário pode dar no pobre cidadão, e olha que isso não vem de agora. Conforme defendo na minha teoria, nominada como safety flare ou da sinalização direcionada – https://oblogdowerneck.blogspot.com/2020/06/teoria-do-safety-flare-e-correlacao-com.html, o mero aborrecimento e a indústria do dano moral são teorias fomentadas pelos fornecedores a fim de afastar os "danos" causados pela legislação consumerista. A expressão "danos" foi utilizada propositadamente, porque este é o pensamento dos fornecedores com relação as leis que visam proteger o consumidor. Já pela ótica consumerista é uma tremenda “sacanagem”, porque o consumidor é obrigado a cumprir o contrato e o fornecedor não, o seu descumprimento é considerado mero aborrecimento ou indústria do dano moral. Para o Judiciário o objetivo é evitar o assoreamento do órgão com ações em massa.

Infelizmente essa é a política que o Judiciário vem sustentando, como outras teorias absurdas que vemos por aí no afã de não cumprir a lei/contrato, já que alterar a legislação demandaria tempo e movimentação política. Não é de hoje que eu defendo que os contratos e as leis precisam ser cumpridos, e os prejuízos oriundos desse não cumprimento devem ser ressarcidos pelos mecanismos jurídicos adequados, entre eles o dano moral, porque a meu ver descumprir a lei ou o contrato sempre gera um prejuízo para alguém, e obviamente que é sempre para o lado mais fraco. A alegação de que não cumprir o contrato se trata de um mero aborrecimento é uma tese irresponsável, vergonhosa, que não leva em consideração a decadência que essa argumentação causa no ordenamento. Enquanto o magistrado espera ser provocado por algum mau que o fornecedor vem causando, inclusive em relações cíveis, a parte prejudicada é obrigada a parar sua atividade diária para resolver o problema causado e criado pelo fornecedor. Independentemente do ruído jurídico, sempre há prejuízo porque conforme declara a teoria do desvio produtivo do consumidor, sempre que somos obrigados a parar nossas atividades regulares para resolver um problema criado por terceiros, devemos ser indenizados.

A perda de tempo hoje em dia custa mais caro do que os ganhos obtidos a título de dano moral, e esse tempo não tem preço no mercado. Enquanto os fornecedores administram seus milhões o pobre consumidor é obrigado a se deslocar como louco em busca da solução, para ao final o juiz alegar que embora o consumidor tenha razão, trata-se de mero aborrecimento. Mero aborrecimento para quem?

Não leva em consideração esse tipo de decisão, que o prejudicado foi obrigado a parar sua atividade para procurar o fornecedor, por telefone, mensagem, e-mail, whatsapp ou pessoalmente. Realizado o contato por um desses canais, é obrigado a esperar a solução que muitas vezes nunca chega, ou quando chega é negativa. Infrutífera a solução, o que já era esperado, o consumidor busca resolução através de outros canais, como o site do consumidor.gov.br; o reclame aqui, entre outros. Existe um prazo mínimo de 15 dias para a entidade fazer contato com o fornecedor e buscar uma resposta, já que o ato não é imposto a cabresto. Mais uma vez infrutífero, o que é a grande maioria, o consumidor ainda tem que se deslocar ao PROCON local, seu último ato desesperador na esfera administrativa, local onde a resposta também é facultativa. Sem sucesso, o prejudicado vai ao encalço do fornecedor através do Judiciário, diante do evidente dano a moral por ter sido vilipendiado na fase administrativa e pelo descumprimento do contrato ou da lei.

Além de pagar por toda essa perda de tempo, movimenta a máquina pública que de arrancada já custa uns R$ 4.000,00 aproximadamente, mais despesas iniciais e honorários contratuais se o advogado for particular. Tudo para que o contrato seja cumprido, lembre-se! Já com essa conta sendo paga, o consumidor ainda é obrigado a produzir provas em audiência, arrolar testemunhas, correr atrás da papelada necessária para o ajuizamento da contenda e se ausentar do trabalho para participar das audiências, é uma festa para o fornecedor. Quer coisa mais ridícula do que essa audiência conciliatória? Com todo respeito nunca vi funcionar, nem nos meus quase 13 anos de Judiciário. Se naquela época não tinha gente preparada, agora muito menos. No ano de 2020 para vocês terem uma ideia me desloquei 600km para ficar 8 minutos na sala de audiência, contando que o fornecedor se atrasou. De tentativa de conciliação efetivamente foram 10 segundos. Verdadeiro panorama de inefetividade!

O advogado é obrigado intimar as testemunhas e se for fora do município é obrigado a pagar deslocamentos, estadias e alimentação. Faz a conta! Se o advogado cobra o deslocamento, pode somar um troco a mais. Não pára por aí e vocês sabem disso: vamos para a audiência de instrução e julgamento, cerca de 3 horas mais ou menos e se as alegações finais forem orais, mais uns 25 minutos. Além disso o prejudicado faltou ao trabalho, que embora não possa ser descontado do seu salário, causou prejuízos para alguém, e esse alguém não tem nada a ver com a causa – o empregador. Finalizado o ato, todos para casa para esperar o resultado final que é entregue em menos de uma página, para declarar o consumidor como culpado por ajuizar a lide, pois não gera dano moral. Pedidos julgados improcedentes, condenação nas custas finais e honorários sucumbenciais e um rosário na mão para tentar convencer o cliente.

Completamente atordoado sem entender o que se passa, recorre, paga o preparo de quase R$ 900,00 e vai com tudo. O acórdão mantém a sentença combatida, nova condenação em honorários sucumbenciais e aí um ponto de interrogação: tá falando sério que o fornecedor se deu bem  e sou obrigado a engolir um contrato não cumprido? Ok Dr, mas me explica, para que serve a lei? É só papel então, por que na prática o Judiciário não cumpre? Tenta responder meu amigo advogado, porque eu desisti. Infelizmente a resposta é amarga, fazendo a conta final dos gastos, por baixo, R$ 7.300,00 de prejuízos. Óbvio que se tratarmos de gratuidade da justiça/JEC o importe se trata apenas do estresse dos deslocamentos, produção de provas e honorários contratuais, mas mesmo assim é uma perda significativa, sem falar que aqui quem paga parte da conta é a sociedade. Entenderam por que não existe mero aborrecimento? Até agora a máquina pública não parou para perceber o que envolve na vida das pessoas até que a problemática chega ao Judiciário. Quando o litígio está neste estágio é porque administrativamente as partes não chegaram a um consenso, então não adianta realizar uma audiência de conciliação com estagiário que sequer leu o processo, não conhece a fundo a matéria objeto da contenda, não tem oratória ou poder de argumentação, sequer poder decisório, o ato será apenas mais um problema na vida do jurisdicionado.

Muitas vezes quando fiz audiências como juiz leigo eu parava o ato instrutório para tentar a conciliação ou fazia logo no começo, mas iniciava a presidir explicando a posição majoritária, o que a doutrina falava a respeito, apontava a fragilidade das provas e o contexto da divergência, para só depois abrir para as partes falarem: até hoje vi poucos juízes fazerem isso. Geralmente eu levava de 2 a 3 horas para fechar um acordo, ponderava todos os riscos da lide e em 80% dos casos eu fechava o pacto. Ah mais isso é inviável, vamos demorar muito: qual o papel da conciliação - tempo ou solução? Percebam o grau de complexidade, eu já era formado, fazia escola da magistratura e era assessor de juiz, minha bagagem jurídica e experiência já me davam autoridade para conduzir uma audiência desse porte, porque esse é o peso a ser dado para uma audiência de conciliação e não o que vemos hoje em dia, pelo menos em respeito as partes e aos advogados.

Que me perdoem os estagiários, heróis, porque são jogados na arena para serem devorados sem preparo qualquer a não ser a sorte. Demonstrei a exaustão que o problema é maior, não basta apenas assinar a sentença com base no fundamento do mero aborrecimento e esquecer o resto. Para que servem as nulidades do art. 51, do Código de Defesa do Consumidor; o direito a informação clara e objetiva; o dever de entregar o contrato no momento da assinatura, se não existe cumprimento da lei ou do contrato? É só letra morta na legislação? Vejamos como funciona o jogo: temos as regras no Código Civil que permitem todo e qualquer tipo de contrato atípico, à luz do princípio da pacta sunt servanda o contrato faz lei entre as partes. Surge o Código de Defesa do Consumidor e relativiza esse princípio. Passaram-se 30 anos e o que vemos é que os contratos continuam sendo relativizados porque os fornecedores não respeitam o Pergaminho Consumerista, mas ainda assim surgem teorias do tipo mero aborrecimento e indústria do dano moral para livrar banqueiros do pagamento do dano.

É a desculpa mais esfarrapada que eu já vi nesses anos de atuação com o direito, e é a teoria mais absurda que já vi em vigor, data venia. A qual interesse essas teorias privilegiam eu gostaria de saber, porque os consumidores e o Estado não é. Cabe ressaltar ainda os problemas psicológicos que essas teorias causam e o rompimento da segurança jurídica, esta última muito defendida por alguns setores do ordenamento. O legislador, coitado, inspira-se em legislações americanas e europeias, adapta para nossos problemas e busca assegurar os direitos do jurisdicionado, mas na prática não surte efeito. Lamentavelmente nossa arte de relativizar o relativizável vem de berço e o legislador, mesmo com esforço, não consegue por em prática o que legislou, pois os fornecedores alteram o resultado do jogo sem precisar emitir ou mudar uma lei sequer. Para piorar, a par de tudo que foi exposto, o Judiciário compra o produto e dissemina por sua corrente corporativa sem dó nem piedade, salvando de forma colateral alguns direitos que ainda não foram corrompidos, como o dever a informação e a atual proteção de dados. Aqui, o titular de dados está sofrendo novamente, porque embora ocorra o vazamento de dados o Judiciário está considerando que não existe dano moral, lamentável novamente. 

Pensando cá com meus botões lhes digo que o dever de informação caiu com o compliance e a lei geral de proteção de dados, porque agora com esses institutos será ainda mais difícil saber o porquê o crédito foi negado, quais foram as fontes de pesquisa, e etc. Hoje já não conseguimos esses dados mesmo provocando o Judiciário, o segredo é tão inviolável que o banco prefere pagar o dano extrapatrimonial a entregar o sistema, e o Judiciário contribui com essa atividade danosa porque arbitra o valor do dano em importes muitos ínfimos, não dá nem para pagar a movimentação da máquina pública. Enquanto isso a conta não fecha e quem paga é o povo, porque este não pode se enriquecer, mas o rico pode. Como já dizia aquela música do planet hemp, é muito fácil falar de coisas tão belas de frente para o mar, mas de costas para a favela. Infelizmente a leitura desgostosa dessas teorias só nos permite escrever e torcer que nossos pensamentos frutifiquem para que os pensadores de plantão reflitam sobre os danos que estão provocando, não é atoa que o Judiciário experimenta um efeito backlash jamais visto, fruto realmente dessa amarga inversão de valores. É uma pena porque se na América e na Europa não temos notícias de consumidores que ficaram ricos com condenações por danos morais, não existem motivos para aplicação da teoria do mero aborrecimento ou indústria do dano moral, até porque a lei e o contrato servem para serem cumpridos.

Se o ato irá gerar milhões de ações ou pedidos absurdos, é dever do Judiciário julgar e não manipular o jogo para afastar a indenização. Não importa o argumento, faz cumprir a lei e o contrato, isso é segurança jurídica, o resto é recorte! De quem é a culpa pelo excessivo número de processos, de quem busca a efetivação do contrato e da lei, ou de quem os corrompe? O ônus econômico deve ser imposto ao prejudicado ou a quem prejudica? Se o Judiciário seguisse essa regra tenho plena convicção que teríamos menos ações circulando, pelo menos teríamos uma estatística, porque aquela do mero aborrecimento e da indústria do dano moral não está servindo para educar ninguém, até porque a própria lei não conseguiu fazer isso em 30 anos. Pelo contrário, o que conseguiu mesmo foi deixar os ricos cada vez mais ricos.

Espero ter contribuído de alguma maneira para que vocês pensem a respeito e possamos construir um material para mudar esse cenário de caos. Abs.

*JULIANO LAVINA

















-Advogado Criminal especializado no Trib. do Júri;
-Professor de Direito Penal e Processo Penal;
-Membro da Comissão Especial de Estudos de Ciências Psicológicas;
-CEO da Conceito Soluções; 
-Autor da Teoria do Safety Flare ou da Direção Sinalizada; e
-Ex-Assessor do Min. Marco Buzzi

Nota do Editor:

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