quarta-feira, 26 de junho de 2024

Abusividade na Rescisão de Contratos pelos Planos de Saúde


 Autor: Homero José Jardim Fornari(*)

Caros leitores desta coluna,

Este artigo aborda as práticas unilaterais das rescisões contratuais nos planos de saúde, sobretudo em casos que envolve a hipervulnerabilidade dos consumidores.

Discutiremos como essas rescisões contratuais tidas como abusivas violam os princípios da boa-fé objetiva e as disposições legais vigentes, especialmente o Código de Defesa do Consumidor (CDC).

A análise inclui a jurisprudência relevante e a repercussão social e legislativa dessas práticas, reforçando a necessidade de uma abordagem justa e ética na relação contratual entre operadoras de saúde e seus consumidores.

A proteção dos direitos dos consumidores no Brasil é um tema de extrema relevância, especialmente quando se trata de contratos de planos de saúde. A aplicação do CDC a esses contratos é um pilar fundamental para assegurar que as práticas das operadoras sejam justas e transparentes.

Exatamente por essa razão o Superior Tribunal de Justiça (STJ) editou a Súmula 608, in verbis "Aplica-se o Código de Defesa do Consumidor aos contratos de plano de saúde, salvo os administrados por entidades de autogestão".

Esse entendimento é fundamental para proteger os consumidores que contratam serviços de saúde, garantindo-lhes direitos e uma relação contratual justa.

Os consumidores são, por definição legal, vulneráveis. E, em algumas situações, tal vulnerabilidade é ainda mais acentuada, reconhecida como hipervulnerabilidade, ou vulnerabilidade agravada, ou seja, situação que vão além da hipótese típica prevista no artigo 4º, inciso I do CDC.

Segundo a doutrina especializada, essa condição de hipervulnerabilidade se caracteriza como "a situação social, fática e objetiva de agravamento da vulnerabilidade da pessoa física consumidora, por circunstâncias pessoais aparentes ou conhecidas do fornecedor" (MARQUES; MIRAGEM, 2014, p. 201).

Portanto, a hipervulnerabilidade resulta da combinação da vulnerabilidade intrínseca ao consumidor e da fragilidade adicional que afeta grupos específicos, como os idosos e crianças.

Pois bem, sabe-se que desde o final de 2023 algumas Operadoras de Plano de Saúde passaram a resolver unilateralmente os contratos que envolvem alta sinistralidade, especialmente em caso de crianças que necessitam (e fazem) algum tratamento especializado (ex. TEA – Transtorno do Espectro Autista) e, também, casos envolvendo o descredenciamento de alguns membros (familiares) de contratos de plano de saúde antigos, sob a alegação de inexistir a condição de dependência econômica.

O contexto dessa prática adotada pelas Operadoras de Planos de Saúde está na alta sinistralidade desses contratos/carteiras.

Pois bem, essas práticas são absolutamente questionáveis sob a perspectiva jurídica e, justamente por essa razão, desaguaram no Poder Judiciário.

Sob a perspectiva do Direito do Consumidor não há dúvidas de que os consumidores não podem ser prejudicados pelas arbitrariedades que resultem unilateralmente na rescisão do contrato e/ou exclusão de membros do Plano de Saúde contratado (ex. Planos Familiares).

Essas medidas são abusivas e contrariam à boa-fé objetiva, violando claramente os artigos 113 e 422 do Código Civil de 2002, bem como o artigo 51 do CDC, inciso IV e §1º, inciso III:

Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:

IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade;

§ 1º Presume-se exagerada, entre outros casos, a vantagem que:

III - se mostra excessivamente onerosa para o consumidor, considerando-se a natureza e conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares ao caso.

E mais, a boa-fé objetiva desempenha funções de controle e moderação no exercício de direitos subjetivos, especialmente quando esses direitos confrontam preceitos de probidade e lealdade, em conformidade com os artigos 113 e 422 do Código Civil.

Assim, é completamente abusiva a rescisão contratual de planos de saúde que envolvam beneficiários com tratamento em curso, pois fere de morte o disposto no art.51, inciso IV e §1º, inciso III do CDC, especialmente em se tratando de crianças ou idosos que são consumidores hipervulneráveis.

Tal hipótese também implica na violação ao art. 13, Parágrafo único, inciso III, da Lei n° 9.656/98 e do art.1º da RN 19/1998 do CONSU e 8º, § 1º da RN 438 da ANS que obrigam os planos de saúde a fornecerem um produto semelhante e sem carências.

E, no caso específico de crianças que necessitam de tratamento especializado para o TEA (Transtorno do Espectro Autista), existe claramente uma abusiva “seletividade no risco” praticado pela Seguradora, o que também é vedado.

Felizmente o Poder Judiciário, de forma geral, têm contornado bem esse problema, conforme o seguinte julgado:

Agravo de Instrumento – PLANO DE SAÚDE - Ação de obrigação de não fazer - Rescisão unilateral de plano de saúde empresarial - tutela antecipada parcialmente concedida para que o contrato seja restabelecido apena em relação aos beneficiários que estão em tratamento médico – insurgência, postulando a ampliação da tutela em favor de todos os segurados/beneficiários que são membros da mesma família - Incidência, por analogia, do art. 13, parágrafo único, III, da Lei 9.656/98 – ausência do cumprimento pela agravada do dever de oferecer um plano de saúde sem carências (artigos 1º da RN 19/1998 do CONSU e 8º, § 1º da RN 438 da ANS) dentro da abrangência territorial dos beneficiários. Viabilidade da manutenção no plano de saúde coletivo, mediante o pagamento integral da mensalidade – Precedente do Superior Tribunal de Justiça em caráter repetitivo (Tema 1.082) – presentes os requisitos do art. 300 do CPC – equilíbrio do contrato mantido já que as condições do contrato permanecerão a mesma – deferida a tutela - Recurso provido.

(TJ-SP - AI: 21458219820238260000 São Paulo, Relator: Moreira Viegas, Data de Julgamento: 07/07/2023, 5ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 07/07/2023)

Também é abusiva a exclusão de membros do plano de saúde que há tempos foram admitidos como dependentes, mesmo deixando constar posteriormente na Declaração de Imposto de Renda do contratante titular.

De fato, a boa-fé objetiva - que deve existir em todos os contratos - veda comportamentos contraditórios, sobretudo quando sempre houve a aceitação tácita do plano de saúde num contrato de longa duração (ou seja, de trato sucessivo) e que não houve irregularidades. É a regra do art.113 do CC/02.

Nesses casos, a exclusão dos dependentes é abusiva e arbitrária, frustrando a legítima expectativa do consumidor na manutenção do contrato, impondo-lhe desvantagem exagerada, em favor exclusivo da operadora (CDC, art. 51, IV).

Nossos tribunais também perfilham desse entendimento:

"PLANO DE SAÚDE. Contrato empresarial. Exclusão do autor dependente ao plano titularizado pela ex-esposa. Alegada perda da condição de elegibilidade pela operadora. Abusividade reconhecida na origem, com condenação à manutenção do vínculo contratual – [...] Exclusão do autor que caracteriza desvantagem exagerada em seu desfavor Art. 51, IV, do Código de Defesa do Consumidor Sentença mantida Recurso desprovido" (TJSP; Apelação Cível 1003698-79.2021.8.26.0642; Relator: Luiz Antonio de Godoy; 1ª Câmara de Direito Privado; 25/08/2023).

Tais práticas reiteradas de descredenciamento e resolução "em massa" de contratos envolvendo idosos e/ou crianças em tratamento (ex. TEA), gerou grande comoção e repercussão na mídia, intensificando os debates no Congresso Nacional.

E, enquanto não há uma solução legislativa para o tema, o judiciário vem dando respostas justas e adequadas, assegurando a manutenção e o direito dos consumidores.

 *HOMERO JOSÉ NARDIM FORNARI











-Graduado em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie(2000-2004);

-Graduado em CIÊNCIAS CONTÁBEIS pela Universidade de São Paulo - FEA-USP (2003-2008), tendo cursado disciplinas de Finanças, Direito do Comercio Internacional e Direito Comercial na HEC-MONTRÉAL CANADÁ (2006);

-Professor da Universidade Mogi das Cruzes - UMC na Graduação e Pós-graduação, Professor da EBRADI;

-Leciona as disciplinas de Direito Civil, Empresarial e Tributário para os cursos de Direito, Ciências Contábeis e Administração de Empresa;

- Professor da EBRADI 

-Mestre em Direito Político e Econômico na Universidade Presbiteriana Mackenzie (2016);

-Especialista em Direito Processual Civil - Anhanguera-Uniderp.(2014);

- Pós-graduado em Direito Empresarial na PUC-SP (2010); 

- Sócio fundador do escritório Fornari e Gaudêncio Advogados Associados;

- Linhas de pesquisa: direito empresarial, direito tributário, direito econômico, direito civil, direito & internet.


Nota do Editor:

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