sexta-feira, 4 de agosto de 2023

O 8 de Janeiro e a política do Apito de Cachorro


 Autora: Marilsa Prescinoti(*)

O apito para cachorro é uma ferramenta de adestramento que emite um som em determinada frequência, que só é perceptível aos ouvidos sensíveis do cachorro.

"A política do apito de cachorro" é a tradução literal do inglês "dog whistle politics".

No debate político, a metáfora é usada para se referir a mensagens que parecem inocentes ao público geral, mas têm significado para um público específico. Nas campanhas, os apitadores escolhem frases atraentes para nichos específicos da sociedade como forma de atrair e alienar.

Antes de continuar quero deixar claro que a abordagem não se trata da saudável divergência político partidária, muito menos de críticas a protestos democráticos, atos bem-vindos nas democracias; não se trata de crítica ao voto nas urnas, resultado das urnas ou ideologia.

Vou falar de métodos que minam as democracias e dissonância cognitiva.

Os apitos que culminaram no 8 de Janeiro.

Urnas eletrônicas:

Em 2020, em evento nos Estados Unidos, Bolsonaro disse ter provas de que venceu as eleições no primeiro turno em 2018. A matilha nunca esqueceu este apito.

"Precisamos aprovar no Brasil um sistema seguro de apuração de votos (o código), caso contrário, passível de manipulação e de fraudes. Então eu acredito até que eu tive muito mais votos no segundo turno do que se poderia esperar e ficaria bastante complicado uma fraude naquele momento." Nunca provou, mas forneceu o código para a matilha trabalhar (divulgar) junto a população vulnerável ao tema.

Neste mesmo ano de 2020 o bolsonarismo sofre uma derrota acachapante nas eleições municipais. A partir daí, e até os dias de hoje, os ataques, do então presidente da República, as urnas e ao sistema eleitoral foram intensos; ele precisava desacreditar o sistema e ali já sonhava com um golpe de Estado em caso de derrota nas urnas em 2022. Ele já contava com uma matilha atenta a seus comandos.

Os apitadores alienaram parte da sociedade que passou a ouvir e a responder aos comandos contra a imprensa; vacina, adversários, STF, minorias, Instituições Democráticas, sistema político, ataques ao Estado Democrático de Direito. Já era comum o pedido de intervenção militar. O alvoroço estava a postos.

Frases e palavras que tem efeito de apitos de cachorro em nosso meio:

Comunismo; Deus-pátria-família; Valores cristãos; VaChina; Nossa liberdade; Intervenção Militar; Povo armado não pode ser escravizado; Acabou p@rra (na voz do presidente da República contra ministro do STF, foi agudo); As 4 linhas da Constituição, Vamos virar a Venezuela, etc, etc, etc...

As consequências destes comandos são irrefutáveis: sentimos na pele o que aconteceu nos últimos 4 anos e nenhum setor ficou de fora; seja nas famílias e amizades rompidas, no judiciário, nas forças de segurança, no jornalismo (que virou assessoria político-partidário), nos ministérios sob comando de ideológicos tresloucados ou serviçais, nas secretarias, nas pessoas que morreram e deixaram morrer por recusar vacina, nos profissionais de saúde que se renderam a cloroquina em detrimento da ciência ou Juramento de Hipócrates, nos que mataram por política e por políticos. Muitas pessoas perderam o senso crítico e a racionalidade, se rendendo a cegueira ideológica, charlatanismo, violência e irracionalidade.

O apito de cachorro vai além de código para supremacistas e neofascista: ele também é usado por políticos como ferramenta de manipulação de massa. O 8 de Janeiro e a invasão do Capitólio estão aí para confirmar.

Um presidente da república jamais dirá abertamente "- Vamos dar um golpe de Estado! Vamos acabar com a democracia! Vamos provocar uma guerra civil e decretar LGO! Vamos tomar o poder!" Mas foi isso que os radicais, em torno ou não do presidente, entenderam ao longo de 4 anos nas declarações, omissões e diálogos do cercadinho. Podemos dizer que ele já reconhecia que boa parte do seu eleitorado fora radicalizado e que seria questão de tempo para o chamado derradeiro.

Vou pontuar alguns apitos de cachorro e seus desdobramentos que considero efetivamente perturbadores:

Violência! Nazifascismo!

Em 2020 o Secretário da Cultura do governo Bolsonaro, para divulgar o Prêmio Nacional de Artes, escolheu um cenário "curioso" para dizer o mínimo: ao som de Richard Wagner, compositor preferido de Hitler, reproduz trechos de outro discurso famoso, este, do então ministro de propaganda da Alemanha nazista, Joseph Goebbels. A repercussão custou ao secretário o cargo, pedido de desculpas, notas de repudio e, entres elas, da Confederação Israelita do Brasil.

Em 2021 o assessor na Presidência Felipe Martins, em uma audiência no Sendo Federal, fez um gesto ligado a supremacistas brancos; segundo ele, estava arrumando a lapela.

Bolsonaro, em uma de suas lives semanal, aprece tomando um copo de leite puro, segundo ele, para homenagear a Associação Brasileira de Produtores de Leite (Abraleite); para estudiosos e especialistas em extrema direita, o gesto também está ligado a supremacistas e afins.

Dias depois, o porta voz do bolsonarismo radical, o blogueiro e influencer Allan dos Santos, em uma de suas lives também vira um copo de leite e diz: "-Entendedores entenderão".

Segundo estudiosos, estes são símbolos usados pelo que é chamado nos EUA de movimento alt-right, abreviação de "direita alternativa".

Para estes estudiosos, quem faz algum tipo de sinal comum para os neonazistas ou supremacistas brancos está sinalizando para estes grupos. O dog whistle é uma tática que indica pertencimento ou alinhamento... pra não dizer alienamento.

Em sua conta no Facebook, em 2020, Jair compartilha um vídeo com destaque para uma frase que foi um dos slogans de Mussolini líder do fascismo:

"Melhor viver um dia como leão do que cem anos como cordeiro".

Outra citação de Mussolini que Jair gosta de parafrasear para justificar o armamento sem controle: "Um povo armado jamais será escravizado".

Ainda em 2020, o grupo bolsonarista "300 pelo Brasil", liderado pela ativista Sara Winter fez um protesto em frente ao STF. O grupo carregava tochas acesas e algumas pessoas vestiam máscaras de personagens de filmes de terror cobrindo todo o rosto.

Na ocasião foi apontada semelhanças entre o protesto e a manifestação de neonazistas e membros da Ku Klux Klan, que ocorreu em 2017, nos Estados Unidos. A 'KKK' é organização racista dos Estados Unidos que prega a supremacia branca e já praticou inúmeros atos violentos contra negros. Nenhuma autoridade ligada ao Presidente, ou o próprio, repudiou o ato. Ao contrário, o grupo recebeu suporte de parlamentares bolsonaristas, como Zambelli, Damares, Bia Kicis. Em entrevista, a ativista disse ter recebido orientação do General Heleno, Ministro do GSI, para que o protesto fosse contra o STF.

Em campanha no Acre em 2018, Bolsonaro, simulando tiros de metralhadora, decreta: "Vamos metralhar a petralhada".

As "dog whistles" fazem com que a mensagem seja captada por determinados grupos suscetíveis.

Coincidência ou não, estudo apontou que as células de grupos neonazistas cresceram 270,6% no Brasil entre janeiro de 2019 e maio de 2021, e se espalharam por todas as regiões do país, impulsionadas pelos discursos de intolerância e ódio contra feministas, judeus, negros e a população LGBTQIAP+.

Coincidência ou não, estudo apontou que entre 2019 e o primeiro semestre de 2022, a violência por motivação política cresceu 335%, com episódios de violência extrema: assassinatos por motivação política já não eram pontuais, eles pipocaram Brasil a fora.

Os números contam histórias.

Foi neste clima de ataques as urnas, adoração ao másculo, (quem não se lembra do Jair falando abertamente: "depois de 4 homens dei uma fraquejada" se referindo a sua filha caçula), desmoralização de Instituições Democráticas, aumento da violência contra mulher, apologia ao nazismo, fascismo, uso da máquina Estatal em franca exploração a todo comportamento antirrepublicano, ataque a imprensa livre, violência, intolerância e inquietação, chegamos as eleições de 2022 com a gratificante derrota do maior apitador da República Federativa do Brasil.

Em clima de não aceitação ao resultado das urnas, acreditando, de novo, que as urnas tinham sido fraudadas, estavam com medo do comunismo, medo de fechamento de igrejas, destruição da família, medo de comer cachorro e virar a Venezuela. E foi assim que, em completa dissociação cognitiva, uma massa desnorteada saiu de suas casas e fecharam violentamente as estradas, atearam fogo, se lançaram na frente de caminhões, acamparam diante de quartéis, se ajoelham para tanques de guerra, rezaram para pneus na rua, pediram ajuda para extraterrestre. Vergonhosa catarse coletiva, em uma mistura de fanatismo político-religioso.

Mas o pior estava por vir.

O pronunciamento oficial do presidente após a eleição, que para a maioria de nós foi só o discurso vazio de um homem derrotado que não aceitou perder o poder, para os cérebros completamente desconectados da realidade, escutaram "os movimentos populares são fruto de indignação e de sentimento de injustiça de como se deu o processo eleitoral" e ali, naquele momento, diante de tudo que estava acontecendo nas ruas, mais que apito de cachorro, estava feito o convite para o ataque dos cães.

Qualquer político com um mínimo de estatura pediria para as pessoas irem para casa, reconheceria a derrota e certamente as coisas se acomodariam. Não foi o que aconteceu. Era preciso manter a massa acesa. Depois do convite para o ataque, entrou em ação os porta vozes do golpe; estes, com seus apitos nas mãos, dormindo o sono confortável em cama quente, animavam a malta, que tomava chuva e usava banheiros químicos, a continuarem a luta com frases do tipo: "confiem no capitão, mantenham-se firmes, não podemos falar tudo, mas estamos trabalhando, não desistam, precisam resistir para as Forças Armadas agirem", discursos inflamados ao pé do ouvido, como fez Braga Neto, era bálsamo para estes fanáticos, que acreditavam que o capitão voltaria dos EUA liderando as Forças Militares para fechar o STF e livrar o país do comunismo que davam como certo após a vitória do Lula.

O caminho estava azeitado para o ato final: financiaram, instigaram, convocaram, facilitaram, abriram portas, serviram água, fizeram o impossível parecer provável. Literalmente marcharam até a Praça dos 3 Poderes, escoltados por forças de segurança do Distrito Federal, para destituir o presidente eleito, prender Ministro do STF, tomar o poder e devolver para o seu mito.

E então aconteceu O 8 de Janeiro.

E foi assim que idosos, pais e mães de família, autoridades, militares, Ministro de Estado, homens de carreira, pessoas comuns, idiotas, patriotas, extremistas, violentos e criminosos se uniram contra o País, numa tentativa de Golpe de Estado, e foram parar na cadeia, em atos de extrema violência, vandalismo, depredação. Os articuladores queriam, ou mais do que isso, precisavam da instabilidade e do caos que somente uma massa insana nas ruas poderia causar.

E os apitos não param: já construíram narrativas bem aceita pela malta para culpar o adversário. Pergunta sincera: Alguém, com um mínimo de racionalidade, acredita que existira um 8 de Janeiro sem Bolsonaro & Afins? Se você também respondeu "- impossível", estamos de acordo.

Temos chance. Sobrevivemos aos apitos de cachorro que, segundo estudiosos, podem minar a democracia. Mas é fato que somente uma sociedade bem-informada, consciente de sua cidadania, sem paixão, exercendo a racionalidade, comprometida com resultados, com fatos, não com políticos, livre das amarras ideológica, pode construir uma nação. Não precisa entender toda engrenagem política; precisa ter o senso crítico apurado e um mínimo de comprometimento com o seu voto na urna.

Foi por pouco, foi por tolerância ao intolerável que chegamos tão perto de perder a nossa Liberdade. Não foi Lula, Dilma ou o PT. Foi Bolsonaro e uma malta de amestrados aloprados que colocaram nossa Democracia e nossa liberdade em risco.

Que sirva de aprendizado.

Democracia Sempre.

2026 é logo ali.

*MARILSA PRESCINOTI c/ revisão de Maressa Fernandes












De acordo com suas próprias palavras:

- Administradora de empresa, blogueira, twiteira, politicamente engajada, esposa, mãe e cidadã comum.

Nota do Editor:

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